Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 115/2025-T
Data da decisão: 2025-12-02  IVA  
Valor do pedido: € 80.287,33
Tema: IVA. Regularização relativa a créditos de cobrança duvidosa. Efeitos do Processo Especial de Revitalização de Empresas (PER).
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SUMÁRIO

I                A homologação do processo especial de revitalização de empresas (PER) tem implicações para todas as relações obrigacionais pendentes de que a empresa a ele sujeita seja parte, vinculando todos os seus credores.

II              O cerne da revitalização visada com o PER é uma moratória de quase todas as dívidas da empresa, salvo as expressamente exceptuadas.

III            Os efeitos do vencimento das obrigações são postergados para o momento da conclusão do PER.

IV            Num PER, a protecção especial da empresa devedora sobreleva aos interesses de regularização do IVA suportado pelos seus credores.

V              E o interesse dos credores, salvo casos excepcionais expressamente previstos, não deve ser favorecido em detrimento do PER ou em desrespeito pelas finalidades do PER.

VI            A existência de um PER homologado impede que, na sua pendência, existam “créditos considerados de cobrança duvidosa” para efeitos do art. 78.º-A, 1 e 2 do CIVA; apenas permitindo que existam créditos incobráveis, se a sentença homologadora do PER previr o não-pagamento definitivo do crédito.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1.     A..., S.A., pessoa colectiva com NIPC ... (doravante “Requerente”), apresentou, no dia 31 de Janeiro de 2025, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), e 10.º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1.º e 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.     A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa por ele apresentada (n.º ...2024...), relativa ao acto de liquidação de IVA n.º 2024 ... (acrescida de juros de mora, liquidação n.º 2024...) referente ao período de 2022/03 (demonstrações de acerto de contas n.º 2024 ... e n.º 2024 ...), no montante total de € 80.287,33, tendo por objecto mediato a anulação das referidas liquidações, peticionando a restituição do imposto indevidamente pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

4.     O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

5.     As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

6.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 11 de Abril de 2025.

7.     Por Despacho de 16 de Abril de 2025, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.

8.     A AT apresentou a sua Resposta em 14 de Maio de 2025, juntamente com o processo administrativo.

9.     Por Despacho de 30 de Maio de 2025, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.

10.  A Requerente apresentou alegações em 12 de Junho de 2025, e a Requerida apresentou alegações em 20 de Junho de 2025.

11.  O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objecto do processo.

12.  O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

13.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

14.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

15.  O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.     A Requerente é uma sociedade anónima, registada para o exercício da actividade principal de comércio por grosso não especializado (CAE 046900), e, como secundárias, o comércio por grosso de peles e couros (CAE 046240), o comércio por grosso de veículos automóveis ligeiros (CAE 046711) e o comércio por grosso de produtos farmacêuticos e médicos (CAE 046460), actividades sujeitas a imposto e que conferem o direito à dedução.

2.     A Requerente está enquadrada no regime normal de IVA com periodicidade mensal, por força do disposto no art. 41.º, 1, a) do CIVA.

3.     No âmbito da sua actividade, a Requerente forneceu à sociedade B..., S.A., NIF ...  (“Devedora” ou “B...”), diversa mercadoria, emitindo as correspondentes facturas entre 23/03/2020 e 20/10/2020.

4.     A Requerente liquidou e entregou o IVA relativo a essas facturas.

5.     A B... não pagou a totalidade dessas facturas, pelo que, decorridos 12 meses do vencimento, a Requerente pretendeu recuperar o IVA subjacente, ao abrigo do regime de regularizações do art. 78.º-A do CIVA.

6.     Para efeito de recuperar o IVA subjacente às facturas não-pagas, a Requerente deduziu, em, 15/09/2021, um Pedido de Autorização Prévia (“PAP”), n.º ..., relativo às seguintes facturas, que perfazem um valor total de € 71.271,46 (discriminando-se o n.º da factura, o período correspondente, data de vencimento, IVA da factura e IVA em dívida):

7.     A 29/11/2021, a Requerente deduziu outro PAP com o nº ..., no valor de € 7.051,31, relativamente à fatura n.º NN A/22175, igualmente devida pela B... e com vencimento a 20/10/2020.

8.     A 22/02/2022, a Requerente foi notificada do deferimento dos PAP indicados, para regularização, a favor da Requerente, do IVA, no valor global de € 78 322, 77, subjacente aos créditos detidos sobre a B..., ao abrigo do art. 78.º - B do CIVA.

9.     Face a esse deferimento, e face ao disposto no art. 78.º-B, 8 do CIVA, a Requerente preencheu o campo 40 da Declaração Periódica de IVA nº ..., bem como o Quadro 1-F do respectivo anexo de regularizações do campo 40, referente ao período de 2022/03, com o valor total de € 78.322,77.

10.  Consequentemente, a Requerente recebeu uma notificação de incorrecções verificadas no Anexo 40 da Declaração Periódica de IVA, com fundamento em “erro” identificado como o código “L06”, relativo a “valor do IVA indicado diferente do IVA deferido no Pedido de Autorização Prévia”, e com o seguinte Quadro-Resumo:

11.  Desta notificação de incorrecções veio a resultar, em 13/12/2022, a emissão de uma nova liquidação, com o n.º 2022 ..., calculando imposto a pagar no montante de € 401.571,89 (campo 93), e, portanto, uma correcção de imposto em falta no montante de € 78.322,77, referente ao período de 2022/03.

12.  A 29/11/2022, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa, autuada com o n.º ...2022... .

13.  A 23/03/2023, foi proferido despacho de Deferimento da Reclamação Graciosa, pelo Chefe de Divisão de Direção da Finanças, através do Ofício n.º ...-A/2023.

14.  Procedeu-se, em 20/04/2023, a uma regularização a favor da Requerente, tendo sido a liquidação corrigida no montante de € 78.322,77 e emitida a demonstração de liquidação do IVA do período 20022/03, nº 2023..., com o valor corrigido de € 0,00, e a correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2023..., de 21/04/2023.

15.  Em consequência foram emitidas, nos termos do art.º 87.º do CIVA, liquidações adicionais à B..., correspondentes ao imposto anteriormente deduzido e não rectificado a favor do Estado.

16.  A B... apresentara Pedido Especial de Revitalização (“PER”), n.º.../20....T8STR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 2, que foi homologado, por Acórdão proferido a 14/07/2021 (transitado em julgado a 03/08/2021).

17.  A B... apresentou o procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2023..., alegando que, por causa do PER, os créditos em causa não se encontravam em mora.

18.  Essa Reclamação Graciosa veio a ser deferida, e, em consequência, as liquidações à B..., emitidas nos temos do art. 87.º do CIVA, vieram a ser anuladas – com fundamento em que, não prevendo o PER o perdão de qualquer montante em dívida, antes prevendo, pelo contrário, o pagamento em prestações dos valores reclamados, não resultaria, portanto, provada e existência de quaisquer créditos em mora ou incobráveis.

19.  Desta circunstância resultava que inexistiria direito a deduzir o IVA correspondente aos créditos em questão, considerando-se que a Requerente regularizara indevidamente imposto a seu favor.

20.  A 11/01/2024, a Requerente foi notificada da liquidação de IVA n.º 2024 ... e da liquidação de juros n.º 2024... referentes ao período de 2022/03, pelo montante de € 78.322,76, referente a IVA alegadamente em falta (PAP nº ... no valor de € 71.271,46 e PAP nº ... no valor de € 7.051,31), e pelo montante de € 1.964, 57 relativo aos juros de mora pelo atraso no respectivo pagamento – com demonstrações de acerto de contas n.º 2024... e n.º 2024 ... (15/01/2024), respectivamente, ambos com data-limite de pagamento a 04/03/2024.

