Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 348/2025-T
Data da decisão: 2025-12-05  IVA  
Valor do pedido: € 72.795,80
Tema: IVA – Direito à dedução – Requisitos formais e prova da materialidade das operações. Ónus da prova. Artigos 19.º e 20.º, do Código do IVA, e 74.º, da LGT
Versão em PDF

 

SUMÁRIO

I.          O Código do IVA, especificamente nos seus artigos 19.º, 20.º e 36.º, estabelece requisitos formais para o exercício do direito à dedução, os quais interpretados à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), reconhecem a admissão de outros meios de prova para assegurar o exercício desse direito estrutural ao regime de funcionamento deste imposto. 

II.        O exercício do direito à dedução não é comprometido por falhas de natureza formal, desde que estas possam ser supridas, salvo em casos de fraude ou má-fé dos intervenientes.

III.      Em linha com a jurisprudência do TJUE e da mais recente jurisprudência dos tribunais superiores e dos tribunais arbitrais, o incumprimento de algumas menções nas faturas – nomeadamente a prevista no artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”) – não implica, necessariamente, a exclusão do direito à dedução. 

 

Decisão Arbitral

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade (Árbitra Presidente), Gonçalo Marquês de Menezes Estanque, Rita Guerra Alves (Árbitros Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:

 

1.          Relatório

1.          A... S.L., sociedade de direito espanhol registada junto do Registro Mercantil de Madrid sob o n.º ..., titular do número de identificação fiscal português ..., com sede em ..., 32, ..., ... Madrid, Espanha (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), visando a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), relativo ao primeiro trimestre de 2023 (20233T), com o n.º 2025 ..., no montante de € 68.097,25, bem como do ato de liquidação dos juros compensatórios e moratórios com o n.º 2025..., no montante de € 4.698,55, ambos datados de 22 de janeiro de 2025, emitidos em nome da sucursal daquela em território português, a B... S.L. – Sucursal em Portugal (anteriormente designada C... S.L. – Sucursal em Portugal), titular do número de identificação fiscal ... e com último local de representação na Rua ..., n.º..., em Lisboa (“C...”), pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”).

2.          O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 7 de abril de 2025, foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, e em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, foi notificado à Requerida em 8 de abril de 2025.

3.          A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os presentes árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4.          Em 30 de maio de 2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

5.          Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 18 de junho de 2025, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.

6.          Nesta mesma data, foi proferido despacho para que a Requerida apresentasse a sua resposta, remetesse cópia do processo administrativo e, querendo, solicitasse a produção de prova. 

7.          A Requerida apresentou a sua resposta no dia 5 de setembro de 2025, tendo-se defendido por impugnação e pugnado pela sua absolvição do pedido formulado pela Requerente.

8.          Por despacho arbitral de 9 de setembro de 2025, (i) dispensou-se a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, (ii) facultou-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, facultativas, por prazo simultâneo de 15 dias, (iii) advertiu-se a Requerente para, em idêntico prazo, depositar a taxa arbitral subsequente e juntar aos autos o respetivo comprovativo e (iv) indicou-se, ainda, o dia 18 de Dezembro de 2025 como sendo a data previsível para a prolação da decisão arbitral.

9.          A Requerente, em sede de alegações, apresentadas em 26 de setembro de 2025, remeteu na íntegra para o teor do pedido de pronúncia arbitral e para a jurisprudência consolidada do TJUE e também dos tribunais nacionais sobre a matéria objeto de apreciação nos autos.

10.       A Requerida não apresentou alegações escritas.

2.          Argumentos das Partes

2.1.     Argumentos da Requerente 

11.       A Requerente fundamentou o seu pedido de pronúncia arbitral alegando, para fins de declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários de liquidação impugnados, os seguintes fundamentos:

i.            A Requerente é uma sociedade de direito espanhol, com sede em Madrid, que se dedica à assessoria e consultoria em matéria imobiliária, de desenvolvimento, exploração e comercialização de locais de negócio, escritórios e centros comerciais;

ii.          Em abril de 2021, a Requerente constituiu uma sucursal em território português, a C... Sucursal;

iii.         A constituição da C... Sucursal inseriu-se numa estratégia de reorganização do grupo motivada pela limitação imposta pelo Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção (“IMPIC”) à emissão de licenças para o exercício da atividade de mediação imobiliária a sucursais em território português de empresas do Reino Unido após a saída deste da União Europeia;

iv.         Facto que obstou a que a D... Limited – Sucursal em Portugal (anteriormente denominada E... – Sucursal em Portugal, doravante “E...Sucursal”), sucursal em território português da sociedade britânica F... Limited (anteriormente denominada ... Limited, doravante “F...”) que encabeça o grupo, pudesse obter uma licença de mediação imobiliária junto do IMPIC;

v.          A C... iniciou a sua atividade em 1 de julho de 2021 sob o código CAE-Rev.3 68311 – atividades de mediação imobiliária e ficou, desde esta data, enquadrada no regime normal trimestral de IVA;

vi.         AC... Sucursal obteve junto do IMPIC, em 22 de maio de 2021, a licença n.º 18-RAMI para o exercício da atividade imobiliária em Portugal;

vii.       A licença de mediação imobiliária concedida à C... Sucursal viria a ser cancelada pelo IMPIC em 13 de abril de 2023;

viii.      No cerne do cancelamento da licença esteve a exigência introduzida pelo IMPIC às sociedades estrangeiras que pretendessem prestar serviços de mediação imobiliária em Portugal, por período superior a um ano, de criação de uma sociedade no País para o efeito; 

ix.         Em agosto de 2022, foi constituída a G..., Unipessoal, Lda. (“G... Unipessoal”), sociedade de direito português cujo capital social é detido na totalidade pela Requerente e que tem por objeto a prestação de serviços de aconselhamento, consultoria e mediação imobiliária, bem como quaisquer serviços relacionados com os antecedentes, e ainda o desenvolvimento, exploração e comercialização de imóveis, incluindo estabelecimentos comerciais, escritórios e centros comerciais;

x.          A C... Sucursal, por seu turno, foi encerrada em março de 2023, tendo cessado a sua atividade para efeitos de IVA e Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) em 29 de março de 2023;

xi.         Na declaração periódica de IVA respeitante ao primeiro trimestre de 2023, a C... Sucursal solicitou o reembolso de imposto no montante de € 42.480,06, o que deu origem ao pedido de reembolso n.º...;

xii.       Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., emitida em 19 de maio de 2023, foi instaurado pelos serviços da Requerida contra a C... Sucursal um procedimento de inspeção tributária interno e de âmbito parcial, em sede de IVA, para o primeiro trimestre de 2023; 

xiii.      Este procedimento inspetivo culminou na elaboração, em 6 de janeiro de 2025, do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) pela Requerida, a qual promoveu uma correção no montante de € 110.505,31, em virtude da alegada dedução indevida de IVA pela C... Sucursal, originando um valor de imposto a pagar de € 68.097,25, assim discriminado:

xiv.      A Requerida não questionou, no RIT, que o IVA foi efetivamente suportado pela C... Sucursal na aquisição de serviços à E... Sucursal, no âmbito de um contrato celebrado com esta em 25 de junho de 2021;

xv.        O único fundamento para a correção e ulterior liquidação adicional de IVA e juros efectuada pela Requerida no RIT respeita à recusa desta em permitir à C... Sucursal a dedutibilidade do IVA suportado no montante de € 110.505,31 em resultado de as faturas emitidas pela E... Sucursal (enquanto prestadora dos serviços) não especificarem o concreto serviço, de entre os vários que foram contratualmente acordados pelas partes;

xvi.      Trata-se de uma interpretação excessivamente formalista da Requerida que não pode ser acolhida porque restringe de modo indevido e desproporcionado um direito considerado fundamental na dinâmica do IVA, que é a dedução do imposto;

