SUMÁRIO:
I - O princípio subjacente à CGAA é o da prevalência da substância económica sobre a forma jurídica dos atos ou negócios jurídicos, sem, no entanto, se chegar ao ponto de retirar alcance prático aos princípios da legalidade e da tipicidade taxativa dos impostos.
II - Se, pelo contrário, os contribuintes são norteados por outras preocupações ou razões quando escolhem uma via que redunda em dispensa ou redução de tributação, então revelar-se-á excessivo concluir pela obrigação de opção do contribuinte pela via que implique um maior agravamento na tributação.
Os Árbitros Guilherme W. d´Oliveira Martins, Cristiana Maria Leitão Campos
e Marta Vicente, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A... e B..., titulares dos números de identificação fiscal ... e ... residentes na Rua ..., n.º ..., ...-... Espinho, (doravante designados por “Requerentes”), vêm, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (adiante “RJAT”), requerer a V. Exa. a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL com designação de árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, com os fundamentos que constam do requerimento inicial aqui junto.
É Requerida a AT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 13 de maio de 2025.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 2 de julho de 2025, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O TAC encontra-se, desde 22 de julho de 2025, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta a 30 de setembro de 2025.
No dia 30 de setembro de 2025, este Tribunal proferiu o seguinte despacho:
“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental.
2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença.
3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, no prazo de 10 dias a contar desta notificação.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.”
II. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
II.1 Posição da Requerente
O Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:
a) Conforme se demonstrará adiante, os atos tributários têm por base a errónea aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso (“CGAA”), concretamente pela desconsideração dos efeitos fiscais da transformação em sociedade anónima da sociedade “C..., LDA” (“C...”), com o NIF ... .
b) O que motivou a correção fiscal do valor de aquisição das ações adquiridas pela Requerente A... através de doação realizada pelos seus pais: D... (NIF...) e E... (NIF...).
c) Consequentemente, foi imputado à Requerente A... o apuramento de uma mais-valia no valor de € 2.158.003,57, que implica imposto no valor de € 604.241,00, acrescido de juros num total de € 308.980,84(!).
d) Os atos tributários em apreço foram praticados pela AT na sequência das conclusões em sede de ação inspetiva, conforme respetivo Relatório de Inspeção já junto como Documento n.º 3.
e) Nesta sequência, a Requerente A... foi notificada das demonstrações de liquidação de IRS, de juros e de acerto de contas acima identificadas, tendo procedido ao pagamento do montante de € 914.645,49, dentro do prazo para pagamento voluntário, conforme comprovativo que aqui se junta como Documento n.º 7.
f) Sendo certo que tal pagamento não preclude, naturalmente, a possibilidade de reação da legalidade dos atos tributários sub judice, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
g) Ora, a Requerente não se pode conformar com a correção efetuada pela AT, porquanto entende que a mesma tem subjacente uma incorreta valoração dos factos e uma inadequada subsunção dos mesmos ao direito aplicável, nomeadamente no que respeita ao alegado preenchimento dos requisitos da CGAA, prevista no artigo 38.º da LGT, conforme se demonstrará.
h) A sociedade C..., de cariz familiar, foi constituída em 1971 pela Avó, Mãe e Tia da Requerente e, desde 1987, passou a ter o respetivo capital social integralmente detido pelos Pais da Requerente A... .
i) Em 18.10.2019, a Requerente recebeu dos Pais uma doação de 10.402.881 ações, representativas de 17,3799% do capital social da C..., tendo sido apenas nesse momento que a Requerente passou efetivamente a ser detentora de parte do capital social da C... .
j) A Requerente A... não colocou qualquer objeção à doação, ato “típico” entre ascendentes e descendentes, e que a Requerente encarou como natural, tendo particularmente em consideração a idade avançada dos Pais (de tal forma que, lamentavelmente, o Pai viria, entretanto, a falecer e a Mãe se encontra num estado de incapacidade total).
A operação de transformação da C... em sociedade anónima
a) A sociedade C... foi, em 30.09.2019, transformada de sociedade por quotas em sociedade anónima.
b) A mencionada transformação foi deliberada pelos Pais da Requerente (detentores de 100% do capital social da C...).
c) Dessa deliberação fizeram parte, de um ponto de vista meramente formal e simbólico, além da Requerente A..., os seus irmãos J... e F..., a quem foram atribuídas quotas com o valor nominal de apenas € 1, com o único objetivo de assegurar o cumprimento do número mínimo de 5 acionistas legalmente exigido pelo Código das Sociedades Comerciais (“CSC”).
d) A este propósito, é expressamente referido na ata da Assembleia Geral da C... (junta como Anexo 6 ao Relatório de Inspeção da AT, já junto como Documento n.º 3) que “foi pelos Sócios comentado que a operação de Aumento de Capital visa precisamente permitir a entrada dos Novos Sócios no capital da Sociedade, para cumprir o requisito de estrutura mínima societária de cinco acionistas, conforme previsto no artigo 273.º do Código das Sociedades Comerciais, e assim permitir a transformação da Sociedade numa sociedade anónima (…)”.
e) Sendo certo que, após a transformação em sociedade anónima, os Pais da Requerente “ficaram a deter 99,9995% do capital, ou seja, a quase totalidade do capital, tal como acontecia antes da transformação” (Cf. Folha 9 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).
f) A Requerente não teve qualquer intervenção de relevo na operação de transformação da C... em sociedade anónima, tendo aí atuado de forma meramente simbólica (tal como confirma a própria AT) e apenas destinada ao cumprimento do número mínimo de acionistas, não sendo obviamente necessário o seu consentimento para que a mesma ocorresse, nem lhe sendo atribuídos quaisquer poderes que pudessem colocar a operação em causa.
