Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 341/2025-T
Data da decisão: 2025-12-15  IVA  
Valor do pedido: € 97.920,69
Tema: IVA - Direito à dedução de IVA – formalidades de emissão de fatura e requisitos materiais para exercício do direito
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SUMÁRIO:

     I.         Ainda que as faturas emitidas por prestadores de serviço ou transmitentes de bens não cumpram todas as formalidades previstas no artigo 36.º, n.º 5, do CIVA, nem por isso fica automaticamente vedado o exercício do direito à dedução do imposto suportado.

   II.         A tese da Requerida de que as formalidades das faturas têm natureza ad substanciam para efeito do direito à dedução do IVA, é contrária à jurisprudência do TJUE e à atual jurisprudência nacional.

 III.         Demonstrados os requisitos materiais que depende a dedução do IVA suportado, deverá admitir-se o exercício desse direito.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

         Os árbitros Regina de Almeida Monteiro (Presidente), José Luís Ferreira e David Oliveira Silva Nunes Fernandes, (Adjuntos) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 18-06-2025, acordam no seguinte:

 

I.           RELATÓRIO

A..., LDA. (doravante, a «Requerente»), sociedade comercial por quotas com sede no ..., ..., ...-... ..., titular do número de identificação fiscal ..., apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante «RJAT»), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação dos seguintes atos tributários:

1.     Liquidação de IVA do período 202101, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

2.     Liquidação de IVA do período 202102, com o n.º 2025..., com valor de imposto a pagamento de EUR 4.436,55 (quatro mil quatrocentos e trinta e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescido de EUR 609,01 (seiscentos e nove euros e um cêntimo) a título de juros compensatórios;

3.     Liquidação de IVA do período 202103, com o n.º 2025..., com valor de imposto a pagamento de EUR 4.981,65 (quatro mil novecentos e oitenta e um euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescido de EUR 708,62 (setecentos e oito euros e sessenta e dois cêntimos) a título de juros compensatórios;

4.     Liquidação de IVA do período 202104, com o n.º 2025..., com valor de imposto a pagamento de EUR 7.454,93 (sete mil quatrocentos e cinquenta e quatro euros e noventa e três cêntimos), acrescido de EUR 1.035,11 (mil e trinta e cinco euros e onze cêntimos) a título de juros compensatórios;

5.     Liquidação de IVA do período 202105, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

6.     Liquidação de IVA do período 202106, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

7.     Liquidação de IVA do período 202107, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

8.     Liquidação de IVA do período 202108, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

9.     Liquidação de IVA do período 202109, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

10.  Liquidação de IVA do período 202110, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

11.  Liquidação de IVA do período 202111, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

12.  Liquidação de IVA do período 202112, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros) e excesso a reportar não considerado no valor de EUR 78.694,82 (setenta e oito mil seiscentos e noventa e quatro euros e oitenta e dois cêntimos);

13.  A Requerente peticiona ainda o pagamento de juros indemnizatórios e juros de mora, terminando o pedido de pronúncia arbitral do seguinte modo:

 

Termos em que, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 10.º do Decreto-lei 10/2011, de 20 de janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei 66-B/2012 de 31/12, se formula pedido de constituição de Tribunal Arbitral coletivo, com vista à pronúncia arbitral de declaração de anulação dos atos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios dos períodos mensais de 2021 01 a 2021 12. Deve, ainda, ser reconhecido o direito da requerente ao ressarcimento dos impostos, juros compensatórios, juros de mora e custas processuais indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido até à efetiva e integral restituição”.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por «AT» ou simplesmente «Requerida»).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral recebido no dia 04-04-2025 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 07-04-2025.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral os ora signatários, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29-05-2025 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 18-06-2025.

Por despacho exarado no dia 18-06-2025, foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta e, querendo, solicitar produção de prova adicional. Mais a Requerida foi notificada, pelo mesmo despacho, para juntar aos autos o Processo Administrativo (PA).

A 05-09-2025 a Requerida apresentou a sua Resposta, pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral. Na mesma data, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo instrutor.

A 12-09-2025 foi proferido despacho arbitral, por meio do qual a Requerente foi convidada a indicar os factos, ou temas da prova, sobre os quais pretendia que recaísse a inquirição das testemunhas arroladas, por forma a que o Tribunal pudesse aferir da pertinência da diligência requerida.

A 22-09-2025 a Requerente apresentou requerimento, discriminando, por referência aos artigos da petição inicial, a matéria de facto sobre a qual pretendia que incidisse o depoimento das testemunhas arroladas.

A 24-09-2025 foi proferido despacho arbitral, por meio do qual foi designado dia 24 de outubro de 2025, pelas 15:00, para efeitos de inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente.