xvii.     Tal interpretação contraria os princípios fundamentais do sistema comum do IVA e de vasta e uniforme jurisprudência tanto do TJUE como dos tribunais nacionais;

xviii.   A ausência dos requisitos formais das faturas – elencados no artigo 226.º, da Diretiva IVA e, entre nós, no artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA – não é suficiente para dar lugar à recusa do direito à dedução do IVA, consequência que, por ser excecional, só pode ocorrer numa de duas circunstâncias: (i) quando a inobservância das formalidades for de tal ordem que se torne impossível, ou excessivamente difícil para a Requerida efetuar o controlo dos requisitos materiais do direito a dedução, i.e., para assegurar a finalidade para a qual aquelas formalidades são instituídas; ou (ii) perante a demonstração objetiva, por parte da Requerida, da existência de fraude ou abuso;

xix.      Nenhuma das duas razões está presente no caso sub judice, nem nenhuma delas foi alegada pela Requerida em sede própria, ou seja, no RIT;

xx.        No caso sub judice, cada uma das faturas faz menção expressa ao contrato, ao mês e ao ano em que os serviços foram prestados, sendo possível depreender que os mesmos tinham, pela sua própria natureza (e.g., desenvolvimento do negócio, tais como a análise e elaboração de propostas e a definição de estratégias de venda e marketing, serviços de gestão corporativa que incluíam a gestão do orçamento anual, pagamentos de despesas e arquivo de documentos, e apoio em matéria de compliance), um nexo direto com a atividade empresarial de aconselhamento e consultoria imobiliária realizada pela C... Sucursal em território nacional;

xxi.      O descritivo constante das faturas, ao fazer expressa referência ao contrato, permite confirmar que a E... Sucursal era a prestadora dos serviços, que a C... Sucursal era a adquirente dos mesmos, que ambas eram sujeitos passivos de IVA e ainda verificar que tais serviços estavam todos sujeitos a IVA em território nacional e que a taxa normal de 23% foi efetivamente aplicada pela E... Sucursal;

xxii.     Os esclarecimentos prestados pela C... Sucursal possibilitavam à Requerida estabelecer a ligação entre os serviços prestados e o contrato e também, se necessário fosse numa leitura mais exigente do que aquela que o artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva IVA, preconiza e que imporia a “quantificação” dos serviços na fatura, o que se refuta, identificar como foi determinado pela E... Sucursal o preço que serviu de base de incidência do imposto;

xxiii.   A Requerida tinha à sua disposição os dados necessários e suficientes para aferir a correta liquidação e a arrecadação do IVA;

xxiv.   A ligação dos serviços em questão à atividade tributável da C... Sucursal em Portugal é inequívoca e não foi infirmada pela Requerida com recurso a qualquer elemento objetivo;

xxv.     No plano jurídico, a existência e a extensão do direito à dedução do IVA nos inputs não estão dependentes de uma relação de equilíbrio ou proporcionalidade com o IVA liquidado nos outputs;

xxvi.   O direito à dedução é determinado não segundo uma lógica de valor, mas sim de relação ou nexo entre o imposto que é devido ou pago a montante na aquisição de bens e serviços e operações tributadas a jusante ou, na formulação mais recente do TJUE, de uma relação entre as despesas que dão origem ao IVA dedutível e o conjunto da atividade económica do sujeito passivo, conforme resulta, em primeira linha, do artigo 168.º, da Diretiva IVA;

xxvii.   Conclui, peticionando, a admissão do pedido arbitral, devendo o mesmo ser julgado procedente, por provado e fundado, e, consequentemente, ser declaradas ilegais e anuladas as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios.

2.2.     Argumentos da Requerida 

12.       A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta, na qual contestou os factos alegados, defendendo-se por impugnação, e alegando, em síntese, o seguinte:

i.            O motivo da ação de inspeção foi a apreciação de um pedido de reembolso de IVA, solicitado pela Requerente, no montante de € 42.480,06;

ii.          A AT considerou que o IVA no valor de € 110.505,31 foi indevidamente deduzido, nas faturas emitidas pela E... Sucursal;

iii.         A fundamentação para esta correção reside no facto de as faturas, emitidas pela E... Sucursal à C... Sucursal não terem especificado os serviços concretos;

iv.         A descrição nas faturas era genérica: “Support services related to, mês em causa, 2022, As per Service Agreement dated from 25 june 2021”;

v.          A aludida descrição não permite identificar a que serviços específicos, de entre os 26 tipos listados no contrato, contrariando o disposto na alínea b) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA;

vi.         Embora a C... Sucursal tenha posteriormente remetido um anexo em Excel a fazer a correspondência de valores, ainda assim não se revelou suficiente para considerar colmatar os elementos em falta nas faturas originais;

vii.       Não foi possível associar os gastos incorridos com a atividade exercida, pelo que a C... Sucursal não tem direito à dedução do IVA, nos termos dos artigos 19.º, 20.º e 36.º, do Código do IVA;

viii.      Cumpre salientar a existência de relações especiais entre a E... Sucursal, a empresa fornecedora, e a C... Sucursal, objeto dos fornecimentos de serviços;

ix.         O representante legal da E... Sucursal foi igualmente representante da C... Sucursal durante um determinado período, de 14.04.2021 a 17.06.2021, o que configurou uma relação especial nos termos da alínea d) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC;

x.          No âmbito da ação inspetiva, concluiu-se pela desproporção entre o IVA dedutível e IVA liquidado pela C... Sucursal, designadamente entre o montante do IVA dedutível (€ 117.120,57) e o IVA liquidado (€ 70.696,25) no primeiro trimestre de 2023;

xi.         A descrição constante das faturas analisadas é manifestamente insuficiente para permitir a verificação e controlo adequados, uma vez que o “Service Agreement” a que aquelas faturas remetem prevê um total de 26 tipos distintos de serviços, divididos em três categorias: (1) Serviços de Desenvolvimento de Negócios, (2) Serviços de Gestão Corporativa e (3) Serviços regulares de comunicação de informações; 

xii.       A falta de especificação, em cada fatura, de quais dos 26 serviços foram efetivamente prestados num determinado mês, e em que medida, torna impossível associar os gastos incorridos à atividade exercida de forma concreta e verificável;

xiii.      A Requerida não se limitou a questionar meros requisitos formais das próprias faturas, mas sobretudo a (in)capacidade de verificar os requisitos substantivos do direito à dedução;

xiv.      É que sem uma descrição clara dos serviços faturados individualmente, é inviável aferir a efetiva prestação de cada um dos serviços, a sua natureza, a sua extensão e a sua conexão direta e imediata com as operações tributáveis da C... Sucursal, nos termos e para os efeitos do artigo 20.º, do Código do IVA, e em conformidade com o artigo 168.º, da Diretiva IVA;

xv.        No caso em apreço, a natureza genérica da descrição das faturas, que remete para um contrato que abrange 26 tipos distintos de serviços, impede a Requerida de realizar um controlo eficaz e de verificar a conformidade substantiva dos serviços faturados com a atividade da C... Sucursal;

xvi.      Não é obrigatório que se verifique, ou que a Requerida adiante a hipótese de uma possível ou mesmo real situação de fraude ou de evasão fiscal para levar a cabo, como levou, as correções em sede de IVA que ora se discutem;

xvii.     A impossibilidade de uma clarividente perceção sobre que serviços foram prestados e concomitantemente faturados na esfera da C... Sucursal, a qual não foi afastada pela prestação de elementos/documentos adicionais por si exibidos, justificam as correções propostas e as liquidações adicionais que se lhes seguiram;

xviii.   Não se trata de uma mera omissão de um detalhe supérfluo, mas da falta de elementos essenciais que permitam identificar a natureza e a extensão de cada serviço específico que gerou o valor faturado mensalmente;

xix.      A mera remissão para um contrato “genérico”, com um tão vasto leque de serviços, não satisfaz a exigência de especificação para efeitos de controlo e auditoria;