21.  Em 21/03/2024 a Requerente solicitou a fundamentação, ao abrigo do disposto no art. 37.º, 1 do CPPT.

22.  A AT veio responder por certidão passada a 19/06/2024, na qual esclareceu que há efeitos bilaterais que levam a que os efeitos do PER homologado para a B... se repercutam na natureza dos créditos que a Requerente tem sobre a B...  – nomeadamente a circunstância de tais créditos, que eram anteriores ao PER, não se encontrarem em mora, tornando inválidas as regularizações de IVA peticionadas pela Requerente

23.  A 02/07/2024 a Requerente apresentou Reclamação Graciosa desses actos de liquidação, a qual foi recebida a 04/07/2024 e autuada com o n.º ...2024... .

24.  No dia 04/11/2024, presumiu-se indeferida a Reclamação Graciosa, nos termos dos arts. 57.º, 1 e 5 da LGT e 106.º do CPPT.

25.  A 31/01/2025, a Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos e nos documentos juntos ao PPA e ao PA.

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º, 2, do CPPT e arts. 596.º, 1 e 607.º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e arts. 5.º, 2 e 411.º do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16.º, e) do RJAT, e art. 607.º, 4, do CPC, aplicável ex viart. 29.º, 1, e) do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607.º, 5 do CPC, ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).

5.     Além do que precede, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

1.     A Requerente começa por sustentar que as razões que levaram ao deferimento da Reclamação Graciosa em 23/03/2023 se mantêm, porque os créditos sobre a B..., subjacentes às facturas que foram objecto dos dois PAP igualmente deferidos pela AT, se encontravam em mora há mais de 12 meses, e por isso a Requerente se encontrava no prazo legal para deduzir tais pedidos de regularização a seu favor do imposto por ela suportado – fundamentalmente porque os créditos em causa sobre a B... se qualificam como créditos de cobrança duvidosa, ao abrigo do art. 78.º-A, 2, a) do CIVA.

2.     Reconhecendo que a B... obteve homologação de um PER, sustenta, todavia, que daí não decorre uma alteração da qualificação dos créditos – que, no seu entender, subsistem como créditos de cobrança duvidosa, visto preencherem todos os requisitos para tal enquadramento. Não podendo, em suma, o PER da B... conferir a esta qualquer tipo de protecção especial na alteração da situação de mora em que se encontra, especificamente para efeitos de regularização do IVA pela sua credora, a ora Requerente.

3.     E, em apoio do seu entendimento, sustenta que é isso que levou a própria AT a deferir os PAP e a proceder, com eles à regularização da situação do IVA incorrido – e levou à regularização a € 0,00 em 20/04/2023, e ao acerto de contas de 21/04/2023.

4.     Omitindo o sucedido com a B..., a Requerente qualifica de incompreensível a nova liquidação de 11/01/2024 – porque, da sua perspectiva, a AT defere dois PAP, não os considera para cálculo do IVA, emite uma Notificação para Correções da Declaração Periódica, defere na íntegra a Reclamação Graciosa que tem por objecto esta notificação, emite a liquidação corrigida a € 0,00, para em seguida liquidar de novo este mesmo montante, sobre o mesmo facto tributário, volvidos 10 meses do deferimento da primeira Reclamação Graciosa.

5.     O que integraria, no seu entender, um comportamento contraditório da AT, lesivo dos princípios da justiça, da legalidade e da proporcionalidade, aos quais está a AT adstrita pelo art. 55.º da LGT.

6.     A Requerente recapitula o regime do IVA relativo a créditos considerados de cobrança duvidosa, e a mudança de regime introduzida com a Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (OE/2013), espelhado agora nos arts. 78.º-A e seguintes do CIVA.

7.     Sublinhando os requisitos da mora superior a 12 meses, das provas objectivas de imparidade e da existência de diligências para cobrança, lembra a Requerente que o IVA associado a esses créditos é dedutível, por regularização a favor do sujeito passivo, mediante pedido de autorização prévia, a apresentar no prazo de seis meses contados a partir da data em que os créditos sejam considerados de cobrança duvidosa.

8.     Requisitos que, alega a Requerente, estavam e foram inteiramente preenchidos, suportando inteiramente o seu ónus probatório, incluindo a certificação dos créditos por Revisor Oficial de Contas – o que conduziu à aprovação dos PAP pela AT.

9.     Insiste a Requerente que a homologação do PER da B... não colide com a regularização do IVA referente a créditos de cobrança duvidosa, aqui em causa, porque tal homologação não acarreta novação da dívida, mas mero diferimento do prazo de pagamento de dívidas vencidas e não pagas.

10.  Além disso, como desse PER resulta que o pagamento integral da dívida seja realizado durante 8 anos, com carência de 4 anos, do entendimento contrário resultaria que a Requerente nunca poderia vir a recuperar o IVA em causa – porque o simples período de carência de 4 anois ultrapassa os prazos peremptórios de regularização do IVA, que são de 6 meses.

11.  Em apoio da sua tese, a Requerente entende que a regularização do IVA relativo aos créditos de cobrança duvidosa, tal como previsto no art. 78.º-A, 2 do CIVA, é um procedimento distinto da regularização do IVA relativo aos créditos incobráveis, previsto no art. 78.º-A, 4 do CIVA, e que os entraves que podem surgir no segundo caso não se aplicam ao primeiro, e portanto não podem interferir no processo de regularização do IVA relativamente às dívidas de cobrança duvidosa.

12.  E que sustentar o contrário é incorrer em contradição com o deferimento inicial dos PAP, com o deferimento posterior da Reclamação Graciosa apresentada, e ainda com a posterior emissão de liquidações corrigidas no valor de € 0,00.

13.  De seguida, a Requerente alega falta de fundamentação dos actos tributários no que respeita à liquidação em crise, a n.º 2022 ... . E invoca os princípios gerais consagrados nos arts. 77.º da LGT e 268.º, 3 da CRP, que sempre obrigariam a comunicar as decisões de forma clara e fundamentada aos administrados, permitindo que estes conheçam as razões de ser das decisões que os afectam directamente.

14.  A Requerente entende que de tal ausência de fundamentação, decorre que não consegue retirar com a devida certeza e clareza as razões de facto e de direito que conduziram ao entendimento de que existiam incorreções verificadas no Anexo 40 da Declaração Periódica de IVA – melhor, não logra descortinar qualquer razão, sobretudo à luz dos anteriores deferimentos dos PAP e da anterior Reclamação Graciosa.

15.  Pelo que sustenta que o acto controvertido é anulável por preterição de formalidades essenciais, como a ausência de fundamentação bastante, bem como por vício de violação de lei.

16.  Reconhece a Requerente, todavia, que, a solicitação sua, de 21/03/2024, a AT veio suprir insuficiências de fundamentação através da certidão passada a 19/06/2024 (junta ao PPA como doc. n.º 12); sendo que a Requerente contesta especificamente tal fundamentação, considerando erróneo o enquadramento dos factos e do direito das liquidações impugnadas.

17.  E sustenta a Requerente que é “alheia” às vicissitudes da B..., não aceitando que repercutam sobre os seus créditos os efeitos do PER homologado à sua devedora; e em especial o efeito, que contesta, de se entender que os créditos subjacentes às regularizações requeridas pela Requerente afinal não se encontram em mora – pois, no seu entender, isso colide directamente com a articulação entre as regularizações do art. 78.º-A, 2 do CIVA, para créditos de cobrança duvidosa, e as regularizações do art. 78.º-A, 4 do CIVA, para créditos incobráveis, porque a regularização dos créditos de cobrança duvidosa bastar-se-ia com a comprovação de que estes créditos são, efectivamente, de cobrança duvidosa, e essa comprovação estaria feita.

18.  Sendo que a inquestionável qualificação dos créditos como de cobrança duvidosa não se alteraria pela ocorrência, ou não, de qualquer circunstância que passasse a qualificar os créditos como incobráveis ao abrigo do art. 78.º-A, 4 do CIVA.

19.  Sendo, pelo contrário, que a homologação do PER constituiria, ela própria, prova objectiva do risco de cobrabilidade dos créditos em causa.