No dia 9-10-2025 a Requerente requereu a junção aos autos de comprovativo do pagamento da segunda prestação da taxa de arbitragem.

No dia 24-10-2025 teve lugar a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, o Sr. B... e o Sr. C..., os quais compareceram nas instalações do CAAD em Lisboa. No âmbito dessa diligência, foram as partes notificadas para apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias. Mais deliberou o Tribunal que a decisão final seria proferida até ao fim do prazo fixado no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT.

No dia 07-11-2025 foram apresentadas as alegações finais da Requerida.

No dia 12-11-2025 foram apresentadas as alegações finais da Requerente.

 

II.         SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º, ambos do RJAT, e é competente.

A ação é tempestiva, tendo sido deduzida dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.

O processo não enferma de nulidades.

            A cumulação dos pedidos deduzidos pela Requerente é admissível nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.

 

III.       POSIÇÃO DAS PARTES

 

a.     Posição da Requerente

 

A Requerente considera que as faturas emitidas por dois prestadores de serviços, a D..., Lda., e a E... Unipessoal, cumprem todos formalismos previstos no artigo 36.º, n.º 5, do CIVA e que, em qualquer caso, estão reunidos os requisitos materiais de que depende a dedução do imposto suportado a montante.

Por conseguinte, a Requerente considera que as liquidações controvertidas são ilegais, devendo ser anuladas, mais se reconhecendo o seu direito ao reembolso dos montantes de imposto pagos em excesso, acrescidos de juros indemnizatórios.

 

b.     Posição da Requerida

         

         Diferentemente, a Requerida considera que os formalismos atinentes à emissão de faturas não foram observados, mais considerando que a respetiva observância é essencial para efeitos do exercício do direito à dedução.

         Mais considera a Requerida que os elementos complementares apreciados em sede de ação inspetiva não permitem suprir as insuficiências formais das faturas em causa, não sendo assim de aceitar o exercício do direito à dedução.

         Termina a Requerida pugnado pela improcedência do pedido.

 

IV.       QUESTÕES A DECIDIR

 

a)    Da procedência ou improcedência do pedido anulatório aduzido pela Requerente contra os atos tributários melhor identificados supra, conexos com IVA do ano de 2021;

 

b)    Da procedência ou improcedência o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, por erro imputável aos serviços, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

 

V.         MATÉRIA DE FACTO

 

a.      Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

1)   A Requerente foi destinatária de uma ação inspetiva, conduzida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Santarém, que decorreu ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2023..., de âmbito parcial, ao exercício de 2021 (cfr. documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, bem como a comunicação de início de procedimento inspetivo, constante do processo administrativo instrutor);

 

2)   No âmbito daquele procedimento inspetivo, a Requerida efetuou correções em sede de IVA, no montante total de EUR 95.567,95 (noventa e cinco mil quinhentos e sessenta e sete euros e noventa e cinco cêntimos) (cfr. documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

 

3)   Após a notificação do relatório final de inspeção, a Requerente foi notificada das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes aos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2021 (cfr. documentos n.º 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, todos juntos com o pedido de pronúncia arbitral);

 

4)   A Requerente tem como atividade principal a construção, montagem e reparação de instalações metalomecânicas (cfr. relatório de inspeção tributária constante do procedimento administrativo instrutor, bem como a posição assumida pela Requerida na resposta apresentada, nomeadamente no parágrafo 4.º);

 

5)   Para ter clientes a quem prestar os seus serviços, a Requerente necessita de recorrer a serviços de angariação;

 

6)   A Requerente e E... Unipessoal outorgaram, no dia 02/01/2020, um contrato de prestação de serviços, o qual vigorou pelo prazo de um ano, tendo sido renovado automaticamente por não ter sido denunciado por nenhuma das partes (cfr. Anexo 3 do relatório de inspeção tributária constante do procedimento administrativo instrutor);

 

7)   Aquele contrato vigorou no exercício de 2021;

 

8)   O objeto daquele contrato consistia na prestação de serviços de gestão comercial que compreendiam a prospeção de novos mercados e aquisição de novos clientes, bem como o acompanhamento dos clientes existentes, serviços de marketing, gestão de preços, operações, manutenção e eventos (cfr. Anexo 3 do relatório de inspeção tributária constante do procedimento administrativo instrutor, em particular as cláusulas 1.ª, n.º 2, e 2.ª do contrato);

 