g) A Requerente nunca exerceu sequer funções de gerência/administração da sociedade, tendo assinado pela primeira vez uma ata Assembleia Geral apenas para permitir o cumprimento de um requisito legal, como, aliás, frequentemente ocorre no mundo empresarial.
h) Tratando-se de um ato previsto na legislação e frequente nas empresas, não tinha, obviamente, qualquer razão para não aceitar subscrever uma participação meramente simbólica, a pedidos dos Pais, não lhe cabendo (tal como à AT) qualquer juízo de valor apreciação sobre decisões tomadas pelos Pais ou pela gestão da empresa relativamente a quaisquer atos ou operações.
i) Aliás, a própria AT confirma que “Após esta transformação, D... e E... continuaram a controlar o capital da sociedade, sendo que os 3 novos acionistas (membros da FAMÍLIA G...) eram detentores de participações meramente simbólicas” (Cf. Folha 9 do Relatório de Inspeção).
j) Sem prejuízo do referido, a Requerente verificou, pela análise do Projeto de Relatório de Inspeção, que a AT, estranhamente, teceu um conjunto de considerações sobre as motivações subjacentes à operação de transformação que, além de serem inapropriadas, demonstram um total afastamento da realidade empresarial.
k) Na verdade, ao contrário do que a AT menciona, a referência a que a evolução para uma estrutura jurídica de sociedade anónima melhor se ajusta à dimensão, posicionamento, e perspetiva de crescimento da sociedade, é perfeitamente comum nas operações, e só pode ser entendida como “vaga” e “genérica” se nos abstrairmos totalmente da realidade da empresa e do percurso que, entretanto, continuou a trilhar.
l) Por outro lado, considera a Requerente que o facto de a sociedade ter tido um histórico de vários anos como sociedade por quotas, e de ter tido sucesso enquanto tal, não pode limitar os seus sócios na possibilidade de, se assim entenderem, promoverem a transformação em sociedade anónima.
m) Aliás, a própria AT, quando realizou a inspeção tributária, deveria ter tido o cuidado de verificar que a sociedade, nesse momento, quase 3 anos após a transformação, já detida por um Fundo de Private Equity altamente profissionalizado, ainda era uma sociedade anónima.
n) Se seria possível obter resultados positivos como sociedade por quotas? Provavelmente sim.
o) Se esse aspeto é minimamente determinante para que se possa considerar a operação de transformação como devidamente justificada e sem qualquer caráter abusivo? Não.
p) De facto, há que distinguir a obtenção de resultados positivos e o percurso satisfatório enquanto sociedade familiar, de uma decisão legítima e livre dos sócios, com vista à afirmação da sociedade num outro patamar e em outros mercados, bem como da preparação da estrutura para uma gestão mais profissional.
q) Por outro lado, importa ter presente que, ao contrário do que pretende insinuar a AT, o facto de o contrato promessa de compra e venda subscrito pelos Pais da Requerente A... referir a existência de uma possibilidade de transformação em sociedade anónima antes da execução definitiva da venda, e não uma obrigação de tal ocorrer, em nada releva para o que aqui está em causa.
r) Muito menos para permitir que se conclua “Pelo contrário, esta cláusula terá sido incluída por conveniência dos alienantes (…)” (Cf. Folha 11 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).
s) Até porque o que veio efetivamente a ocorrer foi exatamente o oposto.
t) Acresce a AT, em sede de decisão final da reclamação graciosa que “da leitura do contrato-promessa, que é extenso, pormenorizado e complexo, conclui-se que o mesmo foi cuidadosamente elaborado no sentido de salvaguardar os interesses do comprador que iria investir 22 milhões de euros. Por outro lado, tratando-se de um fundo de investimento de capital de risco (private equity) internacional, tem experiência neste tipo de operações e é devidamente assessorado por entidades especializadas (nas áreas jurídicas e económicas), não sendo plausível que, se efetivamente a transformação fosse indispensável para financiar a aquisição da sociedade, não tivesse sido incluída no contrato uma cláusula que obrigasse os vendedores a realizar tal ato” – cf. Documento n.º 6.
u) Com o devido respeito, não podem os Requerentes concordar com a AT, quando vem colocar em causa uma transformação em sociedade anónima que teve apenas como objetivo viabilizar a aquisição da sociedade, com base em meras opiniões de como os compradores são assessorados.
v) Poderia a AT, mantendo a linha de raciocínio sobre a assessoria que presume ter sido prestada à entidade adquirente, assumir que uma cláusula que previsse a obrigatoriedade de transformação em sociedade anónima dificilmente seria exigida,
w) Na medida em que, sendo a sociedade detentora de imóveis, tal significaria, provavelmente, que a AT aproveitaria para aplicar a cláusula geral anti abuso argumentando que a transformação visou evitar o pagamento de IMT pelo adquirente.
x) Na verdade, mais uma vez, a AT termina o raciocínio onde lhe convém, talvez pelo facto de que a liquidação de IRS que está a impor a um sujeito passivo que não tinha sequer poder para decidir uma operação de transformação é manifestamente superior ao IMT que liquidaria ao adquirente.
y) De resto, se o contrato-promessa contemplava a alteração da forma societária, será que se pode imputar tal à parte vendedora? É que se alvitram diversos motivos para que esta interessasse tanto (ou mais) à parte compradora”.