xx.        O argumento apresentado pela Requerente de que a Requerida não questionou a “materialidade das operações” peca, no mínimo, por falta de rigor;

xxi.      A impossibilidade de “associar os gastos incorridos, com a atividade exercida” é, por si só, uma forma de questionar os requisitos substantivos, uma vez que, sem isso, não se consegue determinar com segurança quais os serviços prestados, em que quantidade/extensão, e se os mesmos conferem o direito à dedução;

xxii.     Não se pode aceitar a dedução de IVA sobre despesas cuja individualização e conexão direta à atividade tributável não podem ser devidamente verificadas através da documentação fiscal obrigatória;

xxiii.   Por seu turno, os esclarecimentos prestados a posteriori pela C... Sucursal, nomeadamente o anexo em Excel, não sanam o vício original das faturas;

xxiv.   A apresentação de uma folha de cálculo após a emissão das faturas, e que não é parte integrante delas, não substitui a obrigatoriedade de a fatura conter os elementos essenciais para o seu propósito de controlo fiscal;

xxv.     As faturas devem permitir a rastreabilidade e a verificação da conformidade com as regras de dedução;

xxvi.   Competia à C... Sucursal fornecer informações complementares para suprir as omissões subjacentes à desconsideração do imposto deduzido em faturas de aquisição de serviços, que não descriminam a natureza dos serviços prestados, desconhecendo-se os elementos que permitiram quantificá-los, como lhe competia, à luz das regras de repartição do ónus da prova, ínsito no n.º 1 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”);

xxvii.  Resulta assim evidente que, quer em contexto inspetivo, quer, depois, em contexto arbitral, a C... Sucursal não logrou provar em que medida é que o imposto suportado sobre os serviços adquiridos contribuiu para a realização das suas operações a jusante;

xxviii.       Conclui peticionando que seja proferida decisão que julgue improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, absolvendo-se a Requerida dos pedidos, com todas as consequências legais.

3.          Saneamento

13.       O presente pedido foi tempestivamente apresentado, nos termos do artigo 10.º, n.º 1 alínea a), do RJAT.

14.       O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT.

15.       As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

16.       O processo não enferma de nulidades.

4.          Da matéria de facto

4.1.     Fundamentação da matéria de facto

17.       Compete ao Tribunal o dever de selecionar os factos relevantes para a decisão da causa, discriminando a matéria considerada provada e declarar aquela que entende como não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos fácticos alegados pelas partes, conforme estabelecido pelo artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e pelo artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vido artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

18.       Os factos pertinentes para o mérito da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, tendo como parâmetro as soluções possíveis das questões de direito relativas ao objeto do litígio, nos termos do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

19.       Considerando a posição assumida pelas partes, bem como o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, e o pedido de pronúncia arbitral constante dos autos, foram tidos como provados e não provados, com relevo para a presente decisão, os factos acima elencados, com base numa análise crítica e conjugada com os documentos constantes dos autos.

20.       Não se deram como provados nem não provados as alegações das Partes que, apresentados como factos, consistem em afirmações de natureza conclusiva, insuscetíveis de demonstração, cuja veracidade se terá de aferir à luz da matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos que se deram como provados.

4.2.     Factos provados 

21.       Consideram-se como provados os seguintes factos, assentes na prova documental constante dos autos: 

A.         A Requerente é uma sociedade de direito espanhol, com sede em Madrid, que se dedica à prestação de serviços de aconselhamento, consultoria e mediação imobiliária, bem como quaisquer serviços relacionados com os antecedentes, e ainda o desenvolvimento, exploração e comercialização de imóveis, incluindo estabelecimentos comerciais, escritórios e centros comerciais;

B.         A Requerente constituiu uma sucursal em território português, a C... Sucursal;

C.         No dia 25 de junho de 2021, a E... Sucursal e a C... Sucursal celebraram um “CONTRATO DE SERVIÇOS” (“SERVICES AGREEMENT”), nos termos do qual aquela se comprometeu a prestar a esta, em conformidade com a cláusula 2.ª e o anexo 1 a este contrato, um conjunto de serviços repartidos em três categorias: 

i.            serviços de desenvolvimento do negócio (“Business Development Services”), compreendendo, por exemplo, a assistência e aconselhamento da C... Sucursal no contexto da gestão diária da sua atividade empresarial, na definição da estratégia e identificação de potenciais oportunidades de negócio, a análise e elaboração de propostas, a análise financeira e revisão de dados financeiros e a definição da estratégia de vendas e marketing; 

ii.          serviços de gestão corporativa (“Corporate Management Services”), incluindo a elaboração dos planos de negócio e a gestão do orçamento anual, apoio no recrutamento de colaboradores, gestão de contas bancárias e arquivo e gestão documental; e 

iii.         serviços regulares de comunicação de informações (“Regular Reporting Services”), tais como o registo de todas as transações em que a C... Sucursal interveio como mediadora imobiliária, o apoio no fornecimento periódico de informações exigidas pelo IMPIC e a definição de políticas internas legalmente exigidas em matéria de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo; 

D.         A C... Sucursal iniciou a sua atividade em 1 de julho de 2021 sob o código CAE-Rev.3 68311 – atividades de mediação imobiliária e ficou enquadrada no regime normal trimestral de IVA;

E.         A constituição da C... Sucursal foi motivada pela limitação imposta pelo IMPIC à emissão de licenças para o exercício da atividade de mediação imobiliária a sucursais em território português de empresas do Reino Unido após a saída deste da União Europeia;

F.         Este facto obstou a que a E... Sucursal, a sucursal em território português da D... UK, pudesse obter uma licença de mediação imobiliária junto do IMPIC;

G.        A C... Sucursal obteve junto do IMPIC a licença n.º ...-RAMI para o exercício da atividade imobiliária em Portugal;

H.        Em 10 de agosto de 2022, foi constituída a G... Unipessoal, sociedade de direito português cujo capital social é detido na totalidade pela Requerente e com o mesmo objeto social;

I.           A E... Sucursal emitiu, entre 26 de outubro de 2022 e 22 de fevereiro de 2023, 6 faturas à C... Sucursal, referentes aos serviços prestados ao abrigo do contrato celebrado entre ambas;

J.          Nessas faturas emitidas pela E... Sucursal à C..., foi liquidado IVA à taxa normal de 23%, o qual ascendeu ao montante de € 110.505,31;

K.        Nessas faturas emitidas pela E... Sucursal à C... Sucursal, constava a descrição “Support services related to [mês em causa] 2022, As per Service Agreement dated from 25 june 2021”;

L.         A licença de mediação imobiliária concedida à C,.. Sucursal foi cancelada pelo IMPIC em 13 de abril de 2023;

M.        O cancelamento da licença teve por base a exigência introduzida pelo IMPIC de que qualquer sociedade estrangeira que pretendesse prestar serviços de mediação imobiliária em Portugal, por mais de um ano, teria de constituir uma sociedade no País para esse efeito;

N.         A C...Sucursal cessou a sua atividade para efeitos de IVA e IRC em 29 de março de 2023;

O.        Na declaração periódica de IVA respeitante ao primeiro trimestre de 2023, a C... Sucursal solicitou o reembolso de imposto no montante de € 42.480,06;

P.         Essa solicitação deu origem ao pedido de reembolso de IVA n.º...;

Q.        Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., emitida em 19 de maio de 2023, foi instaurado pela Requerida um procedimento de inspeção tributária dirigido à C... Sucursal, interno e de âmbito parcial, em sede de IVA, para o primeiro trimestre de 2023;

R.         A Requerente foi notificada do projeto do relatório de inspeção tributária para, querendo, exercer o seu direito de audição, em 17 de novembro de 2024;

S.          A Requerente não exerceu o seu direito de audição dentro do prazo que lhe foi concedido para o efeito pela Requerida;

T.         A Requerente foi notificada do RIT, datado de 10 de janeiro de 2025, do qual resultou o indeferimento do pedido de reembolso de IVA, referente ao período de 2023.03T, no montante de € 42.408,06, e a proposta de liquidação adicional de IVA, no montante de € 68.097,25;

U.         Constam do RIT os seguintes fundamentos para as correções de IVA realizadas pela Requerida:

IV.2. Análise do pedido de reembolso

Para aferir da legitimidade do crédito de imposto que originou o pedido do reembolso foram, nos termos do artigo 85.º do Código do IVA solicitados ao S.P., alguns elementos contabilísticos, designadamente faturas comprovativas dos custos incorridos e dos proveitos realizados.