9)   Ao abrigo daquele contrato, a E... Unipessoal, Lda., prestou efetivamente os anteditos serviços de gestão comercial à Requerente, no âmbito da atividade desta, ou seja, construções metálicas, manutenção industrial e fabricação de tubagens industriais (cfr. Anexo 3 do relatório de inspeção tributária constante do procedimento administrativo instrutor, em particular o considerando III. e as cláusulas 1.ª, n.º 2, e 2.ª do contrato);

 

10) Pela prestação dos serviços por parte da E... Unipessoal, Lda. à Requerente foram emitidas as faturas n.º 2021/1, 2021/2, 2021/3, 2021/5, 2021/7, 2021/8, 2021/9, 2021/10, 2021/12, 2021/13, 2021/14, 2021/16, 2021/17, 2021/18, 2021/21, 2021/22, 2021/23, 2021/25, 2021/26, 2021/27, 2021/29, 2021/31, 2021/32 2021/33, 2021/35, 2021/38, 2021/41 e 2021/44 (cfr. documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

 

11) Todas as faturas referidas no parágrafo anterior têm, como anexo, um auto de medição e foram contabilizadas no extrato de conta do fornecedor, mais contendo o nome, NIPC e morada do fornecedor, o nome, NIPC e morada do adquirente, a descrição sintética dos serviços prestados, a descrição em linhas distintas de clientes angariados ou em relação aos quais haja sido feito o acompanhamento em obra pelo fornecedor, bem como os serviços já prestados à data da emissão da fatura (cfr. documento n.º 14 e documento n.º 15, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

12) Os autos de medição contemplam os seguintes elementos: nome, morada e NIPC do adquirente dos serviços, número e data de elaboração; assinatura aposta em nome do emitente (o prestador de serviços) e em nome da Requerente; identificação do cliente angariado ou destinatário do acompanhamento, a duração do projeto acompanhado, o mês em que foram prestados os serviços e, ainda, a discriminação e cálculo do preço por tipo de serviço (cfr. documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

13) Os correspondentes autos de medição indicam o local/obra e a duração do projeto, havendo uma correlação entre estes e as faturas emitidas (cfr. documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

14) A Requerente e a D..., Lda., outorgaram um contrato de prestação de serviços, datado de 18 de janeiro de 2021, o qual vigorou nesse ano, cujo objeto consistia na prestação de serviços comerciais de prospeção de novos mercados na área da metalomecânica e construções metálicas, angariação de clientes e acompanhamento dos clientes angariados, serviços técnicos de apoio nas obras e trabalhos angariados em curso (cfr. Anexo 6 do relatório de inspeção tributária constante do processo administrativo instrutor).

 

15) No âmbito do contrato referido no parágrafo anterior, à Requerente foram efetivamente prestados serviços, tendo sido emitidas pelo prestador de serviços as faturas n.º 2021/1, 2021/2, 2021/3, 2021/4, 2021/5, 2021/6, 2021/7, 2021/8, 2021/9, 2021/10, 2021/11, 2021/12, 2021/13, 2021/14, 2021/15, 2021/16, 2021/17, 2021/18, 2021/19, 2021/20, 2021/21, 2021/22, 2021/23, 2021/24, 2021/25, 2021/26, 2021/27, 2021/28 e 2022/1 (cfr, Anexo 5 do relatório de inspeção tributária constante do processo administrativo instrutor).

 

16) As faturas identificadas no parágrafo anterior têm anexas autos de medição e foram contabilizadas no extrato de conta do fornecedor (cfr, Anexo 5 do relatório de inspeção tributária constante do processo administrativo instrutor e documento n.º 16 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

17) Todas aquelas faturas contêm o nome, NIPC e morada do fornecedor, o nome, NIPC e morada do adquirente, a descrição sintética dos serviços prestados, a descrição em linhas distintas de clientes angariados ou em relação aos quais haja sido feito o acompanhamento em obra pelo fornecedor, bem como os serviços já prestados à data da emissão da fatura (cfr, Anexo 5 do relatório de inspeção tributária constante do processo administrativo instrutor).

 

18) Os correspondentes autos de medição contemplam os seguintes elementos: nome, morada e NIPC do adquirente dos serviços, número e data de elaboração; assinatura aposta em nome do emitente (o prestador de serviços) e em nome da Requerente; identificação do cliente angariado ou destinatário do acompanhamento, a duração do projeto acompanhado, o mês em que foram prestados os serviços e, ainda, a discriminação e cálculo do preço por tipo de serviço (cfr, Anexo 5 do relatório de inspeção tributária constante do processo administrativo instrutor).

 

19) Os valores faturados foram contabilizados e os réditos contribuíram para o apuramento do resultado tributável em 2021 (cfr. documento n.º 17 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

20) A Requerente declarou em sede IVA, para cada um dos doze meses do ano de 2021, os valores de IVA liquidados por intermédios das faturas identificadas nos parágrafos 10) e 15) (cfr. posição da Requerida, vertida na resposta, em particular no parágrafo 8).

