Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 511/2025-T
Data da decisão: 2025-11-24  IRC  
Valor do pedido: € 52.346,61
Tema: IRC. Retenção na fonte. Organismo de investimento coletivo. Violação do Direito da União Europeia.
Versão em PDF

 

 

SUMÁRIO: 

I.       O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

II.     Considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados Membros.

 

DECISÃO ARBITRAL

         O árbitro singular Tomás Cantista Tavares, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 5/8/2025, acorda no seguinte:

 

            1. Relatório

A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito francês, com o número de identificação fiscal..., com sede em ..., ... Paris, França (doravante designado de “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação de atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidente sobre o pagamento de dividendos auferidos no ano de 2021 e 2022.

O Requerente pede ainda a restituição da importância que considera indevidamente retida, com juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD; O Conselho designou como árbitro o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável; as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.

O Tribunal singular foi constituído em 5/8/2025.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por exceção e impugnação. Tendo sido notificada para o efeito, a requerente apresentou resposta às exceções – tendo depois prescindido da inquirição da testemunha arrolada no seu requerimento inicial. Tendo-se suscitado questões relativas ao preenchimento e interpretação da modelo 30 efetuada pelo B..., em respeito do contraditório, foram as partes notificadas para se pronunciarem, também a AT, porque em contacto direto com tais factos. E a AT não se pronunciou no prazo legal, nem solicitou qualquer prorrogação de prazo.

Por desnecessidade, foi dispensada a reunião do art. 18.º do RJAT bem como as alegações finais – dado que os articulados colocam, de forma clara as questões de facto e de direito suscitadas no processo.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente. Declara-se o Tribunal Arbitral regularmente constituído e materialmente competente para conhecer da presente ação, em sede declarativa.

 As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto 

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A)    O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal de França, uma entidade jurídica de direito francês, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal em França;

B)    O Requerente foi constituído e opera ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, o Requerente cumpre no seu Estado de residência e constituição exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a actividade dos OIC, também em transposição da referida Directiva – i.e., a Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro;

C)    O Requerente é administrado pela sociedade C..., entidade igualmente com residência em França e com os poderes necessários de representação;

D)    Em 2021 e 2022, o Requerente era um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável em Portugal;

E)    Em 2021 e 2022, a requerente possuía ações da D... e recebeu os seguintes dividendos, com retenção na fonte à taxa de 35% (no valor total da retenção na fonte de 52.346,61€):

 

D...

 

 

D...

 

F)     A entidade que procedeu ao pagamento e retenção na fonte e entrega das quantias nos cofres do Estado foi o B...– sucursal em Portugal

G)    O B... procedeu à retenção na fonte e entrega dessas quantias nos cofres do Estado.

H)    O Requerente é o beneficiário efetivo dos rendimentos em causa;

I)      As Declarações Modelo 30 entregues pelo substituto tributário confirmam a distribuição de rendimentos ao Requerente e retenção na fonte à taxa de 35%, nos montantes supra indicados;

J)     Em 19/11/2024, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa dos referidos atos de retenção na fonte, por entender que não deveria haver qualquer retenção na fonte – e que a mesma violaria o Direito da União europeia;

K)    O pedido de revisão oficiosa foi considerado tacitamente indeferido – e perante o silêncio da AT, a requerente intentou a presente ação arbitral.

 

2.2. Factos não provados 

Não aplicável.

 

2.3. Motivação da matéria de facto provada 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.  

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor [(cfr. artigos 596º, nº 1 e 607º, nºs 2 a 4 do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT)] e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artigo 123º, nº 2 do CPPT).