Da análise efetuada aos documentos remetidos pelo sujeito passivo, às declarações periódicas de IVA e a outros elementos constantes do Sistema Informático, salientamos os pontos que consideramos de relevância para o crédito em causa, nomeadamente:

IV.2.1. Operações Ativas (de 2022.12T a 2023.03T)

campo 3 (=€ 307.375,00) representa 100% do seu VN e dele constam apenas duas faturas, cujo respetivo IVA foi liquidado à taxa normal, no campo 4 (=€ 70.696,25):

A fatura n.º 11220009 foi emitida ao cliente “H... S.A.”, NIF:... e diz respeito a “serviços de consultoria pela venda de terrenos”, designados por: Lote 1, sito em..., na freguesia de ..., concelho de Vila Franca de Xira e inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo ... .º da União das Freguesias de ... e ... .

A outra Fatura (n.º 11220010) foi emitida ao cliente “I... S.A.”, NIF: ... e diz respeito a “Fees” (Comissões de Venda), de 1% e 1,25% respetivamente, pela venda de 2 “blocos” de imóveis (na R. ... n.ºs 75, 77, 79, 81, 83 e 85 e outro “bloco” na Rua ... n.ºs 1 a 15, tornejando para a ... n.º ... a ... e ... n.º 20 a 23).

Para efeitos de localização e tributação das operações, os serviços de mediação imobiliária, na venda de um imóvel, consideram-se, efetuados no local onde se situa o imóvel a que respeitam, enquadrando-se, por conseguinte, aquelas operações na alínea a), do n.º 8, do artigo 6.º do CIVA. 

Foram enviados os respetivos Contratos assinados com estes clientes verificando-se que foram estabelecidos Contratos de Prestação de Serviços relativos a “serviços de consultoria e mediação imobiliária, com vista a concretizar a venda dos imóveis”, em regime de exclusividade no caso do cliente H... e em regime de não-exclusividade, com o cliente I... . 

Foi ainda enviado o extrato bancário do Banco J..., onde se verifica o crédito em conta daqueles montantes faturados.

IV.2.2. Operações Passivas (de 2022.12T a 2023.03T)

campo 24 (= € 117.120,57) representa 100% do total do IVA deduzido e dele consta a dedução de imposto relativo à aquisição de prestação de serviços de contabilidade e auditoria, tarefas administrativas e obrigações fiscais, serviços jurídicos, sendo a despesa mais avultada (=€ 110.505,31), aquela que diz respeito a serviços de consultoria, prestados pela firma: E... Limited - Sucursal em Portugal NIF: ... (assinalada a cinzento no esquema do Ponto Il1.1). 

Visto que, só estes serviços de consultoria, apresentam por si só, um valor elevado (=€ 110.505,31 de IVA deduzido, a que corresponde uma Base Tributável de € 478.705,47) foram também solicitados ao SP, os respetivos meios de pagamento (verificando-se que as faturas aleatoriamente selecionadas foram pagas àquela Sucursal, NIF: ..., através de transferência bancária, tendo para o efeito o S.P. remetido cópia dos Extratos de Conta do Banco J..., onde se verificam aqueles pagamentos).

Igualmente se solicitou o respetivo Contrato de Prestação de Serviços assinado entre ambas as entidades, tendo o S.P. remetido cópia do original (redigido em língua inglesa) e uma cópia do mesmo, traduzido para português. Nesse Contrato verifica-se que os serviços adquiridos à firma inglesa (por intermédio da s/ sucursal portuguesa NIF: ...) foram os seguintes:

  

 

 

 

 

IV.2.3. Outros elementos observados: 

IV.2.3.1. Relações Especiais

Verificou-se a existência de relações especiais, entre as sociedades não residentes NIF: ... e NIF: 980708214 (o SP), sociedades estas que assinaram entre si, o Contrato de serviços de consultoria, cujo IVA de valor expressivo, se encontra deduzido no campo 24 (=€ 110.102,26).

Ou seja, verificou-se através da Certidão Permanente, que o representante da firma, “E...- Sucursal em Portugal" NIF: ... (Sr. K... NIF: ...), sendo fornecedor/prestador de serviços do SP NIF:..., foi também representante da firma NIF: ... – C... - Sucursal em Portugal (sua cliente), no período de 2021/04/14 a 2021/06/17.

Também nos 2 Contratos enviados, para as operações declaradas no Campo 3 da DP IVA, se verifica a intervenção deste Sr. K..., ou seja:

- Para o Contrato assinado dia 27 junho de 2022, com a I..., para a venda dos imóveis em Lisboa, (cuja 1º e 22º páginas se reproduzem de seguida), verifica-se, na página 22 – Apêndice I, que a pessoa de contato é K... .

- Para o Contrato assinado dia 7 novembro de 2022, com o H..., para a venda do Lote de terreno (Lote 1), (cuja 1º e última página se reproduzem abaixo), se verifica que ele foi assinado e rubricado no canto superior direito, por este K... NIF:... .

Sendo que, este senhor, à data da assinatura daqueles 2 Contratos (com a I... em 27/06/2022 e com o H... em 07/11/2022), já tinha deixado há muito tempo, de ser representante do SP (NIF:...); tendo renunciado àquele cargo dia 2021/06/02, conforme se retira da Certidão Permanente do SP, NIF: ... (cujo print também se reproduz de seguida).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

H...

 

Constata-se assim a existência de relações especiais, nos termos da alínea d), do n.º 4, do artigo 63.º do CIRC, ou seja:

“d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas (...)”

IV.2.3.2. Desproporção entre o IVA dedutível e o IVA liquidado

Pelos elementos enviados verificou-se ainda a existência duma clara desproporção entre o montante do IVA dedutível (=€ 117.120,57) e o montante do IVA liquidado (=€ 70.696,25) no período do crédito de imposto agora analisado (de 2022.12T a 2023.037T).

Sabendo-se que o objetivo das empresas é o Lucro, este nível de custos comprometerá a saúde financeira da empresa de mediação imobiliária, a qual está diretamente relacionada, com o equilíbrio entre as comissões ganhas (proveitos) e os custos. Uma má gestão de custos pode vir a comprometer seriamente o negócio.

V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

V.1. IVA indevidamente deduzido

Verificou-se que foi deduzido nas DP IVA, Campo 24, dos períodos 2022.12T, (Linhas 7,8 e 9 da Relação de Fornecedores) e do período 2023.03T, Linha 1, o imposto suportado, no montante de € 110.505,31, relativo às faturas emitidas pelo seu prestador de serviços: “C...- Sucursal em Portugal” NIF: ..., conforme detalhe abaixo:

 

E...

 

 

Todas aquelas faturas, apresentam apenas na sua descrição, a seguinte expressão:

“Support services related to”, mês em causa, “2022, As per Service Agreement dated from 25 june 2027”.

