SUMÁRIO:
Da jurisprudência e da ratio legis do artigo 10.º, n.º 5 do CIRS extrai-se que, para efeitos desta exclusão de tributação dos ganhos (mais-valias) resultantes da alienação de habitação própria e permanente, o que releva é determinar se o imóvel efetivamente tinha ou não esta finalidade. No caso sub judice, os Requerentes residiam no imóvel, ainda que uma parte estivesse arrendada, e continuaram a ter ali a sua habitação própria e permanente.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Gonçalo Estanque designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 11-06-2025, decide o seguinte:
1. RELATÓRIO
A..., contribuinte fiscal n.º..., e B..., contribuinte fiscal n.º ... (designados por “Requerentes”), vieram, em 31-03-2025, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”) contra o ato tributário de liquidação (oficiosa) de IRS n.º 2023..., referente ao IRS do ano de 2021. Os Requerentes pretendem ver ser decretada a anulação do ato de liquidação de IRS no valor de €54.961,60.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 02-04-2025 e automaticamente notificado à Requerida.
Em 21-04-2025, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação do Árbitro, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o qual comunicou a respetiva aceitação no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
Assim, em conformidade com o disposto no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 11-06-2025.
Em 11-06-2025, em conformidade com o disposto no artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, a Requerida foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar produção de prova adicional.
Em 11-07-2025, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo.
Em 15-07-2025, os Requerentes foram notificados para juntar aos autos os documentos que protestaram juntar aquando da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, bem como para indicar se continua a ter interesse na produção de prova testemunhal e, em caso de resposta afirmativa, quais os pontos da matéria de facto sobre que incidirá o depoimento.
Em 24-09-2025, os Requerentes apresentaram Requerimento onde declararam manter “interesse na produção da prova testemunhal, sendo que o depoimento da testemunha arrolada recairá sobre toda a matéria de facto. Mais indica que se encontram a coligir os documentos em falta requerendo que possa ser concedido prazo de dez dias para o efeito.”
Em 15-10-2025, o Tribunal Arbitral concedeu um novo prazo - até dia 24 de Outubro de 2025 - para que a Requerente viesse juntar aos autos os elementos que protestou juntar.
Em 04-11-2025, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte Despacho:
“1. O Requerente foi notificado, em duas ocasiões, para juntar aos autos os elementos que protestou juntar aquando da apresentação do Pedido de Pronúncia Arbitral. No entanto, tais elementos não foram apresentados. O Tribunal Arbitral obedece, também, ao princípio da celeridade (Art. 29.º, n.º 2 do RJAT) pelo que deverão os autos prosseguir sem os documentos que a Requerente protestou juntar.
2. A Autoridade Tributária e Aduaneira entende ser desnecessária a produção de prova testemunhal. O Requerente não especifica quais os factos a cuja prova se destina a prova testemunhal. Aliás, limita-se a indicar que a prova testemunhal irá "incidir sobre toda a matéria de facto" o que não permite concluir pela sua necessidade. Por outro lado, examinando o pedido de pronúncia arbitral e a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira não se vê controvérsia sobre qualquer questão de facto, e os documentos juntos aos autos permitem formular juízos probatórios sobre toda a matéria de facto de relevante. Assim, não se vê utilidade na produção de prova testemunhal.
3. Dispensa-se a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT dado que, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT, não há necessidade de produção de prova testemunhal.
4. As questões estão suficientemente debatidas nas peças processuais apresentadas pelas Partes, pelo que, em sintonia com o previsto no artigo 113.º do CPPT, subsidiariamente aplicável, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, não há necessidade de alegações.
5. A decisão arbitral será proferida até ao dia 11 de Dezembro de 2025.
6. Antes do dia 11 de Dezembro de 2025 deverá o Requerente proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente e à junção aos autos do respectivo comprovativo.
Notifique-se.“
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
2. MATÉRIA DE FACTO
2.1. FACTOS PROVADOS
Consideram-se provados os seguintes factos:
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Os Requerentes procederam à entrega da Declaração de IRS - Modelo 3 relativa ao ano de 2021, a qual foi identificada com o n.º ...-2021-..., da qual resultou a liquidação n.º 2022..., com o valor a pagar de €11.162,59.
(cfr. processo administrativo).
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Os Requerentes declaram no Anexo G da Declaração de IRS - Modelo 3, relativa ao ano de 2021, a venda de um imóvel sito na Rua ..., n.º..., Lisboa e com a identificação matricial U-... (cfr. processo administrativo).
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No Quadro 5 do Anexo G da Declaração de IRS - Modelo 3, relativa ao ano de 2021, os Requerentes declararam a intenção de reinvestimento do valor de realização (cfr. processo administrativo).