20.  Pelo que o anterior deferimento da Reclamação Graciosa deveria manter-se na ordem jurídica, sendo manifestamente ilegal a sua modificação – consistindo nisso a violação de lei por erro de facto e de direito, a somar ao vício de falta de fundamentação legalmente exigida, por insuficiência, mas também por erro, omissão e obscuridade.

21.  A Requerente contesta igualmente a obrigação de juros compensatórios, por ser inválida a liquidação de IVA que lhe subjaz.

22.  Em contrapartida, sustenta que a invalidade dos actos impugnados gera o direito a juros indemnizatórios, que peticiona, juntamente com a revogação do indeferimento tácito da Reclamação Graciosa, e, como objeto mediato, a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação de IVA n.º 2024 ...  e da liquidação de juros n.º 2024 ..., referentes ao período de 2022/03.

23.  Em alegações, a Requerente reitera a argumentação do pedido de pronúncia.

24.  Sublinha em particular que nem em sede de Resposta, nem em qualquer outro momento, a AT colocou em causa que a Requerente não tenha atendido integralmente ao ónus probatório que lhe é exigido por lei, para proceder ao direito à regularização de créditos, nos termos do art. 78.º-A do CIVA – e, pelo contrário, mais de uma vez deferiu as pretensões da Requerente, reconhecendo a validade delas.

25.  Quanto ao argumento da Requerida, veiculado na resposta desta, de que não tinha conhecimento da homologação do PER n.º .../20...T8STR à data de aprovação dos PAP, e só por isso os deferiu, a Requerente assinala que esse argumento não vale para a Notificação para Correções da Declaração Periódica de IVA, nem para o deferimento da Reclamação Graciosa posteriormente apresentada pela ora Requerente, o que no entender desta revela comportamento contraditório por parte da AT, e falta de fundamento material da posição desta. Além de que considera tratar-se de “factualidade irrelevante”.

26.  Argumenta também que não é aplicável a jurisprudência da decisão arbitral do Proc. n.º 149/2020-T, porque nesse caso tratava-se de um PER homologado antes do final do prazo de mora, enquanto no caso vertente o PER foi homologado quando o prazo de mora de 12 meses já estava esgotado para a maior parte das facturas (com excepção das facturas NN A/22031, NN A/22014 e NN A/22175 ) – ou seja, na maioria dos casos a natureza de “cobrança duvidosa” já estava consolidada antes da homologação do PER.

27.  Entendendo não fazer sentido que se argumente que o PER do devedor retira a possibilidade de regularização de um crédito por parte da Requerente, quando este preenche todos os requisitos que lhe são exigidos pelo art. 78.º-B – ou, ao menos, que, no momento de homologação do PER, não se proceda a uma discriminação de situações entre sujeitos passivos que tenham já, e que ainda não tenham, procedido à regularização do IVA de créditos em mora abrangidos pelo PER.

28.  Acrescentando que as melhores razões para a existência de PER não podem sobrepor-se aos interesses de credores ao ponto de inviabilizarem definitivamente o exercício de certos direitos destes – como o estabelecimento de um período de carência de 4 anos que significa, na prática, que a Requerente, a aceitar-se a oponibilidade do PER, significa que ficaria inviabilizado o direito da Requerente de regularizar o IVA associado a esses créditos de cobrança duvidosa (dado o prazo de 6 meses estabelecido no art. 78.º-A do CIVA).

29.  A contradição consistiria, pois, em não haver lugar a regularização quando exista um PER, mas, em contrapartida, em caso de incumprimento do PER, contar-se o prazo de mora, para efeitos do art. 78.º-B, desde a data de vencimento constante da factura (dispensando-se, evidentemente, qualquer interpelação para que o prazo de mora comece a correr) – assim inviabilizando a recuperação do IVA pelos credores de um devedor que recorra ao PER.

30.  Lembrando que a existência de um PER é já, por si mesma, indiciadora da cobrança duvidosa, como resulta, aliás, do art. 28.º-B, 1, a) do CIRC – uma norma que mostra bem a disfunção do quadro legal, a sua incongruência, pois nos termos desta norma do CIRC é possível avançar-se para o desreconhecimento contabilístico da dívida, mesmo na pendência ou vigência do PER – um argumento adicional para a consideração da viabilidade, e justiça, da solução da recuperação do IVA suportado com tais dívidas – pois é sempre do risco de incobrabilidade que se trata.

 

III. B. Posição da Requerida

 

31.  A Requerida começa por lembrar as circunstâncias em que o deferimento da Reclamação Graciosa apresentada pela  B... que implicaram o reconhecimento de que as dívidas desta não se encontravam em mora, tiveram necessário impacto na condição dos créditos que a ora Requerente tinha sobre a B...– com a consequência específica de que inexistiria direito a deduzir o IVA correspondente aos créditos em questão, considerando-se que a Requerente regularizara indevidamente imposto a seu favor, o que conduziu às liquidações de 11/01/2024, impugnadas no presente processo.

32.  Mais sinteticamente, a Requerida caracteriza a questão central do seguinte modo: saber se, após a homologação do PER, a original data de vencimento das obrigações se mantém.

33.  A Requerida rejeita a alegação de insuficiência de fundamentação dos actos de liquidação, lembrando que o entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina é o de que é aceitável uma fundamentação menos densa de certos tipos de actos, considerando-se suficiente tal fundamentação desde que corresponda a um limite mínimo que a não descaracterize, ou seja, fique garantido o mínimo indispensável ao cumprimento dos requisitos de uma fundamentação formal: a revelação da existência de uma reflexão e a indicação das razões principais que moveram o agente. Ou seja, sempre que seja possível, através do texto da decisão, descobrir qual o percurso cognitivo utilizado pelo seu autor para chegar às respectivas conclusões; sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal, fica esclarecido acerca das razões que o motivaram o acto.

34.  Assinalando a Requerida que a Requerente demonstrou ter entendido perfeitamente o sentido e alcance do acto ao qual reagiu, na sua implicação crucial, que foi a de se atribuir efeitos da homologação do PER na modificação da data original de vencimento das obrigações a que está adstrito aquele a quem se aplica o PER – uma implicação que a Requerente frontalmente contesta, com isso revelando ter compreendido o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação, reconhecendo ter percebido os pressupostos concretamente levados em conta pelo autor do acto e as razões por que foram alcançados os valores tributados, denunciando o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido.

35.  Afigurando-se à Requerida que a Requerente confunde propositadamente “discordância com a fundamentação” com “ausência de fundamentação”.

36.  No que respeita ao PER, lembra a Requerida que, nos termos do art. 17.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), esse plano visa permitir a homologação e os acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil, num momento de pré-insolvência, desde que não fique prejudicada a satisfação, tão completa quanto possível, dos credores.

37.  Dado que o art. 17.º-F, 11 do CIRE dispõe que a decisão de homologação do PER vincula tanto a empresa como os credores, mesmo que os não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no art. 17.º-C, 5, a AT sustenta que daqui decorre que a homologação de um PER faz cessar a mora dos créditos nele incluídos, uma vez que renasce, na esfera dos credores, a natural expectativa de serem ressarcidos dos seus créditos.

38.  Concretamente, havendo um plano de pagamentos a ser cumprido no âmbito de um PER, os créditos em causa não são enquadráveis no art. 78.º-A, 2, a) do CIVA, porque, com a homologação do acordo, ocorre uma extensão da data de vencimento desses créditos, nos termos e para os efeitos do art. 78.º-A, 3 do CIVA, os quais, por conseguinte, deixam de ser enquadráveis como créditos de cobrança duvidosa – sendo a nova data de vencimento aquela que passa a constar do plano de pagamento, e não a que constava inicialmente das facturas.

39.  Quanto à bilateralidade, lembra a Requerida que existindo uma relação contratual sobre a qual incide IVA, se a ora Requerente regularizasse a seu favor o imposto, a destinatária das facturas em questão, a B... teria de regularizar igual quantia de imposto a favor do Estado – uma consequência lógica que fica diferida para o novo prazo de vencimento resultante do PER, momento em que se verificará se as dívidas da B... para com a Requerente são saldadas, ou não.