Solicitados esclarecimentos ao SP, viria a informar que:

“os serviços em causa, resultam do Contrato disponibilizado no ponto 3.2” (da notificação do pedido elementos), “a faturação assenta nos custos incorridos pela F... UK nos meses em causa, acrescidos de 3,79% conforme contrato”

Apesar desta explicação constata-se que as faturas não especificam, quais, de entre os 26 tipos de serviços que constam do Contrato assinado entre ambas as empresas (e cujo print de 2 páginas, se encontra no Ponto |V.2.2.), não especificam para cada fatura emitida, a que serviços em concreto, se referem, contrariando assim a alínea b), do n.º 5, do artigo 36.º do CIVA.

Não se sabe assim, em cada uma das faturas emitidas pelo NIF: ... que serviços foram por si desenvolvidos para o SP, NIF: ..., num determinado mês. A citada descrição nas faturas, apenas remete para um contrato, genérico.

Tendo-se questionado o SP sobre este tema, veio posteriormente remeter um anexo em excel, onde fez a correspondência de valores do excel, com os montantes constantes nas ditas faturas. 

No entanto, apesar de ter feito esta correspondência de valores à posteriori, o que é certo é que as faturas, contêm os referidos elementos em falta.

Não é assim possível, associar os gastos incorridos, com a atividade exercida, uma vez que o Contrato apresentado e as correspondentes faturas de gastos, não o permitem, pelo que nos termos do artigo 19.º, 20.º e 36.º, todos do CIVA, não tem o SP direito à dedução de € 110.505,31.

V.3. Resumo das Correções propostas

De acordo com os pontos anteriores, as correções propostas totalizam € 110.505,31, conforme se resumem no quadro seguinte:

De acordo com o anteriormente exposto propõe-se que o pedido de reembolso solicitado, relativo ao período 2023.03T, seja indeferido, por insuficiência de crédito, dando ainda origem a uma liquidação adicional de € 68.097,25.” (com negritos no próprio texto).

V.         No decurso da inspeção tributária realizada pela Requerida, a Requerente remeteu-lhe um documento em Excel, onde era feita a correspondência entre os valores aí mencionados e os montantes constantes das faturas emitidas pela E... Sucursal à C... Sucursal;

W.       Em 22 de janeiro de 2025, a Requerida emitiu o ato de liquidação adicional de IVA relativo ao primeiro trimestre de 2023 (20233T) com o n.º 2025..., no montante de € 68.097,25, e o ato de liquidação de juros compensatórios e moratórios com o n.º 2025..., no montante de € 4.698,55, ambos dirigidos  à C... Sucursal;

X.         A Requerente apresentou no CAAD, em 7 de abril de 2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação daqueles atos de liquidação de IVA e juros compensatórios e moratórios.

4.3.     Factos não provados

22.       Dos factos com interesse para a decisão da causa, todos devidamente analisados, não se provaram aqueles que não constam da factualidade acima descrita.

5.          Matéria de Direito

5.1.     Questão decidenda

23.       Atenta a posição das partes, constitui questão central a dirimir a apreciação da legalidade da correção promovida pela Requerida e da qual resultaram as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios e moratórios contestadas pela Requerente.

24.       Em concreto, cumpre apreciar se os requisitos para o exercício do direito à dedução do IVA se mostram comprovadamente cumpridos no caso sub judice, tendo em conta a fundamentação arguida pela Requerida de que as faturas que suportariam esse direito da Requerente padeceriam de um (eventual) vício de forma centrado no descritivo (genérico) constante das mesmas. 

 

5.2.     Das normas aplicáveis à matéria em apreciação nestes autos

25.       O direito à dedução – elemento estrutural fundamental à garantia da neutralidade fiscal de um imposto como o IVA – encontra-se regulado nomeadamente nos artigos 167.º a 192.º, todos da Diretiva IVA, os quais foram transpostos para o ordenamento jurídico nacional, nomeadamente para os artigos 19.º a 26.º, do Código do IVA.

26.       Adicionalmente, e uma vez que o exercício do direito à dedução do IVA pelos sujeitos passivos está igualmente condicionado pelo cumprimento de determinados requisitos formais, associados aos moldes como as faturas devem ser emitidas pelos sujeitos passivos, a Diretiva IVA, no seu artigo 226.º, e o Código do IVA, no seu artigo 36.º, n.º 5, prescrevem as menções que as faturas deverão respeitar para serem devidamente emitidas e, por conseguinte, relevadas para efeito do exercício daquele direito à dedução. 

27.       A seguir, apresentam-se as normas tidas por relevantes para a boa decisão da causa, constantes aqueles diplomas legais, respeitantes ao exercício do direito à dedução do IVA e às menções que devem constar das faturas emitidas por sujeitos passivos.

28.       O artigo 168.º, da Diretiva IVA, estabelece o seguinte:

“Artigo 168. º

Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes: 

a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

b) O IVA devido em relação a operações assimiladas a entregas de bens e a prestações de serviços, em conformidade com a alínea a) do artigo 18.º e o artigo 27. º;

c) O IVA devido em relação às aquisições intracomunitárias de bens, em conformidade com o artigo 2. º, n.º 1, alínea b), subalínea i); 

d) O IVA devido em relação a operações assimiladas a aquisições intracomunitárias, em conformidade com os artigos 21.º e 22.º;

e) O IVA devido ou pago em relação a bens importados para esse Estado-Membro.”.

29.       Por sua vez, rege o disposto no artigo 20.º, n.º 1, do Código do IVA, nos seguintes termos:

“Artigo 20.º

Operações que conferem o direito à dedução

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:

I) Exportações e operações isentas nos termos do artigo 14.º;

II) Operações efectuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efectuadas no território nacional;

III) Prestações de serviços cujo valor esteja incluído na base tributável de bens importados, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 17.º;

IV) Transmissões de bens e prestações de serviços abrangidas pelas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 e pelos n.os 8 e 10 do artigo 15.º;

V) Operações isentas nos termos dos n.os 27) e 28) do artigo 9.º, quando o destinatário esteja estabelecido ou domiciliado fora da Comunidade Europeia ou que estejam directamente ligadas a bens, que se destinam a ser exportados para países não pertencentes à mesma Comunidade;

VI) Operações isentas nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro.”

30.       Ainda a este respeito, prevê o artigo 178.º, alínea a), da Diretiva IVA, o seguinte:

“Artigo 178.º

Para poder exercer o direito à dedução, o sujeito passivo deve satisfazer as seguintes condições:

a) Relativamente à dedução referida na alínea a) do artigo 168.º, no que respeita às entregas de bens e às prestações de serviços, possuir uma fatura emitida nos termos das secções 3 a 6 do capítulo 3 do título XI; […]”.

31.       Nesta sequência e com relevo para a situação sub judice, o artigo 19.º, n.ºs 1, 2 e 6, do Código do IVA, prescreve o seguinte:

“Artigo 19.º

Direito à dedução

1 - Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:

a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;

b) O imposto devido pela importação de bens;

c) O imposto pago pelas aquisições de bens ou serviços abrangidas pelas alíneas e), h), i), j), l) e m) do n.º 1 do artigo 2.º; 

d) O imposto pago como destinatário de operações tributáveis efectuadas por sujeitos passivos estabelecidos no estrangeiro, quando estes não tenham no território nacional um representante legalmente acreditado e não tenham facturado o imposto;

e) O imposto pago pelo sujeito passivo à saída dos bens de um regime de entreposto não aduaneiro, de acordo com o n.º 6 do artigo 15.º

2 - Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:

a) Em faturas passadas na forma legal; 

b) No recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação, bem como em documentos emitidos por via eletrónica pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos quais constem o número e a data do movimento de caixa.

c) Nos recibos emitidos a sujeitos passivos enquadrados no «regime de IVA de caixa», passados na forma legal prevista neste regime.