Assim, vejamos:
z) Os contactos havidos no âmbito das negociações com a H..., uma sociedade gestora de fundos de private equity sedeada em Espanha, e de referência internacional, contribuíram de facto para que os Pais da Requerente e J..., irmã, tivessem um contacto muito direto com gestores altamente profissionalizados,
aa) Tendo ficado claro que a evolução para uma estrutura de sociedade anónima poderia ser um passo importante, além de natural, para a C... .
bb) Por outro lado, tendo a aquisição da sociedade sido realizada por uma sociedade gestora de fundos de private equity, sujeita a regulação e a deveres de reporte junto dos investidores dos respetivos fundos, e tendo sido iniciada (com o respetivo CPCV assinado) sendo a C... uma sociedade por quotas, foi necessário acautelar no contrato promessa a possibilidade de tal transformação ocorrer,
cc) Fundamentalmente porque, dependendo da estrutura de financiamento da aquisição, poderia de facto revelar-se necessário que tal ocorresse.
dd) E foi o que efetivamente aconteceu,
ee) Tendo a operação de transformação em sociedade anónima sido essencial para viabilizar a concretização da transmissão, não por motivações predominantemente fiscais, como refere a AT, mas sim para assegurar a possibilidade de a entidade adquirente reunir os meios financeiros necessários à concretização da transmissão,
ff) Na medida em que, no processo de obtenção de financiamento bancário para pagamento do preço, a entidade compradora teve de prestar como garantia o penhor financeiro (não o penhor mercantil) das ações da C... (garantia tipicamente exigida pelas instituições financeiras).
gg) O caráter essencial do penhor financeiro sobre as ações (e, como tal, da transformação da sociedade em momento anterior à transmissão) pode ser comprovado pela declaração entretanto emitida pela entidade compradora, aqui junta como Documento n.º 9,
hh) Que refere expressamente, quanto à constituição de penhor financeiro sobre as ações da C… para garantia do financiamento necessário à concretização da operação, que “This is a standard security in this type of financing in Portugal and without the possibility of creating such guarantee, the obtaining of the financing could have been jeopardized or in alternative, I… and its shareholder would have been requested to Grant other, more onerous guarantees The financing, and therefore the creation of a financial pledge over the shares, was an essential part of the transaction”.
ii) É evidente, em face do que efetivamente ocorreu, que, para além da total legitimidade que os Pais da Requerente tinham para livremente deliberar a transformação da sociedade em sociedade anónima, fizeram-no naquele preciso momento a pedido da entidade adquirente, com o objetivo de viabilizar a operação de financiamento da aquisição da sociedade.
jj) Importando ainda recordar que, para a entidade adquirente, a transformação em sociedade anónima permitiria uma aquisição da C... sem sujeição a IMT (a sociedade era detentora de ativos imobiliários).
kk) Recorde-se, quanto ao penhor financeiro das ações da C..., garantia ao financiamento utilizado para a respetiva aquisição que, nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio “(…) entende-se por obrigações financeiras garantidas quaisquer obrigações abrangidas por um contrato de garantia financeira cuja prestação consista numa liquidação em numerário ou na entrega de instrumentos financeiros”.
ll) Clarificando a alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º do referido Decreto-Lei que se entende por Instrumentos financeiros os “valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos relativos a quaisquer dos instrumentos financeiros referidos”.
mm) Consequentemente, verifica-se que o penhor financeiro não pode incidir sobre quotas, na medida em que estas não são valores mobiliários, ao contrário do que sucede com as ações, definidas como tal na alínea a) do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários.
nn) Desta forma, no caso concreto da C..., não seria possível à entidade adquirente –I... UNIPESSOAL LDA – assegurar a prestação de garantia relevante para obtenção de financiamento bancário para a operação de aquisição sem que tivesse ocorrido a transformação em sociedade anónima da C... .
oo) Sendo apenas possível a constituição de penhor financeiro sobre ações da C... e não sobre quotas da C...,
pp) O que, aliás, é explicado de forma muito clara pela entidade adquirente, e também pode ser constatado (a típica exigência de penhor financeiro de ações) pela simples análise de qualquer operação de transmissão de sociedades cujo financiamento da aquisição dependa de entidades do setor financeiro.
qq) Como tal, a operação de transmissão não teria ocorrido sem a constituição do referido penhor, encontrando-se perfeitamente justificada (ainda que sobre a Requerente não possa recair essa obrigação) a razão pela qual a transformação foi realizada naquele concreto momento.
Da inexistência de vantagem fiscal
a) Considera a AT que “(…) foi apurada uma construção realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustra o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, realizada com abuso das formas jurídicas e que não se pode considerar genuína, tendo resultado na eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização destes meios, que, em nosso entender, constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal anti abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT” (vide Verso da Folha 3 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).
b) Conforme referido, está em causa, no que concretamente se refere à Requerente A..., a alienação de uma participação representativa de 17,3799% do capital social da C... à sociedade I... UNIPESSOAL LDA.
c) Tendo a participação em causa sido adquirida por doação realizada pelos pais da Requerente A... .
d) As ações adquiridas por doação foram devidamente avaliadas pela AT, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, tendo sido apurado um valor de € 5.760.685,33.
e) Este valor – € 5.760.685,33 – releva como custo fiscal de aquisição das ações da C... na esfera da Requerente A..., tal como resulta do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.
f) No momento do preenchimento da Declaração Modelo 3 de IRS, a Requerente ainda não tinha sido notificada das liquidações de Imposto do Selo (ocorreram apenas em 12.11.2020), pelo que o valor por si inicialmente inscrito da Declaração Modelo 3 de IRS (€ 5.854.325,31) divergiu em € 93.639,98 do valor apurado pela AT (€ 5.760.685,33).
g) Na medida em que a Requerente apurou, quanto à transmissão das ações da C..., uma menos-valia, a referida divergência não deu origem a qualquer impacto no apuramento do IRS de 2019 (não tendo igualmente as perdas sido aproveitadas no exercício de 2020, ou em qualquer outro exercício posterior, ou seja, não tendo existido, a este nível, qualquer tipo de vantagem fiscal).