40.  A AT limita-se a exigir a aplicação do regime legal, para se apurar, no momento próprio, se o destinatário das facturas mantém o imposto deduzido e, consequentemente, o emitente das facturas o mantém entregue ao Estado; ou se, ao invés, este último (a ora Requerente) recupera o imposto e aqueloutro (no caso, a B...) o devolve.

41.  Lembrando que nenhum “favor creditoris” justifica que os credores regularizem o IVA à margem da homologação do PER, pois isso, acarretando a cobrança coerciva do montante do IVA contido nos créditos, muito possivelmente poria em causa a recuperação da empresa antes dos prazos definidos no próprio PER, e traduzir-se-ia num favorecimento do “credor impaciente”, gerando uma “corrida às regularizações imediatas” que inviabilizaria a revitalização – e especificamente os perídos de carência – que é precisamente o objectivo do PER.

42.  Lembra a Requerida, ainda, tendo os PAP da Requerente sido submetidos em 15/09/2021 e 29/11/2021, a sentença homologatória do PER ocorreu em momento anterior à mora, especificamente em 14/07/2021.

43.  Concluindo que, havendo já PER homologado judicialmente, na data de apresentação dos PAP os créditos não se encontravam em mora para efeitos da aplicação do art. 78.º-A do CIVA, dado que a data do vencimento das facturas, por decisão dos credores, já havia sido alterada, diferida e judicialmente homologada – uma moratória vinculativa para todos os envolvidos, como a Requerente.

44.  Só numa situação de incumprimento do plano de pagamentos definido no PER, passariam a estar reunidos os requisitos para a apresentação do PAP para a regularização de IVA, enquanto créditos de cobrança duvidosa, por via do decurso da mora, nos moldes legalmente estabelecidos no art. 78.º-A, 2 do CIVA. Enquanto isso não suceda, a Requerente está vinculada ao plano de recuperação judicialmente homologado, o que lhe veda alegações relativas a risco de incobrabilidade ou de “cobrança duvidosa” como fundamento de uma regularização que, por isso, seria infundada e prematura – muito simplesmente por falta do pressuposto da mora.

45.  Termina a Requerida sustentando a improcedência do pedido da Requerente, com todos os efeitos, como os relativos aos peticionados juros indemnizatórios.

46.  Em alegações, a Requerida reafirma as posições assumidas na sua resposta, limitando-se a remeter para ela.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV. 1. Objecto

 

Há duas questões, fundamentalmente, a decidir no presente processo:

a)    A da fundamentação dos actos impugnados;

b)    A do mérito desses actos, no sentido da sua adequação ao quadro normativo, mormente no que respeita aos efeitos do PER no vencimento das obrigações da entidade sujeita a esse plano, e no que se refere ao significado, nesse contexto, dos conceitos de “cobrança duvidosa” e de “incobrabilidade”.

Consideremo-las por esta ordem.

 

IV. 2. O problema da fundamentação

 

A Requerente utiliza o argumento da falta de fundamentação – o que se afigura algo bizarro, na medida em que é a própria Requerente que revela ter recorrido ao disposto no art. 37.º do CPPT para obter a fundamentação do acto que impugna, e que essa fundamentação lhe foi fornecida através de uma certidão passada a 19/06/2024 (e que foi junta ao PPA como doc. n.º 12) – isto ao mesmo tempo que a Requerida, na sua Resposta, e decerto por lapso, parece desconhecer essa mesma diligência.

Trata-se, contudo, com a invocação da falta de fundamentação, de um argumento difícil de rebater, pelo que se justifica uma consideração mais extensa da parte do Tribunal, a dissipar dúvidas quanto a existência e suficiência da fundamentação – aferida em termos gerais e abstractos.

Comecemos por destacar-lhe a dupla função, nas palavras de um ilustre cultor do Direito Fiscal:

A exigência de fundamentação (a exposição dos motivos por que se decidiu de um certo modo e não de outro) existe também como condição de racionalidade e de criação de condições materiais para o exercício das competências administrativas e judiciais de re-exame de uma decisão e de uma situação jurídica tributária[1].

Por força dessa dupla função, exige-se que a fundamentação revista as seguintes características:

a)     Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido; 

b)    Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do acto, não podendo haver fundamentações diferidas ou supervenientes (exceptuada a diligência do art. 37.º do CPPT); 

c)     Clareza: deve ser acessível e compreensível por um destinatário médio, evitando tecnicismos e ambiguidades, e mais ainda obscuridades, erros, contradições ou insuficiências, na enunciação dos pressupostos e, no que respeita à liquidação, na explicitação dos montantes calculados e das formas de cálculo; 

d)    Suficiência ou plenitude: deve permitir identificar todos os elementos determinantes da decisão tomada (as disposições legais aplicáveis, a qualificação dos factos tributários, a quantificação dos factos tributários, as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo), e nomeadamente a justificação encontrada no quadro normativo – o domínio da legalidade –, e, quando intervenham margens de discricionariedade ou oportunidade, a motivação e as valorações prevalecentes[2].

A inexistência ou insuficiência da fundamentação torna, assim, o acto tributário (maxime a liquidação) anulável por vício de forma, porque materialmente ficaram comprometidas a racionalidade da decisão e a criação das condições materiais para o adequado exercício dos direitos de defesa por parte dos contribuintes.

Essa fundamentação não deve, nem pode, ser abstractamente apreciada – porque será sempre funcionalizada à situação concreta e ao tipo de acto, servindo em primeira linha para remover, junto do destinatário da decisão, qualquer impressão de que houve arbítrio nessa decisão: “Fundamentar um ato, uma decisão, uma deliberação, consiste em indicar, concretamente, as razões de direito e de facto por que se tomou uma decisão em determinado sentido[3].

As características da fundamentação concorrerão para que, numa liquidação de imposto, seja “compreensível, para um destinatário médio colocado na posição do real destinatário, face aos elementos efectivamente notificados, o porquê da inscrição nos cálculos apresentados daqueles valores, e não de outros quaisquer”; não bastando, para convalidá-lo, que as motivações de um acto tributário impugnado possam ser, ou tenham sido, intuídas pelo contribuinte: “não será aceitável que, perante uma fundamentação inexistente ou insuficiente, se ponha a cargo do contribuinte o ónus de adivinhar aquela, atribuindo ao palpite certeiro um efeito convalidante do défice de cumprimento dos respectivos deveres pela Administração Tributária[4].

O art. 77.º, 1 da LGT estabelece que “a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.

É um princípio genérico, que não se cinge aos actos “em série”, ou “de massa”, alargando-se, antes, a todos os tipos de actos tributários o dever de fundamentação sucinta, e a faculdade de remissão, com mera declaração de concordância com fundamentações precedentes, bastando que se identifique claramente, sem obscuridade ou ambiguidade, quais os documentos ou peças para que se remete – como o estabelecia já o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA, de 19 de Janeiro de 1993: “A fundamentação, mesmo por remissão, deve ser expressa no próprio acto, por indicação da peça do processo cujas razões o acto assume, não podendo na ausência dessa indicação no próprio acto, ser buscada em qualquer peça do processo administrativo.”

Em suma, como há muito se tem por estabelecido,

A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores tem consagrado o entendimento de que um acto se encontra suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática. É também pacificamente aceite que não preenche a exigência legal de fundamentação o recurso a meras fórmulas tabelares que não esclareçam devidamente a motivação de facto e de direito que presidiu ao acto da administração. Ponto é que a fundamentação responda às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática. Acresce dizer, na senda do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11.12.2007, recurso 615/04 «que a lei exige uma exposição apenas sucinta dos fundamentos da decisão a fundamentar; que, por isso, não deve ser um “máximo” o conteúdo exigível da declaração fundamentadora; e que o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado, de molde a satisfazer a divergência existente entre a posição da Administração Fiscal e a do contribuinte».”[5]

E a doutrina converge com esse entendimento:

Como o STA vem entendendo, a exigência legal e constitucional de fundamentação visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a autoridade administrativa a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa. Para ser atingido tal objectivo a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.”[6]

Decorre das considerações precedentes que a fundamentação, até por causa do imperativo da clareza, deve ser simples – sem deixar de ser plena –.