[…]

6 - Para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos. […]”

32.       Dada a ligação que as normas acima citadas fazem entre o exercício do direito à dedução do IVA e a emissão de faturas, a Diretiva IVA determina, no artigo 226.º, o seguinte, a respeito do conteúdo das faturas a emitir pelos sujeitos passivos:

“Secção 4

Conteúdo das faturas

Artigo 226.º

“Sem prejuízo das disposições específicas previstas na presente diretiva, as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas faturas emitidas em aplicação do disposto nos artigos 220.º e 221.º são as seguintes:

1) A data de emissão da fatura;

2) O número sequencial, baseado numa ou mais séries, que identifique a fatura de forma unívoca;

3) O número de identificação para efeitos do IVA, referido no artigo 214.º, ao abrigo do qual o sujeito passivo efetuou a entrega de bens ou a prestação de serviços;

4) O número de identificação para efeitos do IVA do adquirente ou destinatário, referido no artigo 214.º, ao abrigo do qual foi efetuada uma entrega de bens ou uma prestação de serviços pela qual aquele seja devedor do imposto ou uma entrega de bens referida no artigo 138.º;

5) O nome e o endereço completo do sujeito passivo e do adquirente ou destinatário;

6) A quantidade e natureza dos bens entregues ou a extensão e natureza dos serviços prestados;

7) A data em que foi efetuada, ou concluída, a entrega de bens ou a prestação de serviços ou a data em que foi efetuado o pagamento por conta, referido nos pontos 4) e 5) do artigo 220.º, na medida em que essa data esteja determinada e seja diferente da data de emissão da fatura;

7-A) Quando o IVA se torna exigível no momento em que o pagamento é recebido em conformidade com a alínea b) do artigo 66.º e o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, a menção «Contabilidade de caixa»;

8) O valor tributável para cada taxa ou isenção, o preço unitário líquido de IVA, bem como os abatimentos e outros bónus eventuais, se não estiverem incluídos no preço unitário;

9) A taxa do IVA aplicável;

10) O montante do IVA a pagar, salvo em caso de aplicação de um regime especial para o qual a presente diretiva exclua esse tipo de menção;

10-A) Quando a fatura for emitida pelo adquirente ou destinatário da entrega de bens ou da prestação de serviços, e não pelo fornecedor ou prestador, a menção «Autofaturação»;

11) Em caso de isenção, a referência à disposição aplicável da presente diretiva, ou à disposição nacional correspondente, ou qualquer outra menção indicando que a entrega de bens ou a prestação de serviços beneficia de isenção;

11-A) Quando o adquirente ou destinatário for devedor do imposto, a menção «Autoliquidação»; […]”.

33.       Esta norma da Diretiva IVA veio a ser transposta para o Código do IVA, dispondo o artigo 36.º, n.º 5, nos seguintes termos:

“Artigo 36.º

Prazo de emissão e formalidades das faturas

[…]

5 - As faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter os seguintes elementos: 

a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente sujeito passivo do imposto, bem como os correspondentes números de identificação fiscal; (Redação dada pelo Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro)

b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efectivamente transaccionadas devem ser objecto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução;

c) O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável;

d) As taxas aplicáveis e o montante de imposto devido;

e) O motivo justificativo da não aplicação do imposto, se for caso disso;

f) A data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, em que os serviços foram realizados ou em que foram efectuados pagamentos anteriores à realização das operações, se essa data não coincidir com a da emissão da factura.

No caso de a operação ou operações às quais se reporta a factura compreenderem bens ou serviços sujeitos a taxas diferentes de imposto, os elementos mencionados nas alíneas b), c) e d) devem ser indicados separadamente, segundo a taxa aplicável. […]”

5.3.     Do mérito

34.       Considerando a posição das partes e a matéria de facto dada como assente, cabe ao tribunal arbitral apreciar se a eventual violação dos requisitos formais cometida pela E... Sucursal na emissão das faturas remetidas à C... Sucursal, durante 26 de outubro de 2022 e 22 de fevereiro de 2023, é ou não motivo bastante para excluir esta do direito à dedução do IVA que foi liquidado por aquela, tendo presente, nomeadamente, os artigos 19.º, 20.º e 36.º, todos do Código do IVA.

35.       Decorre dos autos que a Requerida assenta a sua correção (e da qual os atos de liquidação contestados são uma consequência) arguindo que as faturas emitidas pela E... Sucursal não cumprem com o disposto na alínea b) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, ao remeterem para a seguinte descrição genérica: “Support services related to [mês em causa] 2022, As per Service Agreement dated from 25 june 2011”.

36.       Segundo a Requerida, em cada uma dessas faturas, não é possível identificar concretamente quais os serviços prestados à Requerente, já que tal descrição remete apenas para um contrato genérico, faltando elementos essenciais para a identificação dos serviços concretamente prestados. 

37.       Já a Requerente apresenta a visão contrária, arguindo que a ausência de requisitos formais nas faturas emitidas pela E... Sucursal não é motivo suficiente para a recusa do direito à dedução do IVA, sendo que tal recusa apenas é admissível em circunstâncias (impossibilidade de a Requerida fazer o controlo dos requisitos materiais do direito à dedução ou existência de abuso ou fraude fiscal) que não estão verificadas no caso sub judice.

38.       Procede-se, assim, à análise do preenchimento dos requisitos materiais associados ao exercício do direito à dedução do IVA e, primordialmente, dos requisitos formais exigidos na emissão das faturas que lhe estão inerentes, com vista a verificar a existência de eventuais incumprimentos e as respetivas consequências legais.

39.       Em conformidade com o regime legal estabelecido, o direito à dedução do imposto, previsto nos artigos 167.º a 192.º, da Diretiva IVA, e, no âmbito nacional, nos artigos 19.º a 26.º, do Código do IVA, consiste fundamentalmente na prerrogativa atribuída ao sujeito passivo de deduzir, ao imposto relativo a determinada operação tributável, o imposto suportado nas aquisições de bens ou serviços destinados à realização dessa operação.

40.       De acordo com o disposto no artigo 168.º, da Diretiva IVA, o IVA incorrido nas aquisições realizadas por um sujeito passivo é integralmente dedutível, desde que os bens ou serviços adquiridos sejam utilizados para efeitos das suas operações tributadas.

41.       Este procedimento corresponde a um método de imputação direta que pressupõe a existência de um nexo direto entre a operação ativa e a operação passiva subjacente.

42.       É neste contexto (e em linha com a conexão resultante das normas legais relevantes) que se torna relevante analisar a importância dos requisitos formais e as consequências resultantes do seu eventual incumprimento. 

43.       Em consonância com a jurisprudência do TJUE, bem como com os recentes entendimentos dos tribunais superiores nacionais e arbitrais, o incumprimento de determinadas formalidades relativas à emissão de faturas não implica, necessariamente, a exclusão do direito à dedução, enquanto consequência de uma violação do artigo 226.º, da Diretiva IVA.

44.       Compulsando o paradigmático acórdão do TJUE, no caso Barlis, de 15 de setembro de 2016, no processo n.º C-516/14, extrai-se que “a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito à dedução do IVA” e é à luz desta finalidade que importa analisar se as faturas respeitam as exigências do artigo 226.º, da Diretiva IVA.

45.       De notar que estas exigências podem, por exemplo, ser supridas através de documentos conexos com as faturas que contenham uma apresentação mais detalhada dos serviços em causa e possam ser a estas equiparados, nos termos do artigo 219.º, da Diretiva IVA, na qualidade de documentos que alterem a fatura inicial e a ela façam referência específica e inequívoca (cfr. acórdão Barlis, n.º 34).

46.       Como tal, para o TJUE, “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” (cfr. acórdão Barlis, n.º 42).

47.       No mesmo sentido, veja-se também a síntese da posição da jurisprudência do TJUE que consta da decisão arbitral proferida no processo n.º 96/2018-T, em 30 de outubro de 2018[1]

“Assim, o TJ conclui que o artigo 178.º, alínea a) da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.º 6 desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos – cf. acórdão Barlis, n.º 43 e dispositivo. 