h) Posto isto, verifica-se que a AT fundamenta a sua exposição quanto ao caráter alegadamente abusivo da operação, no facto de o curto espaço temporal verificado entre o momento da doação e da venda da C... significar que a Requerente A... não assumiu, de facto, a qualidade de acionista da sociedade.
i) Esclarecendo que “Destaca-se ainda que, conforme datas constantes do quadro 9 do anexo G da Modelo 3 de IRS de 2019, A... foi detentora das ações da C... durante apenas 6 dias, sendo peculiar que neste curto prazo tenha sido realizada uma menos-valia de € 1.937.086,32, pelo que esta transação vai ser alvo de uma análise mais aprofundada (…)” (Cf. Folha 6 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).
j) Tendo por base este raciocínio, considera a AT que, quando a doação ocorreu, a Requerente A... se limitou a receber as ações da sociedade, não praticando qualquer ato relevante na qualidade de acionista até ao momento em que as vendeu.
k) Refere inclusivamente que o facto de, no momento da doação, já ter sido celebrado um contrato de promessa para transmissão da totalidade do capital social da C... à sociedade I..., com um caráter “vinculativo”, demonstra que os Pais da Requerente pretenderam assegurar que a venda da sociedade ocorreria.
l) Referindo, por exemplo, que “(…) constata-se que o conselho de administração nomeado em 30-09-2019, apenas exerceu funções durante 24 dias, sendo evidente que neste período já era do conhecimento de D... e E... que em 24-10-2019 iriam ser substituídos, por força do contrato-promessa de venda das suas quotas da C... que tinham subscrito em 08-08-2019”. (Cf. Verso da Folha 7 do Relatório de Inspeção já junto como Documento n.º 3).
m) Nesse sentido, se a AT sustenta o caráter instrumental da qualidade da Requerente como acionista, deveria com isso concluir, como concluiu, que os doadores (Pais da Requerente, únicos responsáveis e legítimos decisores da operação de transformação em sociedade anónima) nunca pretenderam, de facto, doar quotas ou ações de uma sociedade,
n) Mas apenas encontrar forma de incrementar a liquidez subjacente à respetiva alienação a terceiros, por via da redução da carga fiscal incidente sobre eventuais mais-valias que, na sua esfera (dos Pais da Requerente), poderiam apurar.
o) Se é assim, e se estamos perante uma sequência de atos preparatórios para uma operação fiscalmente abusiva, então deveria ter sido reconstituída a situação fiscal que decorreria de uma venda da sociedade pelos Pais da Requerente A..., seguida de uma doação da respetiva liquidez aos filhos.
p) Se a AT, numa postura de coerência com as premissas da sua exposição, tivesse concluído este raciocínio, teria verificado (será que não o fez?) que uma alienação das participações da sociedade C... (quotas ou ações), pelos Pais da Requerente A... não teria dado lugar a qualquer tributação em sede de IRS,
q) Fruto de a respetiva data de aquisição ser anterior a 1 de janeiro de 1989,
r) Na medida em que, tal como resulta da análise efetuada pela AT à evolução do capital social da C... e devidamente refletida no Relatório de Inspeção (Cf. Verso da Folha 6 e Folha 7 já junto como Documento n.º 3), em 2019: (i) D... era detentora de uma única quota adquirida em 1972, com o valor nominal de € 359.134,49, representativa de 60% do capital social; (ii) E... era detentor de uma única quota adquirida em 1987, com o valor nominal de € 239.422,99, representativa de 40% do capital social.
s) Quanto a ambos, a respetiva data de aquisição era anterior a 1 de janeiro de 1989 (no caso de D..., 1971, e no caso de E..., 1987).
t) A verdade é que os Pais da Requerente A... doaram as ações aos filhos porque, caso não fosse concretizada a venda (apesar de tudo, importa recordar que tinha sido celebrado apenas um CPCV), já não queriam ter mais envolvimento na empresa, fruto da idade avançada.
u) Sendo certo que sempre seriam os filhos a assumir a posição acionista num cenário de não realização da transmissão.
v) Recorde-se, aliás, que o Pai da Requerente A... se encontrava, à data, já com idade avançada e em estado de saúde fragilizado, tendo vindo a falecer.
w) Nunca foi, por isso, intenção dos Pais voltar a assumir a qualidade de acionistas da sociedade, tendo deliberadamente tomado a opção de doar as participações sociais aos filhos.
x) Essencialmente para a eventualidade de a operação de transmissão perspetivada não se concretizar.
y) O que, como se disse, é evidente pelo facto de terem doado percentagens distintas de capital social aos filhos, em função do respetivo envolvimento na empresa.
z) Até porque se o objetivo fosse doar liquidez resultante da venda, teriam concretizado a venda e, sem terem de pagar IRS (por terem adquirido as participações em data anterior a 1 de janeiro de 1989), fariam doação isenta de Imposto do Selo aos filhos.
aa) Doação esta que, ao contrário da doação de participações sociais, nem sequer teria de ser declarada junto da AT através da entrega da Modelo 1 de Imposto do Selo, por força da dispensa prevista no n.º 11 do artigo 26.º e n.º 1 do artigo 28.º, ambos do Código do Imposto do Selo.
bb) E sempre se diga que, ao contrário do que refere a AT na decisão da reclamação graciosa apresentada, os Requerentes não pretendem com esta argumentação apresentar um negócio alternativo ao efetivamente realizado.
cc) Pretendem apenas demonstrar que a alegada vantagem fiscal em sede de IRS é inexistente, na medida em que a mais-valia não seria tributada na esfera dos Pais.
dd) Não existindo, por isso, qualquer fundamento para aplicação da CGAA a uma operação que, na esfera familiar da Requerente, não originou qualquer vantagem fiscal.