Se a fundamentação se encontra já formulada completamente num determinado passo de um procedimento ou processo, é mais do que desnecessário, por redundância, repeti-la: pode ser até contraproducente, convertendo-se numa penosa reformulação de tudo o que já foi dito, de tudo o que já foi argumentado, de tudo o que já foi documentado – contribuindo presumivelmente para a entropia informativa por excesso, redundando, no final, em desinformação e vulnerabilização daquele a quem a informação deveria precipuamente aproveitar, que é o seu destinatário.

É, como vimos, o que acabou consagrado no nº 1 do art. 77.º da LGT.

Nesse mesmo sentido reconheceu-se já, em sede de arbitragem tributária, que “quando o ato tributário (liquidação adicional de imposto, por exemplo) surge na sequência e em consequência dum procedimento inspetivo levado a cabo pela Administração Fiscal, a dialética ou diálogo que necessariamente se estabelece entre o contribuinte e a inspeção tributária, hão-de tornar difícil, em princípio, o não cumprimento ou até o cumprimento deficiente desse ónus de fundamentação na medida em que a decisão final se vai construindo ao longo desse processo com a participação do contribuinte[7].

Essa edificação “dialógica” de uma fundamentação tem acolhimento crescente na doutrina e na jurisprudência, embora não tenha ainda o reconhecimento que lhe seria devido, em todas as suas implicações – pioneiramente formuladas, de modo lapidar, por Saldanha Sanches: “Ao co-responsabilizar o sujeito passivo pela decisão final, a participação deste na audição prévia pode também contribuir para uma distinção entre as suas posições que merecem e não merecem tutela jurídica[8].

Um outro corolário da edificação “dialógica” de uma fundamentação é a admissão de uma possibilidade que de outro modo se entenderia como uma derrogação do princípio da contemporaneidade: a possibilidade de a cumulação de informação ao longo do processo deixar transparecer de forma mais completa uma fundamentação inicial, sem que isso constitua uma fundamentação sucessiva ou a posteriori de actos tributários ou administrativos. Como se lê numa decisão arbitral,

decorre do pedido de pronúncia arbitral e das impugnações administrativas que o precederam que a Requerente se apercebeu de que o Relatório da Inspecção Tributária estava subjacente às correcções efectuadas, cuja fundamentação foi expressamente assumida nas decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, que precederam a apresentação do pedido de pronúncia arbitral. […] No caso em apreço, apesar da falta de referência expressa à fundamentação no acto de liquidação, a Requerente impugnou-o através de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, em cujas decisões ficou claro que a fundamentação do acto de liquidação é a que consta do Relatório da Inspecção Tributária que antecedeu a liquidação, que foi adoptada, no essencial, por último, na decisão do recurso hierárquico […] Por outro lado, quanto ao IRS, a quantia liquidada é exactamente a que foi indicada no Relatório da Inspecção Tributária, pelo que não há razão para duvidar que foi com base neste Relatório que foi efectuada a liquidação e, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado na sequência da notificação da decisão do recurso hierárquico, tem de se concluir que pode considerar-se convalidado o acto de liquidação do IRS, na linha da jurisprudência citada. Para além disso, esta fundamentação foi levada ao conhecimento da Requerente a tempo de exercer adequadamente o direito de impugnação contenciosa, que a Requerente efectivamente exerceu, como se constata pelo pedido de pronúncia arbitral.[9]

O contexto procedimental / processual não é, em suma, indiferente para se aferir em concreto a adequação da fundamentação produzida. Como se conclui numa outra decisão arbitral,

Deverá, desde logo, ser afastada a hipótese de existência de nulidade por falta de fundamentação, já que é bem patente a existência de um processo administrativo com junção de elementos probatórios, funcionamento do contraditório, fundamentação, conclusões […] Ou seja, todos os despachos decisórios que conduziram à liquidação contestada ou à confirmação da sua correcção, foram precedidos de informações dos serviços contendo todos os fundamentos, de facto e de direito, necessários à plena compreensão de como foi calculado o valor [§] Assim, verifica-se que o acto foi praticado num contexto procedimental susceptível de permitir ao seu destinatário ficar a saber as razões de facto e de direito […]”[10].

Por outro lado, é a desnecessidade, ou até mesmo a inconveniência da repetição de fundamentações que ditam a possibilidade de fundamentação “por relação”, “por remissão” ou “por referência”, tal como elas encontram tradução no art. 77.º da LGT. Daí infere a doutrina:

devem ter-se por fundamentadas as liquidações derivadas das correcções da inspecção quando do relatório constam as razões dessa correcção e posterior liquidação. Nesse caso, para se saber se o acto da liquidação está ou não fundamentado, não pode o intérprete alhear-se do relatório da inspecção, uma vez que este constitui o culminar de um procedimento que um conceito amplo de liquidação necessariamente comporta. […] No plano do procedimento inspectivo tributário, admitindo a modalidade de fundamentação «per relationem» ou «per remissionem», o artigo 63.º, n.º 1, do RCPIT prevê que os actos tributários ou em matéria tributária que resultem do relatório poderão fundamentar-se nas suas conclusões, através da adesão ou concordância com estas, devendo em todos os casos a entidade competente para a sua prática fundamentar a divergência face às conclusões do relatório.[…] A importância da motivação de facto e de direito constante do procedimento de inspecção tributária, posteriormente absorvida pela decisão tributária, compreende-se tendo em vista que o acto de liquidação stricto sensu representa o culminar e um extenso e complexo procedimento administrativo assente nos actos preparatórios praticados pelos serviços de inspecção tributária que integram o procedimento de liquidação lato sensu (artigo 11.º do RCPIT)[11].

A repetição, se fosse exigida, suscitaria até novas dificuldades, forçando à detecção da mais pequena divergência, mesmo por lapso, entre fundamentações completas e sucessivas – gerando ruído, e até possivelmente litigância, à margem da apreciação directa do mérito das decisões fundamentadas. A clareza, a acessibilidade, da fundamentação ficariam comprometidas – novamente por excesso.

Daí que seja entendimento firmado na própria jurisprudência arbitral que a alusão a “sucinta exposição” no art. 77.º, n.º 1 é para ser tomada à letra.

As mesmas razões de economia e racionalidade de meios, aditadas à consciência de que a fundamentação se vai, não raro, adensando “dialogicamente” ao longo do processo, têm levado a jurisprudência a reconhecer que a fundamentação excessivamente minuciosa pode ser o contrário daquilo que teleologicamente se visa com uma verdadeira fundamentação – dispensando minúcias ainda onde elas notoriamente não contribuíssem já para a partilha de informação entre AT e contribuintes, numa espécie de efeito de “rendimento marginal decrescente” da própria informação. Daí que a referência a princípios, a regimes, ou a quadros normativos, possa dispensar a enunciação completa de tudo o que corresponde a esses princípios ou a esses regimes ou a esses quadros normativos.