 

21) A Requerente pagou os juros compensatórios apurados pela Requerida (cfr. documento n.º 18 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

22) A Requerida aprovou, quanto ao remanescente do imposto, um plano de pagamento prestacional pelo período de 12 (doze meses), compreendido entre 30 de abril de 2025 e 31 de março de 2026 (cfr. documento n.º 19 junto com o pedido de pronúncia arbitral), incluindo juros de mora.

 

23) Os autos de medição referente a faturas da E... Unipessoal, Lda., e da D..., Lda., foram juntos pela Requerente no âmbito do procedimento inspetivo.

 

 

b.    Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto 

 

Inexistem factos alegados e não provados com relevância para decisão da causa.

 

c.     Fundamentação quanto à matéria de facto

 

A convicção quanto aos factos considerados provados decorre dos documentos juntos autos pela Requerente, e indicados quanto a cada facto, bem como do processo administrativo instrutor junto aos autos pela Requerida e, ainda, da posição assumida pela mesma no âmbito da resposta apresentada. 

Naturalmente, foram também tomadas em consideração os depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente, as quais depuseram de forma clara e coerente, evidenciando adequada razão de ciência, pelo que o seu depoimento foi valorado em conformidade, afigurando-se, a este Tribunal, credível.

O Sr. B..., contabilista certificado da Requerente, afirmou ser responsável pela entrega das declarações fiscais desde 2018, exercendo as funções quando foi desencadeada a ação inspetiva por parte da Requerida. A testemunha explicou a atividade da Requerente e os serviços de angariação, em Portugal e no estrangeiro, prestados pela  E... Unipessoal, Lda., e pela D... Lda., ambas detidas pela mesma pessoa singular (o Sr. F...), o qual tinha experiência nesta área de negócios. Afirmou igualmente ter visto igualmente o Sr. F... várias vezes na empresa, aquando de pontuais deslocações à mesma. A testemunha afirmou ter conhecimento da existência de contratos entre a Requerente e aquelas empresas e, ainda, que eram elaborados mapas e autos de medição para apuramento dos valores a faturar mensalmente no âmbito daquelas relações, embora tais documentos não fossem por si elaborados, nem fosse capaz de explicar a metodologia de apuramento dos valores (que eram variáveis). Explicou que alguns destes elementos foram enviados à Requerida já depois do exercício do direito de audição prévia, no quadro da ação inspetiva, não tendo conhecimento da razão pela qual tais documentos não foram remetidos à Requerida em momento anterior. Foi também afirmado pela testemunha que confirmou, através do VIES, que aquelas empresas tinham atividade aberta e que todos os pagamentos foram realizados por transferência bancária.

            O Sr. C..., funcionário da Requerente desde 2017, afirmou ser técnico de secretariado, tendo diversas incumbências, incluindo a emissão de faturas. A testemunha explicou a atividade da Requerente, mais detalhando que a mesma é desenvolvida em Portugal e em diversos outros países. A testemunha explicou conhecer a E... Unipessoal, Lda. e D... Lda., representadas habitualmente pelo Sr. F..., que tinha experiência no setor de atividade da Requerente. Declarou também ter conhecimento dos contratos que vinculavam a Requerente àquelas entidades, por meio do qual aquelas angariavam clientes e trabalhos para execução da Requerente. A testemunha explicou ainda que em 2021 todos os clientes da Requerente foram angariados pelo Sr. F..., através da E... Unipessoal, Lda. e D... Lda, e que cerca de 95% das obras foram realizadas no estrangeiro. O contacto com o cliente era mantido com o Sr. F..., que por sua vez informava a Requerente das necessidades dos clientes e dos trabalhos a executar. A testemunha afirmou ser responsável pela faturação, dando nota que a Requerente emitia as suas faturas aos clientes finais, em função da medição dos trabalhos e que, por sua vez, a E... Unipessoal, Lda., emitia fatura pela comissão que lhe seria devida (5% a 8% da faturação da Requerente) e a pagar apenas após pagamento da fatura emitida pela Requerente ao cliente final. A comissão era variável, em função das margens da Requerente, mas geralmente com base naqueles limites mínimos e máximos. Para determinação dos valores, o Sr. F... tinha acesso a todos os custos da Requerente e isso era ponderado na discussão da comissão a pagar. A testemunha explicou que era elaborado um auto medição que depois se refletia na fatura, em função do acordo entre a Requerente e a E... Unipessoal, Lda.. A testemunha recebia as faturas da E... Unipessoal, Lda., e os autos de medição, lançando depois as faturas em conformidade (embora a fatura não indicasse expressamente o auto de medição).