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O imóvel alienado tinha uma das suas divisões arrendadas à sociedade C..., Lda, cuja gerente era a Requerente, B... (cfr. Doc. 3 junto ao PPA).
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A renda mensal, de €2.000, foi declarada no Anexo F da Declaração de IRS - Modelo 3 relativa ao ano de 2021 (cfr. processo administrativo).
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Através do Ofício n.º GI-..., de 21-09-2022, os Requerentes foram notificados para “apresentar cópias: escritura de aquisição e alienação, do art.º urb. n.° ... campo de ourique, documentos comprovativos das despesas, no valor de 91.344,21, e documento bancário com o valor do capital” (cfr. processo administrativo).
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Através do Ofício n.º GI..., de 27-10-2022, os Requerentes foram notificados para exercer Audição Prévia, porquanto a Requerida propunha “corrigir a declaração de IRS. Eliminando o valor do capital em dívida, à data da alienação, por falta de apresentação documento bancário, e corrigindo o valor das despesas para 56.440,00, por falta dos documentos comprovativos das despesas, do art.° urb. n.° ..., campo de ourique.” (cfr. processo administrativo).
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Através do Ofício n.º..., de 13-03-2023, os Requerentes foram notificados, nos termos do artigo 60.º da LGT, para se pronunciarem e exercerem Audição Prévia quanto ao seguinte:
“Da análise efetuada à declaração de IRS, Modelo 3, do ano de 2021 com a identificação .../18, projeta-se corrigir o respetivo anexo G, com os seguintes fundamentos:
Quadro 04:
- Apenas será de considerar a despesa de 56 440,00€ relativa a IMT e IS suportado com aquisição do imóvel alienado;
- Não são aceites outras despesas por não terem sido comprovados com respetivo orçamento, do descritivo das intervenções realizadas, não sendo possível efetuar seu enquadramento em despesas de valorização do imóvel.
Quadro 5:
- Eliminar a informação inserida no campo 5005 (valor em dívida do empréstimo à data da alienação) 654 572,45€, do campo 5006 (valor de realização que pretende reinvestir - sem recurso ao crédito) 425 427,55€, por não estarem preenchidos os requisitos do n° 5 do art. 10 do CIRS uma vez que o imóvel alienado não estava exclusivamente afeto a habitação própria e permanente, conforme contrato de arrendamento realizado com C... Lda, de acordo com a informação inserida no anexo F.” (cfr. processo administrativo).
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Os Requerentes exercerem o respectivo Direito de Audição Prévia, tendo manifestado a sua discordância quanto às propostas de correção com base nos seguintes motivos:
“Custos com obras: foram apresentadas as facturas referentes às obras de melhoramentos efectuadas no imóvel alienado que se encontram emitidas com a informação necessária fiscalmente para a sua aceitação como despesa dedutível (natureza dos trabalhos efectuados e local da realização da obra).
Um orçamento tem um conteúdo prévio aos serviços que pode ou não corresponder aos serviços realmente efetuados, não comprovando a sua efetiva realização, pelo que não pode ser relevante para uma eventual exclusão da despesa.
Por este motivo, discordamos que as despesas de valorização do imóvel não sejam aceitas como gasto dedutível.
Habitação Própria e Permanente: o imóvel alienado era efetivamente a hpp do sujeito passivo e da sua família. No entanto, durante a pandemia Covid 19, não tiveram outra opção que não fosse a de trabalhar a partir de casa numa das fracções de que o imóvel tinha e, para tal, fizeram um contrato de arrendamento exclusivamente dessa fracção à empresa durante esse período, como compensação pela utilização de um espaço privado em benefício de uma outra entidade. Por este motivo e numa altura em que todas as pessoas do mundo se viram obrigadas pelo próprio Estado a ficar confinadas em casa e, como tal, obrigados a mudar os seus postos de trabalho para os seus domicílios e habitações, discordamos que a AT assuma esta posição, pelo que solicitamos que aceite que o imóvel alienado não alterou a sua função e respeitava à hpp do sujeito passivo.” (cfr. processo administrativo)
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Em 27-04-2023, a AT notificou a Requerida de que “Tendo sido notificado nos termos do art°60° da LGT através do ofício n° ... de 2023-03-13, o alegado de audição prévia não permitiu alterar o sentido das correções propostas, pelo que foi corrigido o anexo G nos termos seguintes : Quadro 4 - Será aceite as despesas relativas ao IMT e IS suportado com a aquisição do imóvel, as despesas relativas a obras não são aceites por não ser possível enquadrar as mesmas com despesas de valorização do imóvel alienado. Quadro 5 - Por não estarem preenchidos os requisitos previstos no art° 10 n° 5 do CIRS, foi eliminada a informação constante no campo 5005 - valor em dívida do empréstimo no valor de € 654.572,00 e no campo 5006 - valor de realização que pretende reinvestir no valor de € 425.427,55. Assim, será elaborada declaração oficiosa e apurado o imposto que se mostrar em falta, sendo de acrescer juros compensatórios e instaurado procedimento contraordenacional para exigência da coima devida.” (cfr. processo administrativo).