Colocou-se a questão no processo de saber se o Banco F... efetuou ou não as retenções na fonte em causa – e se entregou ou não essas quantias nos cofres do Estado. Perante as dúvidas colocadas na resposta, a requerente apresentou justificação (é facto de terceiro) e posteriormente juntou declaração do F... em que atesta os pagamentos, retenções na fonte e entrega dessas quantias ao Estado, sendo que tais quantias são pagas juntamente com muitas outras, nas chamadas contas jumbo. A requerida foi notificada para se pronunciar – e no prazo legal nada disse, nem solicitou prorrogação de prazo. Perante a declaração do F... e dado que se trata de um Banco, com serviço profissional de independente para praticar estes atos – assumem-se como verdadeiras as declarações ínsitas: que a requerente foi alvo de retenção na fonte que se arroga, nos pagamentos com essa natureza (dividendos), pelos valores por si declarados e nas datas aí indicadas.

 

3. Saneamento

Dada a precedência lógica, importa começar por decidir a matéria das exceções suscitada no processo pela AT: a) inimpugnabilidade dos atos de retenção na fonte; b) incompetência em razão da matéria. 

Em relação à primeira situação, a AT invoca que em caso de substituição tributária (também definitiva) – como é o caso – exigir-se-ia uma reclamação graciosa prévia e necessária a ser intentada no prazo de 2 anos (art. 98.º, n.º 7, do CIRC e art. 131.º do CPPT); e isso não foi efetuado pois um pedido de revisão oficiosa foi apresentado passados tal prazo de 2 anos.

Em relação à segunda questão prévia, a AT invoca que o CAAD só é competente para analisar casos de retenção na fonte em substituição tributária com retenção na fonte – como é o caso – se previamente se tiver efetuado a reclamação prévia e necessária, como se indica no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março. E não ocorreu tal reclamação no prazo de 2 anos, mas um pedido de revisão oficiosa e posterior.

A requerente argumenta a improcedência das exceções. Em relação à primeira, invoca, em síntese, que o pedido de revisão oficiosa pode ser apresentado no prazo de 4 anos (art. 78.º, n.º 1, da LGT), quando o erro for imputável aos serviços, como seria o caso, e que por razões de justiça e segundo jurisprudência tal pode ocorrer no seio de revisão oficiosa.

Em relação à segunda exceção, a requerente invoca que a revisão oficiosa é um meio equiparável à reclamação e que por isso, o CAAD tem competência, na interpretação desse preceito, e junta jurisprudência vária, arbitral e dos tribunais superiores do Estado.

Decidindo:

Estes temas estão resolvidos pela jurisprudência – que se concorda e se adere:

Desde logo, no Acórdão do STA de 9/11/2022, proc. 087/22.5BEAVR. Diz esse acórdão que existe um erro imputável aos serviços, e, portanto, a revisão oficiosa é tempestiva, porquanto, e como o sumário: “VII – Assim, nos casos […] em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo […] o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é suscetível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária”.

No caso dos autos: a) ocorre retenção na fonte a título definitivo; b) os factos tributários de ambas as situações ocorrem após a revogação do art. 78.º, n.º 2 da LGT; c) em ambos os casos, por imposição legal, a retenção na fonte e pagamento do imposto ao Estado é efetuada pelo substituto – estando  o substituído (os autores em cada uma das ações judiciais) completamente fora dessa relação tributária, sendo eles, porém, que sofrem a ablação económica do imposto (e têm por isso interesse em agir judicialmente); d)os erros (de facto e/ou de direito) do substituto, ao reter e entregar quantias nos cofres do Estado, quando a lei, qualquer que seja a sua fonte (ainda que da União Europeia), impunha uma isenção de tributação e retenção constitui um erro que não é imputável ao requerente, porque se encontra, por lei, fora da relação tributária; e) nada há nos processos que indicie ou prove que o substituto atuou sob erro, induzido ou provocado pelo substituído ou requerente; f) perante isso, a jurisprudência entende que o erro tem de ser imputado à autoridade tributaria, no dever de vigilância e controlo geral das declarações de terceiros em matéria fiscal, em caso de substituição total. Em citação do Acórdão: “Neste conspecto, propendemos a considerar que em tal situação se justifica que os erros praticados no ato de retenção sejam imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no nº1 do artigo 78º da LGT, pois se afigura inviável responsabilizar o contribuinte pela atuação do substituto, sob pena de violação dos seus direitos garantísticos”.