            Quanto à D..., Lda., a testemunha explicou que foi acordado que a comissão corresponderia a 25% do valor líquido da obra, considerando os custos suportados pela Requerente e as faturas emitidas aos clientes finais. Toda a informação sobre os custos suportados pela Requerente, os quais eram organizados e apresentados, e sobre as faturas emitidas pela mesma eram do conhecimento do Sr.F..., que aliás preparava o contrato com os clientes e desenvolvia, inclusivamente, atividades de cobrança. Em face desses elementos, procedia-se ao apuramento dos valores devidos à D..., Lda.

A testemunha explicou que quando lhe solicitaram as faturas, no contexto da ação inspetiva, não viu a necessidade de enviar os autos de medição (à data já elaborados e assinados por ambas as partes, até porque precediam à própria fatura a que respeitavam), por considerar que se tratava de documentos anexos e que as faturas estavam emitidas em conformidade com os mesmos. 

 

VI.       MATÉRIA DE DIREITO

 

a.     Da dedutibilidade do IVA suportado pela Requerente

 

            O cerne da questão controvertida radica na disposição plasmada no artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA, conexo com as formalidades inerentes à emissão de faturas, nomeadamente para efeitos de dedutibilidade do IVA suportado pelos agentes económicos.

            No caso concreto, está em causa saber se as faturas emitidas à Requerente por dois prestadores de serviço em concreto observam, ou não, as formalidades previstas na antedita norma legal. No entender deste tribunal, a resposta não poderá deixar de ser afirmativa. Vejamos.

            Dispõe o n.º 5 do artigo 36.º do CIVA:

5 – As faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter os seguintes elementos:

a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente sujeito passivo do imposto, bem como os correspondentes números de identificação fiscal;

b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efectivamente transaccionadas devem ser objecto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução;

c) O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável

d) As taxas aplicáveis e o montante de imposto devido;

e) O motivo justificativo da não aplicação do imposto, se for caso disso. 

No caso de a operação ou operações às quais se reporta a factura compreenderem bens ou serviços sujeitos a taxas diferentes de imposto, os elementos mencionados em b), c) e d) devem ser indicados separadamente, segundo a taxa aplicável.

f) A data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, em que os serviços foram realizados ou em que foram efectuados pagamentos anteriores à realização das operações, se essa data não coincidir com a da emissão da factura.

No caso de a operação ou operações as quais se reporta a factura compreenderem bens ou serviços sujeitos a taxas diferentes de imposto, os elementos mencionados nas alíneas b), c) e d) devem ser indicados separadamente, segundo a taxa aplicável.

 

            Como bem refere a Requerida, no âmbito da sua Resposta, as formalidades em apreço visam essencialmente assegurar um grau de controlo quanto aos serviços prestados e bens transmitidos, em termos de confirmar, do lado do prestador ou transmitente, se o imposto foi devidamente liquidado (ou se a operação em causa se encontra isenta ou não sujeita) e, do lado do adquirente dos bens ou serviços, se os bens ou serviços adquiridos respeitam à sua atividade, em termos de permitir a dedução parcial ou total do IVA suportado, em observância do princípio da neutralidade que conforma este tributo. Mas já não se adere à tese da Requerida – pelo menos implícita no seu argumentário – de que tais formalidades têm uma natureza substantiva quanto ao direito à dedução de que são titulares os sujeitos passivos. 

            Ora, a Requerida pugnou, nestes autos, pela inobservância daquelas formalidades relativamente a faturas emitidas por dois prestadores de serviço da Requerente, mais tendo admitido que, no âmbito da ação inspetiva por si conduzida, ter conduzido “uma análise detalhada os elementos/esclarecimentos complementares apresentados, em resposta aos pedidos de elementos e no âmbito do exercício do direito de audição prévia, no sentido de validar se o conjunto de toda a informação obtida permitia preencher (ou não) os requisitos substantivos para a legitimação do direito a dedução do IVA se encontravam satisfeitos”, tendo chegado a uma resposta negativa. Mas, salienta-se, admitiu a Requerida na sua resposta que tais elementos adicionais podiam ser relevantes, sendo que quanto a esse aspeto – a relevância de elementos instrutórios complementares que possam clarificar os termos das faturas emitidas – tal posição merece adesão por parte deste Tribunal. Nesse sentido, eventuais insuficiências de que as faturas controvertidas padeçam em face do teor do artigo 36.º, n.º 5, do CIVA sempre seriam supríveis com recurso a tais elementos, contanto que consentâneos e coerentes com as faturas e, por outro lado, na medida em que dúvidas razoáveis não se suscitassem quanto à respetiva fidedignidade. 