ee) Deste modo, e existindo um meio alternativo (ao que se veio a materializar e, bem assim, ao indicado pela AT) de realizar a operação, considerando até que tal opção se afigura menos complexa, mas que ainda assim resultaria na exclusão de tributação do rendimento em causa, temos de admitir como lógica a possibilidade de a operação ter sido realizada nos termos em que ocorreu, por forma a viabilizar o financiamento bancário (o que justifica plenamente o motivo económico, no entendimento deste Tribunal Arbitral Tribunal). (…) Pelos argumentos expostos, não é possível (pelo menos de modo cabal) concluir que o motivo da transformação da forma societária foi o único, ou o principal motivo, para evitar a tributação em sede de mais-valias.
ff) Não ocorrendo a verificação cumulativa dos elementos – meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório – constantes do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, não é possível (pelo menos de modo cabal) concluir, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, que o motivo da transformação da forma societária foi o único, ou o principal motivo, para evitar em sede de mais-valias.
gg) Não se encontrando preenchidas, in casu, as condições cumulativas necessárias para o preenchimento da tipicidade da Claúsula Geral Anti-Abuso (“CGAA”)”.
hh) Acresce, assim, que:
· Não pode, adicionalmente, a AT, como fez em sede de inspeção e de decisão da reclamação graciosa apresentada (cf. Página 6 do Documento n.º 6), referir que “(...) os atos e negócios correspondentes à realidade económica seriam os pais doarem as suas quotas aos filhos e estes venderem-nas à I...”.
· Deturpando a realidade, quando utiliza o curto espaço temporal entre operações e as relações familiares para sustentar que o objetivo das várias operações consistiu em assegurar uma venda da sociedade sem tributação,
· Mas já não utiliza os mesmos elementos para concluir que, se o objetivo da família consistia em vender a sociedade sem tributação, nada seria necessário fazer, porque os pais não seriam tributados em sede de IRS e, da mesma forma que doaram aos filhos as ações da sociedade, teriam doado o dinheiro resultante da respetiva venda.
· Aliás, apesar de a AT referir no Relatório de Inspeção (vide Folha 9 do Relatório, já junto como Documento n.º 3) que “(…) à data da transformação da C... em sociedade anónima (30-09-2019) ser do conhecimento dos sócios D... e E..., da gerente única J... e da restante FAMÍLIA G..., que passados alguns dias, a totalidade do capital seria transmitido (…)”, a verdade é que apenas D... e E... tinham de facto poder para a realização de qualquer operação,
· Incluindo a operação de transformação da C... em sociedade anónima.
ii) Como tal, verifica-se que a AT está a considerar abusiva uma operação de transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima prévia a uma doação quando:
· Existe um motivo económico inquestionavelmente válido para a transformação: sem penhor financeiro não haveria financiamento bancário; sem financiamento bancário não haveria operação de transmissão;
· A existir vantagem fiscal associada à transformação, sempre aproveitaria à entidade adquirente, em sede de IMT;
· A operação “de base” – transmissão de participações pelos Pais da Requerente A...-, estaria sempre excluída de IRS, na medida em que as mais-valias que seriam declaradas no Anexo G1 da Declaração Modelo 3 de IRS não seriam sujeitas a imposto.
· Essa operação - transmissão da sociedade pelos Pais da Requerente - é precisamente a demonstração da total inexistência de vantagem fiscal para a Família Ferreira de Sá caso, tal como defende a AT, o objetivo consistisse em assegurar a inexistência de tributação em sede de IRS numa venda da sociedade.
jj) Por outro lado, como poderia a Requerente A... ter atuado em alternativa?
· Rejeitava a doação que lhe havia sido feita pelos Pais?
· “Auto qualificava” a operação de transformação (que não decidiu nem tinha poderes para decidir, e da qual não foi parte) e calculava o custo de aquisição “simulando” ter recebido quotas, quando na realidade recebeu ações?
· Admitiria como valor de aquisição um valor distinto do valor que resulta da liquidação de Imposto do Selo validada pela AT?
· Este facto – este, sim – justificaria a aplicação de uma norma antiabuso!
kk) Efetivamente, a AT desconsidera os atos praticados pelos Pais da Requerente para ficcionar outros que, sem qualquer justificação em matéria de elemento resultado, poderiam ser suscetíveis de gerar uma receita fiscal que nunca seria apurada na ausência dessa ficção.
ll) Qual a razão para a AT colocar em causa apenas a transformação e não a doação?
mm) A resposta parece-nos óbvia:
nn) Se a AT desconsiderasse ambas as operações (transformação e doação) ficcionar-se-ia que a transmissão tinha ocorrido diretamente na esfera dos Pais da Requerente.
oo) Neste cenário, não haveria lugar a qualquer tributação, apesar do que refere a AT em resposta ao direito de audição e reclamação graciosa que, com o devido respeito, não se pode sobrepor a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo e profusamente repetida na jurisprudência do CAAD.
pp) Ao colocar em causa apenas o ato de transformação, a AT consegue sujeitar a tributação uma realidade que nunca seria, na sua base, tributável.
qq) Como tal, a questão que se impõe é a seguinte: Estando a exclusão de tributação de mais-valias por aquisição anterior a 1 de janeiro de 1989 em situações semelhantes perfeitamente clarificada por Acórdão do STA de março 2018 (mais de 1 ano antes da transmissão das ações à I... UNIPESSOAL LDA), por que motivo fariam os Pais da Requerente A... uma operação “abusiva” para evitar uma mais-valia que nunca poderia ser tributada?
rr) Qual a vantagem fiscal? O legislador passou a permitir “aplicações parciais” da cláusula geral anti abuso, em que a AT “seleciona” as operações que pretende desconsiderar, em função do resultado obtido?
ss) Se a construção, neste caso, foi abusiva, e se, tal como refere a AT, não devemos incorrer no erro de analisar os atos de forma isolada, porque não colocar em causa a doação? Apenas porque da mesma não resultaria qualquer receita fiscal?