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A AT emitiu a liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., no valor de €54.961,60 e com a data limite de pagamento de 28/06/2023(cfr. PPA).
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Em 26/10/2023, os Requerentes apresentaram Reclamação Graciosa contra a referida liquidação oficiosa de IRS (cfr. processo administrativo).
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A Requerida indeferiu a Reclamação Graciosa com base nos seguintes fundamentos:

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Em 31-03-2025 os Requerentes apresentaram, por via eletrónica, pedido de constituição de tribunal arbitral.
2.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
2.3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, relativamente à prova produzida, o princípio da livre apreciação.
Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes e nos documentos juntos ao processo por ambas as partes.
3. POSIÇÃO DAS PARTES
No essencial, os Requerentes alegam que:
(i) Alegam que o ato de liquidação não contém a fundamentação de facto e de direito exigida, nomeadamente, pelo artigo 77.º da LGT (cfr. art. 8.º e ss. do PPA);
(ii) o imóvel nunca deixou de ser habitação própria e permanente e o seu domicílio fiscal dos Requerentes, sendo que o artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS exige que o imóvel seja a habitação própria e permanente, mas não exige exclusividade. Os Requerentes defendem, ainda, que a afetação parcial a uma atividade profissional (arrendamento de uma divisão à própria sociedade) não retira ao imóvel a qualidade de habitação própria e permanente. Em defesa da sua tese citam jurisprudência (Acórdãos do TCA Sul e STA) para sustentar que o conceito de domicílio fiscal e habitação própria não têm de coincidir perfeitamente, e que o uso misto não invalida a isenção se a habitação for efetiva.
Por seu turno, a Requerida alega que a liquidação oficiosa resultou de um processo de divergências no qual os Requerentes participaram ativamente, entregando documentos e exercendo o direito de audição prévia. Ou seja, os contribuintes estavam perfeitamente cientes das razões das correções (artigos 5.º a 10.º da Resposta). Ademais, a fundamentação pode ser sumária ou por remissão, desde que clara, o que a Requerida considera ter cumprido (artigos 11.º a 14.º da Resposta).
Adicionalmente, defende a Requerida que o imóvel alienado não era exclusivamente habitação própria e permanente. A existência de um contrato de arrendamento (mesmo que parcial), vigente à data da alienação, impede que o imóvel cumpra o requisito de destino exclusivo habitacional (artigos 35.º a 40.º da Resposta).
4. MATÉRIA DE DIREITO
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Nos presentes autos, atendendo ao pedido e à causa de pedir formulados pelos Requerentes está, tão somente, em causa decidir a (i)legalidade da liquidação adicional de IRS, emitida pela AT, na qual foi desconsiderada a exclusão de tributação, nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, dos ganhos (mais-valias) gerados com a venda de habitação própria e permanente. Em particular, alegou a Requerida que o imóvel não cumpria esse requisito porquanto existia um contrato de arrendamento associado a esse imóvel.
4.1. DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
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Os Requerentes alegam que, “analisada a (...) liquidação, resulta que da mesma não consta a necessária fundamentação, de facto e de direito.”.
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Com o devido respeito não se alcança, de todo, a invocação deste vício. Conforme se extrai da Jurisprudência do STA, “a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto” [1].
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Ou seja, a fundamentação de atos tributários de liquidação - ainda que por remissão ou sintética - é admissível desde que efectuada de forma clara, congruente e de molde a permitir que o administrado, colocado na posição de um destinatário normal, possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração.
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Analisado, por exemplo, o processo administrativo resulta claro que os Requerentes conhecem os fundamentos da AT. Tal é, claramente, descortinado no Direito de Audição exercido antes da emissão da liquidação.
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Termos em que, improcede, pois, o suscitado vício de violação de lei e de falta de fundamentação alegado pela Requerente.
4.2. DA (I)LEGALIDADE DO ATO DE LIQUIDAÇÃO
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Recorde-se que a AT desconsiderou a exclusão de tributação, nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, dos ganhos (mais-valias) gerados com a venda de habitação própria e permanente porquanto existia um contrato de arrendamento associado a esse imóvel, i.e. uma das divisões estava arrendada a uma sociedade cuja gerente era a Requerente, B... .
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No ano de 2021, o n.º 5 do artigo 10.º do CIRS tinha a seguinte redação:
“5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:
a) O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal”
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Importa, em primeiro lugar, referir que, nos termos do n.º 1 do art. 9.º do Código Civil, “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
10. Ou seja, entendemos que, como refere FRANCESCO FERRARA[2], “em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo. (...) nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica”.