Assim, por exemplo, para que a fundamentação de direito se considere suficiente, o Supremo Tribunal Administrativo tem decidido que 

não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência aos princípios pertinentes, ao regime jurídico ou a um quadro legal bem determinado, devendo considerar-se o acto fundamentado de direito quando ele se insira num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível – entre tantos outros, os acórdãos proferidos pela 1ª Secção do STA […] Conforme se dá nota no acórdão da Secção do Contencioso Administrativo proferido em 27/05/2003, no proc. n.º 1835/02, «tem sido entendimento deste Supremo Tribunal Administrativo que, na fundamentação de direito dos actos administrativos não se exige a referência expressa aos preceitos legais, bastando a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado […]. Mais do que isto, tem sido dito que em sede de fundamentação de direito, dada a funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, o fim meramente instrumental que o mesmo prossegue, se aceita um conteúdo mínimo traduzido na adução de fundamentos que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, possibilitem a referência da decisão a um quadro legal perfeitamente determinado […] Orientação que, aliás, foi acolhida pelo Pleno daquela Secção, no acórdão de 25/03/93, no proc. n.º 27387, no qual se afirma que o dever de fundamentação fica assegurado sempre que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, a decisão se situe num determinado e inequívoco quadro legal, perfeitamente cognoscível do ponto de vista de um destinatário normal, concluindo-se, assim, que haverá fundamentação de direito sempre que, face ao texto do acto, forem perfeitamente inteligíveis as razões jurídicas que o determinaram.[12].

No mesmo sentido da fundamentação sucinta, minimalista até, contra a fundamentação “quilométrica”[13], tem-se entendido que os requisitos da fundamentação devem ser reponderados face às necessidades dos “processos de massa”, compreendendo-se e aceitando-se que a fundamentação associada a tal produção de actos em massa se faça em moldes crescentemente padronizados, aproveitando-se as possibilidades tecnológicas, desde que, por essa via, não se coloque em causa o disposto no art. 77.º da LGT ou as finalidades que se visam com o direito à fundamentação.

Admite-o com grande amplitude a doutrina e a jurisprudência, referindo-se à massificação genérica do fenómeno tributário e à padronização e informatização implicadas nessa massificação:

“Nos actos de liquidação de IRS, atenta a sua natureza de “processo de massa”, o dever de fundamentação é cumprido pela Administração fiscal de forma “padronizada” e “informatizada”, mas sem que possa deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT ou de pôr em causa as finalidades do direito à fundamentação.”[14].

Admite-o também a Lei. Lembremos a consagração desse mesmo princípio no nº 3 do art. 153.º do CPA:

Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados.

Por uma questão de igualdade de armas, o conhecimento do itinerário cognoscitivo, valorativo e volitivo que culminou na escolha dos valores da liquidação, e não de outros quaisquer, incumbe à entidade autora do acto, não sendo concebível que recaia sobre o contribuinte o ónus de enunciar ele próprio os argumentos fundamentadores do acto impugnado, para de seguida os poder aceitar ou contradizer[15]: esse o sentido do dever de fundamentação consagrado genericamente no art. 268.º da Constituição e no art. 77.º da LGT.

Nem se aceitará que o dever de fundamentação seja tão atenuado na presença de um destinatário sofisticado que isso levasse a entender-se que caberia a esse destinatário convalidar a ausência de fundamentação através da sua própria iniciativa: mesmo que o contribuinte seja uma estrutura organizativa de grande dimensão e tecnicamente muito sofisticada, é de entender-se “que o cumprimento deficiente do dever de fundamentação a cargo da AT não pode ser convalidado pela acção do contribuinte, independentemente da dimensão organizativa ou da sofisticação dos seus serviços[16]

Em contrapartida, não poderá deixar de se levar em conta que o discernimento do concreto destinatário da fundamentação é um elemento a ser ponderado para se aferir se, sim ou não, a fundamentação lhe propiciou a ele, em concreto a ele e naquelas precisas circunstâncias – e não noutras mais remotas ou abstractas – a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência de aceitar ou impugnar, graciosa ou contenciosamente, o acto.

Na verdade, a fundamentação envolve também uma aferição pela sua eficácia, ou seja, pela “impressão do destinatário” – não no sentido de ela dispensar a verificação dos requisitos objectivos da sua verificação (até porque, lembremos, não é somente da protecção dos interesses do destinatário, da “função garantística” da fundamentação, que se trata, estando também em jogo a própria transparência e correcção objectiva do processo decisório, a “função endógena” da fundamentação), nem no sentido psicologista de se remeter a uma indagação dos estados subjectivos de convicção do destinatário (o que seria impossível), mas sim no sentido de essa fundamentação ter a respectiva clareza avaliada pelo padrão do declaratário médio ou do declaratário concreto se este dispuser de mais informação do que o declaratário médio – como resulta do princípio geral consagrado no art. 236.º, 1 e 2, do Código Civil.

É aliás esse princípio geral da “impressão do destinatário” que confere autonomia à questão formal da fundamentação, que é essencialmente uma questão de acesso à informação relativa aos motivos que levaram a AT a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação – e que tem que ser separada dessa outra dimensão material da fundamentação, que se refere à validade substancial do acto, respeitante à correspondência desses motivos à realidade, e à suficiência dessa correspondência para legitimar a concreta actuação administrativa.

Sendo que é no plano formal – demarcando-o por sua vez do tema da notificação, que não se confunde com ele[17] – que se indaga autonomamente sobre o cumprimento do dever de fundamentação, remetendo as questões materiais para a apreciação do mérito.

Como lapidarmente se estabelece numa decisão arbitral,

No caso em apreciação, verifica-se que a Requerida Autoridade Tributária deu a conhecer, através do relatório de inspeção, a fundamentação pela qual, na perspetiva daquela, a Requerente não podia deixar de incluir no valor tributável para efeitos de IVA o valor relativo à subvenção em apreço. [§] Ora, do teor do relatório de inspeção que subjaz à liquidação de IVA e JC, resultam de forma expressa, suficiente e congruente as razões de facto e de direito em que se respalda tal posicionamento da Autoridade Tributária.[§] Se estes pressupostos e razões aportados pela Autoridade Tributária para o relatório inspetivo são ou não substantivamente válidos é questão que tem a ver com o mérito e já não com a forma e que, portanto, se coloca numa outra dimensão de que não cumpre, neste ponto, conhecer. [§] In casu, fica patenteado o critério (mal ou bem) trilhado pela Autoridade Tributária.”[18].

Por outras palavras, tem-se entendido que, no que concerne aos vícios de forma de actos administrativos – como o acto tributário – as irregularidades devem considerar-se como não essenciais desde que seja atingido o objetivo visado pela lei com a sua imposição.

Afigura-se pacífico na jurisprudência, assim, que

não ocorre o vício formal de falta de fundamentação se a própria impugnante expressamente revela ter compreendido perfeitamente o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação, reconhecendo ter percebido os pressupostos concretamente levados em conta pelo autor do acto e as razões por que foram alcançados os valores tributados, denunciando o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido[19].

E quando o STA estabelece que “Não vale como fundamentação a motivação apresentada posteriormente à prática do acto, nem a constante de peças instrutórias anteriores para as quais não tenha sido feita remissão, expressa ou implícita.[20], isso equivale a admitir-se que a remissão possa ser implícita, ou seja, decorrente do próprio contexto do acto tributário, ou do qual este emerge. 

Admitamos, em contrapartida, que não seria razoável daí inferir que toda a reacção jurídica do contribuinte revelaria, ipso facto, a “impressão do destinatário” demonstrativa da suficiência da fundamentação – até pela elementar razão de que entender uma fundamentação não é aceitar essa fundamentação, nem considerá-la sequer verdadeira, adequada ou completa.

Como já se observou pelo já aludido prisma respeitante à correcção do próprio processo decisório,

o legislador quis que a administração não decidisse imponderadamente, obrigando-a a plasmar na fundamentação as razões da sua opção, de tal modo que a própria administração se aperceba, ao fundamentar, do bem ou mal fundado da sua escolha, a tempo de emendar a mão, se disso for caso, e que o acto se apresente transparente. Isto para concluir que não é decisivo o argumento, aliás, frequente, de acordo com o qual só o facto de o acto ter sido contenciosamente recorrido, com a decorrente imputação de vícios, já demonstra que ele estava devidamente fundamentado[21].