Esta posição já tinha sido anteriormente sufragada nos acórdãos de 30 de setembro de 2010, Uszodaépito kft, C-392/09; de 21 de outubro de 2010, Nidera, C-385/09; de 1 de março de 2012, Kopalnia (ou Polsky Trawertyn), C-280/10; de 27 de setembro de 2012, VSTR, C587/10; de 8 de maio de 2013, Petroma, C-271/12; de 18 de julho de 2013, Evita-K EOOD, C78/12; de 6 de fevereiro de 2014, SC Fatorie, C-424/12 e de 11 de dezembro de 2013, Idexx Laboratories, C-590/13. Esta jurisprudência constante do TJ afirma que, sem prejuízo da importante função documental da fatura, na medida em que pode conter dados controláveis, conquanto estejam cumpridos e demonstrados os requisitos substantivos, a não observância das formalidades não pode, em princípio, levar à supressão do direito à dedução do IVA, reforçando que este “garante a neutralidade na aplicação do IVA, pelo que não poderá ser recusado somente porque os sujeitos passivos negligenciaram certos requisitos formais, quando os requisitos substantivos tenham sido cumpridos” – cf. acórdão Uszodaépito kft, n.º 38).

Na interpretação do TJ, a exigência de dispor de fatura em todos os pontos conforme com as disposições da Diretiva IVA teria uma consequência inaceitável: a de pôr em causa o direito à dedução do sujeito passivo, quando os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura – cf. n.º 48 do acórdão Kopalnia. 

Acresce, neste ponto, e conforme referido na decisão arbitral n.º 3/2014-T, de 6 de dezembro de 2016, convocar o acórdão de 12 de julho de 2012, EMS Bulgaria, C-284/11, “que coloca a questão dos efeitos associados ao incumprimento de formalidades no domínio sancionatório e não no plano (bem distinto) dos efeitos impeditivos ou extintivos do exercício do direito (substantivo) à dedução”.

O referido entendimento tem sido reforçado em jurisprudência posterior, designadamente no acórdão de 15 de novembro de 2017, Rochus Geissel, C-374/16, que recorda que o direito à dedução do IVA não pode, em princípio, ser limitado, e que o regime de deduções visa libertar completamente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas, pelo que a dedução do IVA pago a montante deve ser concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais (n.ºs 40 a 46 do acórdão Rochus Geissel).

De igual forma, o Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, reitera a anterior posição antiformalista e perfilha o entendimento de que, caso ocorra a retificação de faturas que contenham erros (ou omissões), a mesma produz efeitos (retroativos) à data em que as faturas foram inicialmente elaboradas – acórdão Senatex, n.ºs 35 a 43 e dispositivo. 

Porém, em situações de fraude, por exemplo, quando a violação das «exigências formais tiver por efeito impedir a prova certa de que as exigências materiais foram observadas», o TJ confirma a admissibilidade, à luz do direito europeu, da recusa do direito à dedução. 

Neste caso, é necessário que se demonstre que o sujeito passivo «não cumpriu fraudulentamente, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, a maior parte das obrigações formais que lhe incumbiam para poder beneficiar deste direito.» – cf. acórdão de 28 de julho de 2016, Giuseppe Astone, C-332/15, n.º 42 e ponto 2 do dispositivo.

A doutrina nacional é parametrizada pela jurisprudência europeia. Segundo Sérgio Vasques, «[a] complexidade que reveste o regime das faturas e a margem de liberdade que ainda é deixada aos estados-membros nesta matéria têm levado à multiplicação de litígios junto do TJUE relativos aos requisitos formais para o exercício do direito à dedução do IVA. Nas suas decisões o tribunal, reiterando embora a função da fatura como suporte do direito à dedução, em correspondência com o artigo 178.º da Diretiva, tem permitido que sobre este requisito de forma prevaleça a substância das operações, sempre que isso se mostre necessário para garantir a neutralidade do IVA e não coloque risco demasiado» – cf. O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 340-345 (excerto de p. 341).

Miguel Durham Agrellos e Paulo Pichel, também com apoio na jurisprudência comunitária, consideram que os vícios formais apenas são passíveis de impedir o direito à dedução se puserem «razoavelmente em causa a capacidade de cobrança correta do imposto e de fiscalização pelas autoridades tributárias, de tal modo que esta não está em condições de conhecer a realidade material subjacente, em face dos elementos apresentados pelo sujeito passivo» – cf. “Jurisprudência do TJUE sobre Exigências de Forma das Faturas e Direito à Dedução do IVA”, Cadernos IVA 2015, Coord. Sérgio Vasques, Almedina, 2015, pp. 191-211 (o excerto de p. 194).

No mesmo sentido Cidália Lança refere que «de acordo com a jurisprudência daquele Tribunal [TJ], o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA seja concedida se os requisitos substantivos tenham sido cumpridos, mesmo se os sujeitos passivos tiverem negligenciado certos requisitos formais» – cf. Anotação ao artigo 36.º do Código do IVA: Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coord. e Organização Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Almedina, 2014, p. 340.”.

48.       Os artigos do Código do IVA que estabelecem requisitos formais para o exercício do direito à dedução — nomeadamente os artigos 19.º e 36.º — devem ser interpretados à luz da jurisprudência do TJUE, amplamente reconhecida e aplicada pelos tribunais nacionais. 

49.       Esta jurisprudência admite expressamente, conforme acima referido, o recurso a outros meios de prova para assegurar um dos princípios estruturantes do sistema de IVA: o direito à dedução. 

50.       Deste entendimento resulta que eventuais irregularidades meramente formais, suscetíveis de suprimento, não podem obstar ao exercício desse direito, exceto nas situações em que existam indícios de fraude ou má-fé, circunstâncias que, no presente caso, não foram sequer alegadas.

51.       Deste modo, em conformidade com a orientação jurisprudencial vigente, o incumprimento de exigências formais, por si só, não constitui obstáculo ao exercício do direito à dedução, desde que a Requerente demonstre a efetiva realização das operações subjacentes. 

52.       Impõe-se, portanto, apreciar, nestes termos, sobre quem recai o ónus da prova quanto ao direito à dedução, especialmente no que respeita à demonstração da efetividade das operações realizadas subjacentes.

53.       Resulta do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, que “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.", o qual está em consonância com o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual “[a]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

54.       Existe ampla jurisprudência que atribui à Requerida o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua atuação, competindo à Requerente (enquanto sujeito passivo) a prova dos factos que operam como suporte das pretensões e direitos por si invocados (cfr., neste sentido, a decisão arbitral proferida no processo n.º 236/1014-T, em 4 de maio de 2015, e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0951/11, em 26 de fevereiro de 2014).

55.       No que concerne à matéria relativa ao ónus da prova, existe vasta jurisprudência, quanto a questão semelhante, de interesse para o caso em apreço, destacando-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo 02840/09.6BEPRT, de 6 de março de 2024, o qual refere o seguinte:

“Quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução, ou seja, cabe a este alegar e demonstrar que, no caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos.”.

56.       Dessa forma, em conformidade com a legislação e jurisprudência mencionadas, incumbe à Requerente o onus probandi relativamente ao exercício (e fruição) do seu direito à dedução do IVA. 

57.       Prossegue-se, portanto, para a análise detalhada das operações relacionadas com as faturas postas em crise pela Requerida.

58.       Para efeitos de IVA, o exercício do direito à dedução encontra-se condicionado à: 

i.           efetiva realização das operações; e 

ii.          existência de uma ligação direta e imediata entre os bens e serviços adquiridos (sujeitos a IVA) e a intenção, devidamente comprovada por elementos objetivos, de realizar operações de transmissões de bens e prestações de serviços que confiram esse direito, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código do IVA.

59.       Conforme consta dos autos, a atividade desenvolvida pela Requerente, através da C... Sucursal, configura uma atividade económica sujeita à tributação em IVA, conferindo-lhe o direito à dedução, nos termos do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, do Código do IVA. 