Compulsando as faturas carreadas para os autos, relativamente às quais se suscitaram dúvidas quanto à respetiva compatibilidade com o normativo citado, entende este Tribunal que a sua integral compreensão não pode fazer-se sem os autos de medição que a Requerente juntou aos autos, bem como a partir dos contratos de prestação de serviços que lhe servem de suporte, também juntos aos autos. Assim, poderá de facto discutir-se se estão ou não cumpridas integralmente as formalidades prescritas na lei. 

Em qualquer caso, este Tribunal considera que o eventual incumprimento de tais formalidades não seria por si automaticamente impeditivo do exercício do direito à dedução. Fundamentalmente, adere-se à posição plasmada, entre outras, no processo n.º 176/2022-T, transcrevendo-se, por cristalino e abrangente, parte do seu iter decisório:

Em conformidade com o exposto no Acórdão do TJUE de 15 de setembro de 2016, proferido no proc. C-516/14 (Acórdão Barlis), pode ler-se, designadamente, o seguinte:

«36 Com a segunda parte da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, determinar as consequências de uma violação do artigo 226.°, n.os 6 e 7, da Diretiva 2006/112 no exercício do direito a dedução do IVA.

  1. Cumpre recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito dos sujeitos passivos a deduzir do IVA de que são devedores o IVA devido ou pago sobre os bens adquiridos e os serviços que lhes foram prestados a montante constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União (acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Maks Pen, C-18/13, EU:C:2014:69, n.° 23 e jurisprudência aí referida).
  2. O Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o direito a dedução do IVA previsto nos artigos 167.° e seguintes da Diretiva 2006/112 faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Esse direito é imediatamente exercido em relação à totalidade dos impostos que tenham onerado as operações efetuadas a montante (v., neste sentido, acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Maks Pen, C-18/13, EU:C:2014:69, n.° 24 e jurisprudência aí referida).
  3. O regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (acórdão de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C277/14, EU:C:2015:719, n.° 27 e jurisprudência aí referida).
  4. No que se refere aos requisitos materiais exigidos para a constituição do direito a dedução do IVA, resulta do artigo 168.°, alínea a), da Diretiva 2006/112, que os bens e serviços invocados para fundamentar esse direito devem ser utilizados pelo sujeito passivo a jusante para os efeitos das suas próprias operações tributadas e que, a montante, esses bens ou serviços devem ser prestados por outro sujeito passivo (v., neste sentido, acórdão de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C277/14, EU:C:2015:719, n.° 28 e jurisprudência aí referida).
  5. No que respeita aos requisitos formais relativos ao exercício do referido direito, resulta do artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112, que o seu exercício está subordinado à posse de uma fatura emitida nos termos do artigo 226.° desta diretiva (v., neste sentido, acórdãos de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn .

P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.° 41, e de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C-277/14, EU:C:2015:719, n.° 29). 

  1. O Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.° 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.° 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.os 58, 59 e jurisprudência aí referida).
  2. Daqui resulta que a Administração Fiscal não pode recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.os 6 e 7, da Diretiva 2006/112, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeito.
  3. A este respeito, a Administração Fiscal não deve limitar-se ao exame da própria fatura. Deve igualmente ter em conta informações complementares prestadas pelo sujeito passivo. Esta constatação é confirmada pelo artigo 219.° da Diretiva 2006/112 que equipara a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca. 
  4. No processo principal, cabe assim ao órgão jurisdicional de reenvio ter em conta todas as informações constantes das faturas em causa e dos documentos anexos apresentados pela Barlis com vista a verificar se os requisitos substantivos do seu direito a dedução do IVA se encontram satisfeitos. 
  5. Neste contexto, há que sublinhar, em primeiro lugar, que é ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA que incumbe provar que preenche os requisitos para dela beneficiar (v., neste sentido, acórdão de 18 de julho de 2013, Evita-K, C-78/12, EU:C:2013:486, n.° 37). As autoridades fiscais podem assim exigir ao próprio contribuinte as provas que considerem necessárias para apreciar se há ou não que conceder a dedução solicitada (v., neste sentido, acórdão de 27 de setembro de 2007, Twoh International, C-184/05, EU:C:2007:550, n.° 35).
  6. Em segundo lugar, importa precisar que os Estados-Membros são competentes para prever sanções em caso de violação dos requisitos formais relativos ao exercício do direito a dedução do IVA. Nos termos do artigo 273.° da Diretiva 2006/112, os Estados-Membros têm a faculdade de adotar medidas para assegurar a cobrança exata do imposto e evitar a fraude, desde que tais medidas não vão além do que é necessário para atingir tais objetivos nem ponham em causa a neutralidade do IVA (v., neste sentido, acórdão de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.° 62). 
  7. Nomeadamente, o direito da União não impede os Estados-Membros de aplicarem, sendo caso disso, uma multa ou uma sanção pecuniária proporcionada à gravidade da infração, a fim de punir a violação das exigências formais (v., neste sentido, acórdão de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.° 63 e jurisprudência aí referida). 
  8. Decorre das considerações precedentes que há que responder à segunda parte da questão submetida que o artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.os 6 e 7, desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos.»