Mas, de acordo com o princípio geral da relevância do conhecimento, pelo declaratário, da vontade real do declarante, como estabelecido no n.º 2 do art. 236.º do Código Civil, não pode ser juridicamente indiferente, para a aferição da suficiência da fundamentação, a conduta do declaratário que seja reveladora da compreensão concreta, real, contextual, daquilo que foi transmitido juntamente com a decisão.

A doutrina afirma-o, aceitando que esteja cumprido o dever de fundamentação se, pela posição que toma e argumentos que utiliza, se evidencia que o contribuinte apreendeu as razões ou motivações, de facto e de direito, do autor do acto[22].

É da “impressão do destinatário”, para pedirmos emprestada a categoria civilística, que se trata neste critério de ponderação quanto ao preenchimento dos requisitos da fundamentação, ao menos na sua teleologia “garantística”; e isso fica perfeitamente plasmado na fórmula canónica da jurisprudência dos tribunais superiores:

Segundo a jurisprudência uniforme deste STA, e atendendo à funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, ao fim instrumental que o mesmo prossegue, um acto estará devidamente fundamentado sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões que a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa, e optar conscientemente entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação[23].

Da co-responsabilização que emerge de uma tal visão “dialógica” sobre a fundamentação, nos termos da qual a decisão final da AT se vai construindo ao longo de um processo com a participação do contribuinte e em diálogo com ele, resultam corolários que, como dissemos, se encontram ainda insuficientemente explorados, como este que é apontado logo, de forma pioneira:

Na medida em que algum dos sujeitos tomar numa qualquer fase do processo uma posição claramente contraditória com a posição tomada anteriormente no mesmo processo, ele está pelo menos a venire contra factum proprium e a violar o princípio da boa fé[24].

Não se vislumbra, em suma, em que é que os critérios de existência e suficiência da fundamentação, acabados de enunciar em abstracto, não se encontram preenchidos no caso concreto dos presentes autos.

E isto não só porque a Requerente soube identificar perfeitamente em que é que a interpretação da AT, quanto à questão de mérito, divergia da sua, com todas as implicações daí decorrentes, baseando a sua impugnação nessa divergência, como ainda – e como assinalámos já – solicitou e obteve, pelo meio adequado (o art. 37.º do CPPT), um documento expressamente dedicado a colmatar ou corrigir eventuais insuficiências ou imperfeições que subsistissem em sede de fundamentação. Face a essa circunstância, o argumento da falta de fundamentação dos actos impugnados afigura-se, no mínimo, contraditório.

 

IV. 3. A questão de mérito – efeitos do PER no vencimento das obrigações

 

Resulta claramente, do quadro legal aplicável ao PER (processo especial de revitalização), que a sua homologação tem implicações para todas as relações obrigacionais pendentes de que a empresa a ele sujeita seja parte. E que ela vincula todos os credores da empresa, mesmo os credores “que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações”, como estabelece o art. 17.º-F, 11 do CIRE, e isto “relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão” de aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, como se determina no mesmo art. 17.º-F, 11 do CIRE.

Trata-se de propiciar, a uma empresa em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, uma oportunidade de revitalização através de acordo com os seus credores que possa ser homologado (como resulta do art. 17.º-A, 1 do CIRE).

O cerne da revitalização é, logicamente, uma moratória aplicada consensualmente às dívidas que onerem a empresa sujeita ao PER, porque a fragilidade da sua situação económica traduz-se precisamente na “dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”, como se define no art. 17.º-B do CIRE.

Sendo certo que o PER procura o consenso do maior número possível de credores da empresa, tanto os envolvidos no seu arranque como os convocados para a tramitação subsequente (art. 17.º-D do CIRE), vimos que mesmo os credores que não participarem ficam vinculados pelo que vier a ser consensualmente decidido (art. 17.º-F, 11 do CIRE), e que essa decisão envolve a classificação dos créditos e um plano de recuperação, que, para chegar a bom termo, reclama a referida moratória – no sentido de a empresa não poder ser declarada insolvente no caso de o PER ser homologado (art. 17.º-C, 7 do CIRE a contrario), e no sentido de os créditos passarem a ser reclamados junto de um administrador judicial provisório, elaborando-se uma lista de créditos que alicerçará as negociações nos dois meses subsequentes (art. 17.º-D, 2 a 7, do CIRE).

Sendo nomeado o administrador judicial provisório, nem sequer se iniciam, nem prosseguem, acções executivas contra a empresa para cobrança de créditos, e mesmo processos de insolvência em curso contra a mesma empresa, suspendendo-se ainda todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa, ficando a empresa impedida de praticar, sem autorização daquele administrador, actos de especial relevo (art. 17.º-E, 1, 5 e 9 do CIRE).

Na pendência do PER estabelece-se, portanto, uma suspensão geral de prazos, salvo algumas excepções expressas e pontuais (“ações executivas para cobrança de créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação”, art. 17.º-E, 4 do CIRE).

Independentemente da formulação genérica que se prefira adoptar, na prática os efeitos do vencimento são postergados para a conclusão do PER – seja a sua conclusão com sucesso, seja a sua conclusão prematura por insucesso.

Assim sendo, mesmo um credor que não tenha participado nas negociações, ou não tenha reclamado os seus créditos, não pode invocar, contra a empresa sujeita a PER, seja o vencimento – dada a suspensão de prazos –, seja a mora – dado que os créditos suspensos só podem vencer no final do PER –, sob pena de, não sendo assim, se inutilizar toda a tramitação do PER (de que valeria a classificação dos créditos em comuns, subordinados, privilegiados ou garantidos – art. 17.º-D, 2, c) do CIRE – se até um crédito subordinado pudesse invocar o vencimento para passar à frente dos créditos privilegiados?) e se frustrarem os objectivos de revitalização da empresa sujeita ao plano.

Logo, a existência de um PER homologado impede que, na sua pendência, existam “créditos considerados de cobrança duvidosa” para efeitos do art. 78.º-A, 1 e 2 do CIVA, pois, para que isso sucedesse, teria o crédito de estar em mora (art. 78.º-A, 2, a) do CIVA, na redacção da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março).

Mais precisamente, o PER homologado impede a verificação do requisito da mora se não, e enquanto não, for proferida sentença de homologação do PER que preveja o não pagamento definitivo do crédito, pois nesse caso passa a verificar-se imediatamente a incobrabilidade, passando a ser possível, ex nunc, a dedução do IVA relativo a créditos considerados incobráveis, nos termos do art. 78.º-A, 4, c) do CIVA, na redacção da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro); sendo que, como é lógico, a dedução por incobrabilidade é incompatível com a dedução por “cobrança duvidosa”, como expressamente o determina o art. 78.º-A, 5 do CIVA.

Todas estas situações são dominadas pela bilateralidade, própria de obrigações de fonte contratual – resultando dessa característica de bilateralidade alguns dos efeitos do regime de dedução de IVA.

Assim:

¾   se porventura um sujeito passivo apresenta um pedido de autorização prévia (PAP) para a dedução do IVA associado a créditos de cobrança duvidosa, o adquirente é imediatamente notificado para efectuar a correspondente rectificação, a favor do Estado, da dedução inicialmente realizada (arts. 78.º-B, 5 e 78.º-C, 1 do CIVA);

¾   mas se o adquirente provar que já pagou, ou que não há mora, é indeferido o PAP apresentado pelo sujeito passivo (art. 78.º-B, 6 e 7 do CIVA);

¾   se, pelo contrário, o adquirente não efectuar a rectificação, a favor do Estado, da dedução inicial, é emitida liquidação adicional pelo montante não rectificado, ao mesmo tempo que é deferido o PAP (art. 78.º-C, 2 do CIVA);

¾   finalmente, se chegar a haver recuperação, total ou parcial, dos créditos, os sujeitos passivos que hajam procedido anteriormente à dedução do IVA associado a créditos de cobrança duvidosa ou incobráveis devem entregar o imposto correspondente ao montante recuperado, ficando a dedução do imposto pelo adquirente dependente da apresentação de um PAP (art. 78.º-C, 3 do CIVA).