60.       Aliás, tal facto não é nunca colocado em causa pela Requerida.

61.       Para que se possa determinar a dedutibilidade do IVA relativo aos serviços adquiridos pela C... Sucursal, é necessário, mas também suficiente, apurar a efetiva prestação desses serviços, a respetiva medida e a correlação com a atividade desenvolvida por esta.

62.       A Requerente demonstrou nos autos, de forma contextualizada e circunstanciada, que, no âmbito do exercício regular da sua atividade, contratualizou com a E... Sucursal a prestação de serviços de diversa natureza, as quais geraram fluxos financeiros entre as partes e estão suportadas documentalmente pelas faturas emitidas pela E... Sucursal. 

63.       Note-se, de resto, que a própria Requerida, em sede de RIT, admite, por um lado, que as faturas emitidas pela E... Sucursal respeitam a um contrato celebrado entre esta e a C... Sucursal e, por outro, que esse contrato detalha, de modo claro, a quantidade (26) e a natureza dos serviços a prestar por aquela a esta.

64.       Resulta ainda do RIT e também da resposta (cfr. artigos 28.º e 53.º), que a Requerida conseguiu fazer a correspondência entre os valores pagos pela C... Sucursal com os montantes constantes das faturas emitidas pela E... Sucursal. 

65.       Cumpre salientar, a este propósito, em consonância com o entendimento reiterado pelo TJUE e pelo Supremo Tribunal Administrativo, que a descrição constante nas faturas não carece de carácter exaustivo, nem constitui um fim em si mesma, funcionando, antes, como um dos instrumentos destinados a permitir o controlo das operações realizadas, verificação dos pagamentos devidos (incluindo taxas ou isenções) e confirmação do direito à dedução.

66.       Veja-se, neste sentido, o já citado e melhor identificado Acórdão Barlis do TJUE:

43 Daqui resulta que a Administração Fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.ºs 6 e 7, da Diretiva 2006/112, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos.

44 A este respeito, a Administração Fiscal não deve limitar‑se ao exame da própria fatura. Deve igualmente ter em conta informações complementares prestadas pelo sujeito passivo. Esta constatação é confirmada pelo artigo 219.º da Diretiva 2006/112 que equipara a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca.”.

67.       Jurisprudência esta que foi reiterada pelo TJUE, por exemplo, no despacho de 13 de dezembro de 2018, Mennica Wrocławska sp. z o.o., C-491/18, ao expressar que “[o] artigo 168.º, alínea a), o artigo 178.º, alínea a) e o artigo 226.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, conforme alterada pela Diretiva 2010/45/UE do Conselho, de 13 de julho de 2010, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que as autoridades fiscais nacionais recusem ao sujeito passivo o direito de deduzir o imposto sobre o valor acrescentado devido ou pago a montante apenas com o fundamento de que as faturas passadas contêm um erro relativo à identificação das mercadorias objeto das transações em causa, quando o sujeito passivo, antes de as autoridades fiscais tomarem uma decisão a seu respeito, lhes apresentou os documentos e explicações necessários à determinação do objeto real dessas transações, que comprovam a sua realidade”.

68.       Ora, a própria Requerida nunca pôs em causa – nomeadamente em sede de inspeção tributária – que os serviços contratados entre a E... Sucursal e a C... Sucursal não tivessem sido efetivamente prestados por aquela a esta.

69.       Também decorre dos autos, reitere-se, que a Requerida conseguiu complementar as informações constantes nas faturas emitidas pela E... Sucursal, com outros documentos, tais como o contrato celebrado entre esta e a C... Sucursal, extratos bancários comprovativos dos pagamentos efetuados por esta àquela através de transferências bancárias e ainda um documento em formato Excel.

70.       Nada resulta igualmente dos autos – nem a Requerida fez menções expressas nesse sentido em sede inspetiva – que ponha em causa a conclusão de que existe uma ligação direta e imediata entre os serviços adquiridos a montante (sujeitos a IVA) pela C... Sucursal e as prestações de serviços (sujeitas a IVA) prestadas a jusante por esta.

71.       Portanto, mesmo diante de eventuais deficiências, omissões ou imperfeições formais que possam afetar as faturas emitidas pela E... Sucursal à C... Sucursal, resta comprovada a realidade das operações a que as mesmas reportam, permitindo o exercício do direito à dedução do IVA suportado por esta.

72.       Em face do exposto, conclui-se que a Requerente reúne os requisitos materiais necessários para exercer o direito à dedução do IVA, estando cumpridas as exigências estabelecidas pelos artigos 19.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, do Código do IVA, bem como nos artigos 168.º e 169.º, da Diretiva IVA, relativamente aos serviços adquiridos junto à sociedade E... Sucursal.

73.       É certo que a Requerida, no âmbito do RIT, invocou, igualmente, a existência de relações especiais entre a C... Sucursal e a E... Sucursal, ao abrigo do disposto na alínea d) n.º 4 do artigo 64.º do CIRC, e de uma desproporção entre o IVA dedutível e o IVA liquidado, na esfera da C... Sucursal.

74.       Sucede, porém, que, por referência a ambas as invocações efetuadas pela Requerida, o tribunal não identifica qualquer relação entre os factos apurados e a correção realizada por aquela. 

75.       Por outras palavras, a existência de relações especiais da Requerente não acarreta, no âmbito do RIT, qualquer consequência, imposição ou fundamento legislativo por parte da Requerida que justifique a influência desse regime na correção efetuada em sede de IVA. 

76.       O mesmo se aplica à alegada desproporção entre o IVA dedutível e o IVA liquidado, pois, em sede de RIT, tal situação não teve impacto na decisão de correção relativa ao IVA. 

77.       Quanto a estes argumentos para as correções efetuadas, não pode este Tribunal deixar de notar que tais argumentos assentam em juízos meramente subjetivos, pouco ou nada fundamentados.

78.       Por conseguinte, do anteriormente exposto, conclui-se que as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios e moratórios referentes ao primeiro trimestre de 2023 enfermam de erro nos pressupostos de facto e de Direito, configurando um vício de violação de lei, nos termos do artigo 163.º, do Código de Procedimento Administrativo, aplicável por força dos artigos 2.º, alínea c), da LGT, 2.º, alínea d), do CPPT e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT. 

79.       Em face do exposto, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente de requerer a declaração de ilegalidade daquelas liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios e moratórios, que são objecto do presente pedido, devendo as mesmas ser anuladas nos termos peticionados pela Requerente.

6.          Decisão

80.       Em face do exposto, este Tribunal Arbitral Coletivo, decide o seguinte:

          a.               Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência declarar a ilegalidade e anulação do ato de liquidação adicional de IVA, relativo ao primeiro trimestre de 2023 (20233T), com o n.º 2025 ..., no montante de € 68.097,25, bem como do ato de liquidação dos juros compensatórios e moratórios com o n.º 2025..., no montante de € 4.698,55, ambos datados de 22 de janeiro de 2025; e

          b.               Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais.

7.          Valor do Processo

81.       Fixa-se o valor do processo em € 72.795,80 (setenta e dois mil setecentos e noventa e cinco euros e oitenta cêntimos), correspondente ao valor económico do processo aferido pelo valor das liquidações de imposto e juros impugnadas.

8.          Custas

82.       Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2 448.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida em função do decaimento.

 

Lisboa, 5 de dezembro de 2025

 

 

____________________________

Carla Castelo Trindade - Árbitro Presidente

 

 

______________________________

Rita Guerra Alves – Árbitro Vogal Relator

 

_______________________________

Gonçalo Marquês de Menezes Estanque - Árbitro Vogal

 



[1] Em igual sentido, veja-se a decisão arbitral no processo n.º 353/2020-T, de 30 de dezembro de 2021, e a decisão arbitral no processo n.º 246/2021-T, de 21 de junho de 2021.