Assim, pode-se efetuar uma revisão oficiosa em 4 anos (e depois uma impugnação judicial ou ação arbitral, com base no indeferimento expresso ou tácito), ainda que não se tenha intentado uma reclamação graciosa em 2 anos, nos termos e com os argumentos ínsitos no Ac. STA de 12/07/2006, recurso nº 402/06.

E, por outro lado, nos termos do Ac. TCA Sul de 11/3/2021, proc. 7608/14.5BCLSB, que se adere por obrigação e concordância, segundo sumário: “o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa”. E é isso, exatamente isso, o que ocorre no caso dos autos.

Em suma: improcedem as exceções aduzidas pela AT – e o tribunal tem competência para analisar o mérito e o fundo da causa

Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

4. Matéria de direito

4.1. Apreciação da questão da compatibilidade do artigo 22.º, n. 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais com o Direito da União Europeia

Quanto à matéria de direito segue-se de perto, com a devida vénia, o decidido na sentença arbitral 236/2025-T, em que o árbitro integrou esse coletivo.

O Requerente é um fundo de investimento (Organismo de Investimento Colectivo) constituído ao abrigo do direito Francês.

Em 2021 e 2022, o Requerente recebeu dividendos, pagos em Portugal por sociedades de direito português, relativamente aos quais foi efetuada retenção na fonte à taxa de 35%.

Inconformado, apresentou revisão oficiosa contra os os atos de retenção na fonte referidos, que foi indeferida de forma tácita. 

O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação vigente em 2021/2022, estabelecia o seguinte:

Artigo 22.º 

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4 – Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC. 

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.

8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.

9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo, no entanto, ser inferior a um ano civil: 

a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;

b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.

10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.

11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código. 

12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.

13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.

14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.

15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.

16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro. 

 

Nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 7/2015, pelo qual se procedeu, ademais, à reforma do regime de tributação dos organismos de investimento colectivo (OIC), «as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015».         

No referido n.º 1 do artigo 22.º estabelece-se que o regime nele previsto é aplicável aos «fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional».

O Requerente é constituído ao abrigo da lei francesa e não da lei nacional e, por isso, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF afasta a aplicação daquele regime ao Requerente.

O Requerente defende, em suma, que do regime que se prevê no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) resulta um tratamento discriminatório para os OIC não residentes em relação aos residentes, que é incompatível com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece o seguinte:

Artigo 63.º

(ex-artigo 56.º TCE)

 

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. 

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. 

 

No entanto, o artigo 65.º do TFUE limita a aplicação deste princípio, estabelecendo o seguinte:

 

Artigo 65.º 

(ex-artigo 58.º TCE) 

 

1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros: 

 

a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido; 

 b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública. 

 2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

 3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.

 

A questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 22.º, n.º 1, do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no acórdão do TJUE de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, em que se concluiu que 

 

O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

Note-se, de resto, que o Supremo Tribunal Administrativo uniformizou a jurisprudência sobre esta matéria em obediência ao decidido pelo TJUE (acórdão de 28-09-2023, processo n.º 093/19).

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).

A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Assim, considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados Membros.

Consequentemente, tem de se concluir que os atos de retenção na fonte impugnados enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

4.2. Questões de conhecimento prejudicado

 

Tendo-se concluído que o Direito da União Europeia impõe a anulação das retenções na fonte impugnadas e que este tem supremacia sobre o Direito Nacional, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que não se toma delas conhecimento.

 

5. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios    

 

O Requerente pede reembolso da quantia retida na fonte indevidamente, acrescida de juros indemnizatórios.

 

5.1. Reembolso

Na sequência da anulação das retenções na fonte o Requerente tem direito a ser reembolsado das quantias retidas, o que é consequência da anulação.

 

5.2. Juros indemnizatórios 

         O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 18-04-2013, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere: 

21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).

 

22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).

 

23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).   

 

No entanto, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.