Esta última hipótese é a que se aplicará eventualmente no final do PER, pois só então se determinará se são recuperados, ou não, total ou parcialmente, os créditos da Requerente sobre a sua devedora B...; se não o forem, procede-se, finalmente, mediante apresentação de um novo PAP, à dedução do IVA pela Requerente, e a B... será notificada para rectificar, a favor do Estado, a dedução a que tenha procedido.

Mas, para que isso possa acontecer, para que o PER possa seguir o seu curso de acordo com o quadro legal que o prevê, é essencial que ele possa chegar ao fim sem interrupções ou intercorrências de vicissitudes creditícias por parte da Requerente, como por parte de qualquer outro credor da B... .

Lembramos que o PER é um processo especial, e essa especialidade, e a urgência e melindre dos interesses que tenta salvaguardar, compatibilizar, coordenar – e também, inevitavelmente, sacrificar, subalternizar, ou meramente adiar –, ditam que a protecção especial da devedora sobreleva aos interesses de regularização do IVA suportado pelos seus credores – como é o caso da Requerente.

A liquidação de IVA, de 11/01/2024, ora impugnada, espelha fielmente uma das consequências do quadro legal que acima descrevemos: o PER da B... suspende, até à sua conclusão, os efeitos do vencimento das suas obrigações, pelo que os créditos que a Requerente tem sobre ela não têm, pro tempore, a natureza de “créditos de cobrança duvidosa”.

Para que houvesse uma distinção relevante, para o caso, entre “créditos de cobrança duvidosa” e “créditos incobráveis” – argumento a que a Requerente repetidamente recorre –, era necessário, como vimos, que a sentença que homologou o PER tivesse previsto o não pagamento definitivo dos créditos da Requerente (art. 78.º-A, 4, c) do CIVA) – o que não se prova que tenha sucedido.

Ao contrário do que também repetidamente alega, a Requerente não é alheia às vicissitudes da B..., seja porque o PER a vincula (art. 17.º-F, 11 do CIRE), seja porque o regime de pagamento, dedução e rectificação a favor do Estado é praticamente simétrico entre a Requerente e a B..., por força dos arts. 78.º-B e 78.º-C do CIVA.

Quanto ao argumento de que o acatamento do PER inviabilizaria o direito da Requerente de regularizar o IVA associado a esses créditos de cobrança duvidosa, dado o prazo de 6 meses estabelecido no art. 78.º-A do CIVA, ele não procede, pois é o próprio CIVA que introduz uma ressalva, estabelecendo que o prazo do art. 94.º, 1 não se aplica às declarações periódicas em que o sujeito passivo regularize a liquidação resultante de uma eventual recuperação dos créditos, total ou parcial (arts. 78.º-C e 94.º, 2 do CIVA), podendo deduzir-se que a mesma ressalva se aplica à dedução que tenha ficado suspensa na pendência de um PER.

Finalmente, e mais uma vez contra aquilo que a Requerente alega, a existência de um PER não é indiciadora da presença de créditos de cobrança duvidosa – é assumidamente o contrário, é a abertura de uma expectativa consensual de ressarcimento de créditos, através de um esforço consensual que tenta evitar a insolvência. Como pode ler-se na fundamentação do processo n.º 149/2020-T, “o processo especial de revitalização destina-se a evitar a insolvência de empresas cujos créditos não se caracterizam por uma incobrabilidade definitiva e, em consequência, ainda são suscetíveis de recuperação. Isto significa que o acordo dos credores com o plano de recuperação, homologado por sentença judicial, traduz uma expectativa, ainda que contingente, de recebimento dos créditos por parte dos credores nos termos do plano acordado”.

Além disso, que um credor veja na existência do PER esse indício de “cobrança duvidosa” não é razão para que esse credor seja favorecido em detrimento do PER ou em desrespeito pelas finalidades do PER.

Improcede assim, no mérito, o pedido da Requerente, não se vislumbrando qualquer ilegalidade nas liquidações impugnadas, nem no acto de indeferimento presumido, ou tácito, da Reclamação Graciosa apresentada contra tais liquidações.

 

IV. 4. Questões prejudicadas

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria, por isso, inútil (incluindo a questão relativa aos juros indemnizatórios) – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo do pedido a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, mantendo na ordem jurídica tanto os actos tributários ora sindicados, como o indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada contra tais actos tributários;

b)    Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo. 

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 80.287,33 (oitenta mil, duzentos e oitenta e sete euros e trinta e três cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT). 

 

VII. Custas

 

Custas no montante de € 2.754,00 (dois mil, setecentos e cinquenta e quatro euros) a cargo da Requerente (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 2 de Dezembro de 2025

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Miguel Patrício

 

Hélder Faustino

 



[1] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 290.

[2] Acórdão do TCA-Sul de 4 de Dezembro de 2012, Processo nº 6134/12. Processos n.º 394/2014-T, n.º 703/2016-T, n.º 543/2017-T e n.º 10/2018-T do CAAD.

[3] Acórdão do STA de 6 de Fevereiro de 1991 (sublinhado nosso).

[4] Processo n.º 30/2012-T do CAAD.

[5] Acórdão do STA, Processo n.º 667/10; Proc. nº 109/2012 –T do CAAD.

[6] Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária. Anotada e Comentada, anotação ao art. 77º da LGT.

[7] Processo nº 131/2012 - T do CAAD.

[8] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, pp. 295ss., 304.

[9] Processo n.º 120/2015 -T do CAAD.

[10] Processo n.º 124/2015 - T do CAAD.

[11] Paulo Marques e Carlos Costa, A Liquidação de Imposto e a Sua Fundamentação, pp. 146ss.; Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e de Processo Tributário, 3.ª ed., pp. 113ss..

[12] Acórdão do STA, de 17 de Novembro de 2010, Proc. n.º 01051/09; Processos n.º 394/2014 -T e n.º 10/2018-T do CAAD.

[13] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 291.

[14] Acórdão do STA de 17 de Junho de 2009, Proc. n.º 0246/09. No mesmo sentido, os Acórdãos do TCA-Sul de 28 de Fevereiro de 2012, Proc. nº 4893/11, e de 16 de Novembro de 2004, Proc. nº 879/03.

[15] A fundamentação abrangerá tanto actos favoráveis como desfavoráveis para o contribuinte: “Esta exigência compreende-se em face da pluralidade de razões que impõem a exigência de fundamentação dos actos administrativos, que vão desde a necessidade de possibilitar ao administrado a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência ou não de impugnar o acto, até à garantia da transparência e da ponderação da actuação da administração e à necessidade de assegurar a possibilidade de controle hierárquico e jurisdicional do acto” - Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 4ª ed., 675-676.

[16] Processo n.º 116/2012-T do CAAD.

[17] Estabelece-o o Supremo Tribunal Administrativo: “Como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer, uma coisa é a fundamentação do acto e outra é a comunicação desses fundamentos ao interessado: enquanto aquela constitui um vício susceptível de determinar a anulação do acto que dela padeça, o incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando” – Acórdão do STA de 16 de Novembro de 2016, Proc. n.º 0954/16.

[18] Processo n.º 338/2015-T do CAAD. E acrescenta-se nesse mesmo acórdão: “A fundamentação que o nosso ordenamento jurídico impõe como condição de validade do acto que se destine a suportar, reveste tão só uma dimensão formal, que não uma dimensão substancial e consubstancia-se na explanação dos motivos aptos a suportarem a decisão final.”

[19] Acórdão do STA de 30 de Janeiro de 2013, Proc. nº 0105/12.

[20] Acórdão do STA de 19 de Maio de 2004, Proc. nº 0228/03 (sublinhado nosso).

[21] Acórdão do TCA-Sul de 28 de Fevereiro de 2012, Proc. nº 4893/11.

[22] Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 3ª ed., pp. 381-382.

[23] Acórdão do STA de 2 de Dezembro de 2010, Processo n.º 0554/10.

[24] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 302