II.2. Posição da Requerida
Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
a) Deverão considerar impugnados os factos alegados pelos Requerentes que se encontrem em oposição com a presente Resposta, considerada no seu conjunto, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 574.º do Código do Processo Civil - CPC, ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do art.º 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - RJAT.
b) O relatório de Inspeção contém a descrição pormenorizada dos factos tributários/construções que foram submetidos a aplicação da CGAA prevista no nº 2 do art.º 38º da LGT.
c) Conforme consta no RIT, a sociedade C... Á é uma empresa de cariz familiar, tendo como sócios os pais da Requerente até 2019 (D... E E...) e que desde o ano 2000 tem como gerente a irmã da ora Requerente, J... .
d) Uma análise holística/integrada de todos dos atos ou negócios (construções), principais, preparatórios e complementares, permite concluir que a FAMÍLIA G..., agiu sempre de forma concertada, com vista à obtenção do resultado final (alienação das ações sem as sujeitar a tributação), independentemente de ter sido a irmã da Requerente (J...), a principal interveniente por ser a gerente da sociedade e representante da Requerente em quase todos atos, tendo assinado tanto o contrato promessa de compra e venda – CPCV como representante dos pais (em 08-08-2019), como o contrato definitivo em representação dos 4 irmãos e da própria (em 24-10-2019).
e) Neste sentido, e com o devido respeito, não parece credível a alegação de desconhecimento, participação simbólica e falta de intervenção nos factos e construções em discussão, uma vez que, de acordo com o que foi apurado, tanto a Requerente como os restantes irmãos, delegaram ou deram poderes à irmã para agir em seu nome (o que demonstra a confiança entre todos intervenientes), sendo esta a principal peça deste negócio/plano da família G... e que foi gizado para obtenção de vantagens fiscais que resultou na transformação da C... NIF ... em sociedade anónima antes da doação das suas ações (de pais para os 5 filhos) e sua posterior alienação pelos donatários para a sociedade I..., UNIPESSOAL, LDA NIF ... .
f) Para sustentar esta tese, segundo a qual, a família G..., representada por J..., agiu sempre de forma concertada e alinhada nesta série de construções, transcrevemos a factualidade constante no ponto V.2.1.2 do RIT:
“(…)1. Em 08-08-2019 foi celebrado um contrato promessa de compra e venda das quotas / ações da C... (Share Purchase Agreement - SPA) entre os vendedores D... e E... ao K... (K... SL), conforme já descrito no ponto V.1.5. deste relatório. Da consulta à página 41 do contrato (anexo n.º 10) constata-se que quem assinou em representação dos promitentes vendedores foi J..., demonstrando que já se encontrava nessa data a agir em representação dos interesses da FAMÍLIA G...;
2. Em anexo a este mesmo contrato, constava o anexo APENDIX 1.1(d) – KEY EMPLOYEES (funcionários chave – tradução livre) no qual constava o nome de A..., que era funcionária da sociedade C..., desde 01-07-2012. Por outro lado, na página 4 do Share Purchase Agreement (ponto VI), consta que como parte integrante deste negócio, alguns funcionários chave assinaram novos contratos de trabalho, sendo o caso de A..., cujo novo contrato de trabalho consta em anexo ao Share Purchase Agreement (anexo n.º 10). Com esta alteração do seu contrato de trabalho, passou a auferir uma remuneração mensal de € 7.000,00 quando anteriormente auferia € 5.500,00. Ou seja, apesar de ter sido J... a assinar o Share Purchase Agreement (em representação dos seus pais), A... tinha conhecimento das negociações em curso, nomeadamente por ter sido considerado um “funcionário chave” para efeitos deste negócio, tendo assinado um novo contrato de trabalho.
3. Em 30-09-2019, foi efetuada a transformação da C... em sociedade anónima, ato fundamental para a obtenção da vantagem fiscal descrita neste relatório, sendo que neste ato participaram os anteriores sócios D... e E... e os novos acionistas J..., A... (alvo desta ação de inspeção) e F..., estando todos eles cientes de que já tinha sido celebrado um contrato promessa de compra e venda do capital da C..., cuja data de execução iria ocorrer decorridos poucos dias. Neste ato, a FAMÍLIA G... voltou a agir de forma concertada para atingir a almejada vantagem fiscal. Veja-se que intervieram neste ato aqueles 5 membros da família por ser o número mínimo de acionistas necessários para a constituição de uma sociedade anónima, nos termos do art. 273.º do Código das Sociedades Comerciais. Destes 5 acionistas iniciais da C..., dois deles eram anteriores sócios D... e E... e os 3 novos acionistas (com participações meramente simbólicas de € 1,00 cada um), para além de serem filhos daqueles outros 2 acionistas, eram também funcionários da sociedade, sendo que J... era a gerente-única.
4. Em 18-10-2019, alguns dias após a referida transformação em sociedade anónima e poucos dias antes da execução do contrato-promessa de venda das ações da C..., D... e E... doam aos seus filhos, as suas ações representativas de 99,99% do capital daquela sociedade, num acordo assinado por todos os membros da FAMÍLIA G..., no qual repartem as ações por cada um dos donatários, o que viria a corresponder ao valor que cada um deles receberia pela venda das ações já acordada desde 08-08-2019. Neste ato, a FAMÍLIA G... voltou a agir de forma concertada na execução de mais um ato necessário à obtenção da almejada vantagem fiscal.