 

Por outro lado, na decisão arbitral proferida no processo n.º 3/2014-T, de 6 de Dezembro de 2016, refere-se além, do mais o seguinte:

«As medidas que os Estados-Membros têm a faculdade de adoptar para assegurar a cobrança exacta do imposto e evitar a fraude, ao abrigo do artigo 273.º da Directiva IVA, encontram-se condicionadas ao teste da proporcionalidade e, por essa razão, não podem ir além do que é necessário para atingir tais objectivos, nem pôr em causa a neutralidade do IVA, sem prejuízo de os Estados-Membros aplicarem uma multa ou sanção pecuniária proporcionada à gravidade da infracção a fim de punir a violação das exigências formais.»3

Pode, ainda, ler-se na decisão arbitral proferida no processo n.º: 765/2016-T que:

«(…) [O]entendimento4, que considera que a factura é uma formalidade ad substanciam do direito à dedução do IVA, deve considerar-se actualmente ultrapassada, face ao que tem sido a jurisprudência do TJUE na matéria, que entende “que o princípio fundamental da neutralidade doIVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais.”.

Ou seja, (…), a consequência das faturas não preencherem todos os requisitos legais previstos no art.º 36.º do CIVA não é não serem suporte válido para a dedução de imposto, sendo o TJUE taxativo no sentido de que a Administração Fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a factura não preencher os requisitos.»

A referida consequência apenas será legítima, portanto, se a AT não dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos, em termos de não lhe permitir a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA (…).” 

A tese de que as formalidades das faturas têm natureza ad substanciam para efeito do direito à dedução do IVA, tem vindo a ser abandonada pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Como se pode ler no acórdão do STA de 02-12-2020, proferido no processo 01383/11.2BELRS 01022/17:

“o IVA repousa sobre o princípio da neutralidade – e para a sua efectividade é essencial a verificação dos requisitos substanciais do direito à dedução – mas a boa gestão e o controlo requerem o cumprimento de diversas obrigações formais – entre as quais se inclui a de emissão de factura com os dados expressamente determinados na lei. Porém, os primeiros (os requisitos substanciais) prevalecem sobre os segundos, o que significa que a Administração está impedida de rejeitar o direito à dedução do imposto sempre que os dados objectivos permitam determinar com segurança que ele existe, não obstante alguns aspectos formais não terem sido devidamente observados. É isso que resulta, expressamente, do disposto nos seguintes arestos do TJUE: «Ora, a dedução do IVA pago a montante deve ser concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais (v., neste sentido, acórdão de 15 de Setembro de 2016, Senatex, C-518/14, EU:C:2016:691, n.° 38 e jurisprudência referida)» - in §§ 40 do já referido acórdão Geissel.”

Em sintonia com este entendimento, estão os acórdãos do TCA-Sul de 21-05-2020, processo 439/09.6BESNT, de 25-06-2020, processo 309/13.3BELRA e de 19-11-2020, processo 208/04.0BESNT.”

Retomando o caso vertente, mesmo que se pugnasse pela insuficiência de formalismos na emissão das faturas controvertidas, sempre teria de se considerar que os requisitos materiais que permitem a dedução do imposto estão cumpridos. 

Desde logo, salienta-se que as faturas em causa e os autos de medição que lhe servem de suporte são inteiramente compatíveis entre si, mesmo que os valores faturados nem sempre correspondam ao que efetivamente se fez constar dos contratos outorgados entre a Requerente os prestadores de serviço. Tais pontuais divergências, bem como a respetiva razão de ser, foram de resto explanadas pelas testemunhas arroladas pela Requerente, em particular o Sr. B... . 

De resto, a contemporaneidade entre os autos de medição e as respetivas faturas decorre, desde logo, da prova testemunhal produzida, porquanto ficou cabalmente demonstrado que os autos, em rigor, antecediam a emissão da própria fatura. Também as regras da experiência comum, conjugadas com o teor dos autos de medição, das faturas emitidas e das explicações dadas por cada testemunha, em função da sua razão de ciência, tornam inverosímil que estes autos hajam sido elaborados depois de concluído o processo inspetivo. 