         O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte: 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos; 

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

 

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

 

         Como há muito vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da existência de um ato ilegal, cuja ilegalidade não é imputável ao contribuinte:

– «em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação» ( [1] );

    

    – «Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da LGT, havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.

          Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado» ( [2] );

 

– «há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária» ( [3] );

 

– «os juros indemnizatórios previstos no art. 43.º da LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação» ( [4] ).

         

         À luz desta jurisprudência, não sendo os erros que afetam as retenções na fonte imputáveis ao Requerente, eles são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira.

O facto de se tratar de atos de retenção na fonte, não praticados diretamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira, não afasta essa imputabilidade, pois, a ilegalidade da retenção na fonte, quando não é baseada em informações erradas do contribuinte, não lhe é imputável, mas sim «aos serviços» ( [5] ), devendo entender-se que se integra neste conceito a entidade que procede à retenção na fonte, na qualidade de substituto tributário, que assume perante quem suporta o encargo do imposto o papel da Administração Tributária na liquidação e cobrança do imposto ( [6] ). 

         O Pleno do Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão de 29-06-2022, processo n.º 93/21.7BALSB, nos seguintes termos:

Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.

         Tratando-se de jurisprudência uniformizada, ela deve ser acatada.

         No caso em apreço, a revisão oficiosa foi apresenta em 19/11/2024 e indeferida em 19/3/2025.

         Tendo sido excedido o prazo de quatro meses para decisão da reclamação graciosa, formou-se indeferimento tácito em 19/3/2025. 

         Assim, de harmonia com a referida jurisprudência uniformizada, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde 20/3/2025. 

         Os juros indemnizatórios devem ser contados, com base na quantia de € 52.346,61, desde 20/3/2025, até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

6. Decisão        

            De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a)     Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IRC, através de atos de retenção na fonte, e anular esses atos;

b)     Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 52.346,61 e condenar a Administração Tributária a pagar este montante ao Requerente;

c)     Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar ao Requerente esses juros, com base na quantia de € 52.346,61, desde 20/3/2025, até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

7. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 52.346,61 indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Porto, 24 de novembro de 2025      

 

O Árbitro singular 

 

 


(Tomás Cantista Tavares)

 

 

 



[1] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 31-10-2001, processo n.º 26167, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2466, e de 24-04-2002, processo n.º 117/02, publicado em Apêndice ao Diário da República 08-03-2004, página 1197.

[2] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2593.

[3] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-11-2001, processo n.º 26415, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2765.

[4] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28-11-2001, processo n.º 26223, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2824, e de 16-01-2002, processo n.º 26508, publicado em Apêndice ao Diário da República 16-2-2004, página 77.

[5] Os «serviços» são, na LGT, um conceito que não se restringe aos actos praticados pela Administração Tributária, como se depreende do n.º 2 do artigo 43.º e do actualmente revogado n.º 2 do artigo 78.º da LGT. 

De resto, há actos tributários que tanto podem ser praticados por entidades públicas como privadas, como sucede, por exemplo, com os emolumentos notariais e impostos cobrados por notários, que podem ser entidades públicas ou privadas.

[6] CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, página 256: «muito embora tanto em termos legais como em termos doutrinais a substituição tributária seja definida exclusivamente com referência ao contribuinte, o certo é que a figura da substituição não deixa, a seu modo, de se reportar também à Administração Fiscal. Efectivamente, no quadro actual da “privatização” da administração ou gestão dos impostos, o substituto tributário acaba, de algum do, por “substituir” também a Administração Fiscal na liquidação e cobrança dos impostos. O que, de algum modo, não deixa de ser denunciado pela inserção sistemática dos deveres de retenção na fonte os quais aparecem integrados no Código do IRS no capítulo do pagamento e no Código do IRC no capítulo relativo à liquidação». 

ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2016 (reimpressão): «Os deveres de retenção e entrega do tributo significam a delegação do exercício de uma atividade que em princípio deveria caber ao fisco, mas entende-se que o exercício destas funções no interesse público, não restringe desproporcionalmente o direito ao exercício de atividades privadas e por isso não é inconstitucional».