11. Assim, o teor literal da norma é o ponto de partida para a interpretação da mesma mas, não é o único elemento a ser valorado. Em particular, é essencial determinar quais os objetivos que levaram à introdução desta norma no Código do IRS.
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A Doutrina tem sido unânime quanto a esse objetivo. Nas palavras de André Salgado Matos[3], esta norma tem um objectivo claro “não onerar fiscalmente a efectivação do direito fundamental à habitação”. Rui Duarte Morais refere que “o objetivo da lei é claro: eliminar obstáculos fiscais à mudança de habitação, em casa própria, por parte das famílias” [4].
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Entendimento este que tem, também, sido acolhido pela nossa Jurisprudência. Em particular, no Acórdão n.º 02566/14.9BEBRG do STA conclui-se que:
“Os motivos subjacentes à exclusão da tributação em I.R.S. das mais-valias cujos valores de realização sejam reinvestidos em habitação própria e permanente assentam na intenção do legislador de favorecer a aquisição de habitação própria e facilitar a mudança de casa. Por outras palavras, o objectivo geral do regime de exclusão da incidência consiste em não embaraçar a aquisição, imediata ou mediata, de habitação própria e permanente financiada com o produto da alienação de um outro imóvel a que fora dado o mesmo destino (cfr.artº.10, nº.5, do C.I.R.S.)”.
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Note-se que a AT nunca colocou em causa o facto de o imóvel ser efetivamente a habitação própria e permanente dos Requerentes. A AT coloca, isso sim, em causa que o imóvel “não se destinava exclusivamente a habitação própria e permanente” (art. 36.º da Resposta). Ora, atendendo ao desígnio do legislador, não se compreende por que razão o arrendamento parcial do imóvel a uma sociedade cuja gerente era a Requerente B... compromete tal intenção. O imóvel não deixou de ser utilizado enquanto habitação própria e permanente devido a esse arrendamento parcial.
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Aliás, como se refere que no Acórdão n.º 0114/15.2BELLE do STA:
“o que releva para aferir da verificação dos requisitos de exclusão da tributação das mais-valias, é saber se o imóvel vendido serviu ou não de “habitação própria e permanente” do impugnante e aqui recorrido, ainda que à data da venda, por condicionalismos específicos do procedimento de divórcio, este residisse noutro local. O que se mostra relevante para o legislador é que o produto da venda de um determinado imóvel com determinação afetação – habitação própria e permanente - seja reinvestido noutro imóvel com a mesma afetação, impondo apenas uma limitação temporal no que respeita ao reinvestimento e à afetação do imóvel destino do reinvestimento.”
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Ou seja, da jurisprudência e da ratio legis do artigo 10.º, n.º 5 do CIRS extrai-se que, para efeitos desta exclusão de tributação, o que releva é determinar se o imóvel efetivamente servia ou não de habitação própria e permanente. No caso sub judice, os Requerentes residiam no imóvel, ainda que uma parte estivesse arrendada, e continuaram a ter ali a sua habitação própria e permanente (algo que, repita-se, a Requerida nunca colocou em causa).
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Termos em que, procede, assim, o pedido de pronúncia arbitral.
5. RESTITUIÇÃO DE QUANTIA PAGA E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Os Requerentes pedem o reembolso da quantia paga com juros indemnizatórios. Como consequência da anulação da liquidação, os Requerentes têm direito a ser reembolsados das quantias que pagaram em excesso.
No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso em apreço, o erro que afecta a liquidação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que as emitiu por sua iniciativa.
Os juros indemnizatórios devem ser contados com base na quantia a reembolsar, desde a data do respectivo pagamento, até integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
6. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral:
(1) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
(2) Anular a liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao IRS do ano de 2021, no valor de €54.961,60;
(3) Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
(4) Julgar procedente o pedido de reembolso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira;
(5) Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios; e
(6) Condenar a Requerida nas custas do processo.
7. VALOR DA CAUSA
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vialíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €54.961,60 indicado no PPA pela Requerente e não contestado pela Requerida.
8. CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT, 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em €2.142,00, ficando as mesmas totalmente a cargo da Requerida.
Notifique-se.
5 de dezembro de 2025.
O Árbitro
Gonçalo Estanque
[1] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-04-2014, proferido no processo n.º 01690/13.
[2] Interpretação e Aplicação das leis, tradução de Manuel de Andrade, 3ª ed., Coimbra, 1978, pp. 127 ss. e 138 ss.
[3] André Salgado Matos, in Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares anotado, ISG,1999, pág. 168.
[4] Rui Duarte Morais in Sobre o IRS, Almedina, Coimbra, 2006, pág.114.