Inexistem, pois, dúvidas razoáveis quanto à fidedignidade destes elementos, impondo-se concluir que o IVA liquidado naquelas faturas corresponde a imposto suportado pela Requerente no âmbito de serviços relacionados com a sua atividade, em especial, serviços de angariação de clientes sem os quais a Requerente não teria logrado realizar, enquanto prestadora de serviços, múltiplas operações. 

O presente Tribunal Arbitral decide que as liquidações de IVA controvertidas nos presentes autos são ilegais, por violação de lei, ilegalidade se declara, impondo-se a restituição à Requerida de todos os montantes de imposto, incluindo juros compensatórios e juros de mora pagos em excesso.

 

b.     Dos juros indemnizatórios 

 

           Conforme decorre do supra exposto, e por inerência da anulação das liquidações controvertidas, conjugada com o efetivo pagamento de imposto pela Requerente (ainda que parcial), não restam dúvidas de que esta é titular do direito ao reembolso dos montantes pagos em excesso.

            No que concerne a juros indemnizatórios, de acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Requerida a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito».

            Quanto à competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária para prolação de decisões condenatórias no pagamento de juros indemnizatórios, segue-se a linha argumentativa expendida no processo 364/2022-T: 

         «Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”. 

         O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

            A questão fundamental que se submete à apreciação deste tribunal é a de saber se o caso vertente corresponde, ou não, a um erro imputável aos serviços, na aceção prevista no artigo 43.º da LGT.

         Conforme decorre da exposição supra, os autos de medição são um elemento relevantes para efeitos de compreensão das faturas controvertidas, sendo que os mesmos foram integralmente facultados à Requerida no âmbito do procedimento inspetivo, mesmo que apenas no contexto do exercício do direito de audição prévia. Nesse sentido, é possível aludir a erro imputável aos serviços para efeitos de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, na medida em que a Requerida dispunha dos elementos necessários para, fundamentadamente, se abster da prática dos atos de liquidação controvertidos.

         Nessa medida, entende este Tribunal ser de reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios.

 

VII.     DECISÃO 

 

            De harmonia com o exposto decide este Tribunal Arbitral em julgar o pedido aduzido pela Requerente como integralmente procedente e, em consequência:

 

a)    Anular, por ilegais, os seguintes atos tributários:

1)    Liquidação de IVA do período 202101, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

2)    Liquidação de IVA do período 202102, com o n.º 2025..., com valor de imposto a pagamento de EUR 4.436,55 (quatro mil quatrocentos e trinta e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescido de EUR 609,01 (seiscentos e nove euros e um cêntimo) a título de juros compensatórios;

3)    Liquidação de IVA do período 202103, com o n.º 2025..., com valor de imposto a pagamento de EUR 4.981,65 (quatro mil novecentos e oitenta e um euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescido de EUR 708,62 (setecentos e oito euros e sessenta e dois cêntimos) a título de juros compensatórios;

4)    Liquidação de IVA do período 202104, com o n.º 2025..., com valor de imposto a pagamento de EUR 7.454,93 (sete mil quatrocentos e cinquenta e quatro euros e noventa e três cêntimos), acrescido de EUR 1.035,11 (mil e trinta e cinco euros e onze cêntimos) a título de juros compensatórios;

5)    Liquidação de IVA do período 202105, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

6)    Liquidação de IVA do período 202106, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

7)    Liquidação de IVA do período 202107, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

8)    Liquidação de IVA do período 202108, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

9)    Liquidação de IVA do período 202109, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

10) Liquidação de IVA do período 202110, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

11) Liquidação de IVA do período 202111, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros);

12) Liquidação de IVA do período 202112, com o n.º 2025..., com valor total a pagamento de EUR 0,00 (zero euros) e excesso a reportar não considerado no valor de EUR 78.694,82 (setenta e oito mil seiscentos e noventa e quatro euros e oitenta e dois cêntimos).

 

b)    Em face da anulação que antecede, condenar a Requerida na restituição imposto, dos juros compensatórios e de mora efetivamente pagos em excesso pela Requerente.

 

c)    Condenar a Requerida no pagamento à Requerente de juros indemnizatórios.

 

d)    Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VIII.  VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 296.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de EUR 97.920,69 (noventa e sete mil novecentos e vinte euros e sessenta e nove cêntimos), indicado pelo Requerente e sem oposição Requerida.

 

IX.       CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em EUR 2.754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de dezembro de 2025

 

Os Árbitros

 

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(Regina de Almeida Monteiro - Presidente)

 

 

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(José Luís Ferreira - Adjunto)

 

 

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(David Oliveira Silva Nunes Fernandes, Adjunto e relator)