5. Em 24-10-2019 ocorreu a transferência das ações da C... para a I..., data em que foi subscrito um contrato definitivo, designado de COMPLETION AND TRANSFER DEED (anexo n.º 9), no qual se constata que J... agiu em seu nome e em representação dos restantes 4 vendedores (seus irmãos), demonstrando, mais uma vez, que todos os atos que compõem esta construção foram realizados de forma concertada pela FAMÍLIA G... .
6. Neste mesmo dia 24-10-2019, foram efetuados 4 pagamentos relativos à venda do capital da C..., tendo sido emitidos 3 cheques, nos montantes de € 5.000.000, € 4.876.800 e € 6.000.000, todos à ordem de J... e uma transferência bancária, no montante de € 3.623.200, para uma conta bancária titulada por J... . Em 21-01-2021, foi efetuada mais uma transferência bancária, no montante de € 1.500.000, para uma conta bancária titulada por J... (estes documentos constam em anexo n.º 10). Mais uma vez constata-se a atuação concertada da FAMÍLIA G..., neste caso dos 5 filhos, já que aqueles pagamentos foram efetuados a J..., que volta a agir em representação dos seus 4 irmãos. Note-se que, a entrega da totalidade destes montantes a apenas um dos membros da FAMÍLIA G..., demonstra a existência de uma relação de proximidade e de confiança entre eles.
7. Em 20-01-2020 foram entregues as declarações Modelo 1 de Imposto do Selo (art. 26.º do CIS), nas quais foram comunicadas as transmissões gratuitas de D... e E... para os seus 5 filhos. Da consulta a estas declarações (anexo n.º 1) constata-se que os donatários entregaram estas declarações em conjunto, tendo para o efeito concedido, cada um deles, uma procuração aos mesmos advogados, no sentido de estes os representarem neste ato. Neste caso, as Modelo 1 foram entregues pela Dra L...– NIF ..., no Serviço de Finanças de Lisboa – ..., em 20-01-2020, conforme se vê nas declarações Modelo 1 em anexo n.º 1, juntamente com os respetivos documentos anexos, nomeadamente as procurações emitidas por cada um dos donatários. Ou seja, mais uma vez, a FAMÍLIA G..., agiu de forma coligada, demonstrando que agiram sempre de forma concertada para a concretização desta construção que visava a obtenção da vantagem fiscal em análise neste relatório. (…)” .
g) O que permite concluir que a Requerente A... teve sempre conhecimento de todo o processo negocial, embora não tenha tido intervenção direta por não ser sócia e nem exercer funções executivas na sociedade familiar C... (no entanto, era funcionária) mas delegou a sua representação.
h) A convicção da AT e provado no procedimento inspetivo, é que o contexto familiar restrito (pais, filhos e irmãos) permitiu que todos tivessem conhecimento de todo o processo de reorganização societária (transformação, doação, e posterior alienação) de forma a obter a melhor vantagem fiscal possível na venda das ações.
i) E consequentemente a tributação deve recair sobre os donatários (os 5 filhos onde se inclui a ora Requerente A...) como efetivos beneficiários da vantagem fiscal de toda a construção abusiva gizada, não nos parecendo de acolher as alegações contantes neste ponto da petição.
III. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
IV. FUNDAMENTAÇÃO
IV.1. Matéria de facto
Factos dados como provados
Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:
a) Em 01-12-2020, A... NIF..., no estado civil de casada com B... NIF ..., procedeu à entrega da declaração de rendimentos de substituição Modelo 3 de IRS nº ... - 2019 -..., referente ao ano de 2019, tendo declarado como auferidos no Anexo A, Q4A, rendimentos provenientes de trabalho dependente no valor total de 117.813,90€ disponibilizados pelas entidades C..., S.A NIF ... e M... LDA NIF ... e no anexo G, Q9, campos 9001 a 9014, foi declarada alienação de partes sociais e outros valores mobiliários [art.º 10.º, n.º 1, al. b), do CIRS] - (código G01), no valor total de 3.858.304,43€, cujo valor de aquisição totaliza os 5.773.050,71€ (tendo assim apurado menos-valias).
b) Do qual resultou a liquidação n.º 2020 ... de 04-12-2020, com um valor a reembolsar de 395,48€.
c) Em 01-07-2022, a coberto da Ordem de Serviço n.º OI2022... de 28-03-2022, a Direção de Finanças de Aveiro levou a cabo ação inspetiva externa de âmbito parcial - IRS, aos Sujeitos Passivos e ora Requerentes A... NIF ... e B... NIF ... com finalidade de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, relativamente ao ano fiscais de 2019 -código PNAITA 102-09 - Controlo de mais-valias (Relatório de inspeção Tributária – RIT, que se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos).
d) Esta ação inspetiva foi precedida de diligências externas de recolha e cruzamento de elementos dirigido à sociedade C..., S.A NIF..., em cumprimento do despacho DI2021..., com o objetivo de: “Recolha de elementos relacionados com a evolução da estrutura societária da empresa”.
e) No âmbito do procedimento inspetivo atrás descrito, foi apurada uma construção realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustra o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, realizada com abuso das formas jurídicas e que não se pode considerar genuína, tendo resultado na eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização destes meios, que, constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal anti abuso prevista no n.º 2 do artigo 38° da LGT, cuja autorização foi dada a 08-03-2023, por despacho da Sr.ª Diretora-geral da AT.
f) Assim sendo, incumbiu à Administração Fiscal considerar ineficaz, no âmbito tributário, a transformação da C... NIF ... em sociedade anónima antes da doação das suas ações e sua posterior alienação pelos donatários – onde se inclui a Requerente A... e os irmãos da família G... (num negócio que já tinha sido negociado antes da transformação em S.A.), permitindo-lhes não serem tributados em sede de IRS sobre a mais-valia realizada, aproveitando abusivamente o facto da avaliação das ações ser diferente da avaliação das quotas, para efeitos de imposto do selo, aquando da doação, sendo este valor que serviu de custo de aquisição para efeitos de cálculo da mais-valia.
g) Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência de tais construções, concretamente desconsiderando a transformação em sociedade anónima por ser um ato abusivo e desprovido de substancia económica, não se produzindo as vantagens fiscais, tal como dispõe o n.º 2 do art.º 38° da LGT.
h) E consequentemente, a tributação deve ser efetuada de acordo com as normas aplicáveis aos negócios com idêntico fim económico, não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas, sendo de salientar que as correções/apuramentos relativas aos rendimentos de Cat. G foram refletidas na esfera jurídico-tributária dos beneficiários (a Requerente A... e os irmãos).
i) Assim, foram efetuadas correções ao rendimento líquido da categoria G do IRS no ano de 2019 do SP A e Requerente A... NIF ... (V.3.1. do RIT), resultando proposta de: a. Apuramento de IRS a pagar no montante de 604.241€ (mais-valias corrigidas de 2.158.003,57€, sujeitos a taxa especial de tributação autónoma de 28% prevista alínea c) do nº 1 do art.º 72º, do CIRS) relativos à diferença entre o valor de realização de 3.823.600,01€ e o valor de aquisição corrigido de 1.665.596,44€. b. Aumento da coleta no montante de 1.129.802,02€ (resultado da diferença entre o valor da coleta total declarada de 39.819,69€ e a colega corrigida de 1.169.621,72€), sujeitos a taxas gerais previstas no art.º 68º do CIRS, em caso de opção pelo englobamento.
j) Consta ainda nesse ponto do RIT que “(…) mantendo a opção pelo englobamento dos rendimentos da categoria G, o imposto a entregar nos cofres do Estado, resultante das correções propostas, é superior em € 525.561,03 (resultante da diferença entre o aumento da coleta no caso da opção pelo englobamento e a tributação autónoma no caso da não opção pelo englobamento: € 1.169.621,72 - €39.819,69 – € 604.241). Tendo em conta os cálculos apresentados nos pontos a) e b) deste capítulo, propõe-se que ao saldo positivo das mais-valias e menos-valias apuradas no ano de 2019, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, seja aplicada a taxa autónoma de 28% prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º do mesmo diploma legal, por ser mais favorável aos sujeitos passivos comparativamente ao englobamento destes rendimentos, não prejudicando a possibilidade dos sujeitos passivos exercerem esta opção, nos termos do n.º 12 do art. 72.º do CIRS (na redação dada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro e alterado pela Declaração de Retificação n.º 7-A/2019, de 8 de março) através da regularização voluntária da sua situação tributária ou manifestando esta opção no âmbito do prazo para exercício do direito de audição previsto no art. 63.º, n.º 5 do CPPT.(…)” .
k) Através de ofício nº 2022..., de 22-07-2022 da DF de Aveiro (RH...PT), os Requerentes foram notificados do teor do projeto de Relatório de Inspeção Tributária elaborados, nos termos previstos nos artºs 60.º da LGT e 60.º do RCPITA, para, no prazo de 30 dias, exercer o direito de audição prévia, conforme previsto no n.º 5 do art.º 63º do CPPT. 12. Em 20-09-2022, os SPs exerceram esse direito mediante apresentação de requerimento que deu entrada na Direção de Finanças de Aveiro (entrada GPS nº 2022...), não concordando com as correções propostas (anexo 11 do RIT).
l) Após terem sido analisados os factos e argumentos trazidos pelos Requerentes no exercício do direito de audição, concluiu-se que, os mesmos não eram suscetíveis de alterar as conclusões que constavam do projeto de relatório, tendo assim sido mantidas as correções propostas no capítulo V.3.1. do RIT (capítulo X).
m) Na sequência das conclusões do procedimento inspetivo atrás referido, em 09-03-2023, os serviços elaboraram a declaração oficiosa de IRS 2019 (nº ... - 2019 -...) em nome dos Requerentes, mantendo os anexos anteriormente declarados, mas corrigindo para o SP A (A...) o anexo G, Q9, campo 9001, o valor de aquisição para 1.677.960,82€ (tendo assim apurado mais-valias) e no Q15 foi assinalada a opção pelo NÂO englobamento dos rendimentos (C02).
n) A qual deu origem à liquidação oficiosa de IRS 2019 nº 2023... de 22-04-2023, com valor de imposto a pagar de 605.227,11€ (acerto de contas nº 2023... de 31-10-2023 e respetivos juros compensatórios nº 2023... no valor de 65.132,35€, juros compensatórios por recebimento indevido nº 2023... no valor de 42,06€, juros compensatórios majorados nº 2023 ... no valor de 243.848,49€, e estorno de liquidação nº 2020 ... no valor de 395,48€), perfazendo um valor global de 914.645,49€, entretanto regularizado com data de 04-12-2023.
o) Desta liquidação ainda resultaram juros compensatórios no valor de 65.132,35€ e majoração de juros compensatórios no valor de 243.848,49€, conforme disposto nos art.ºs 35º e 38º nº 6 da LGT conjugado com o art.º 91º do CIRS.
p) Em 26-01-2024 (Registo CTT nº RH...PT), os Requerentes apresentaram reclamação graciosa do ato tributário atrás referido, ao abrigo do art.º 68º e seguintes do CPPT que foi instaurado com o nº ...2024... de 16-02-2024, tendo sido DEFERIDO PARCIALMENTE por despacho de 15-11-2024, da chefe de Divisão da Justiça Tributária – Contencioso da DF de Aveiro nos seguintes termos: • “(…) Valor de realização: a alteração do valor de realização tem enquadramento no disposto no art. 44.º, n.º 7 do CIRS, podendo a declaração Modelo 3 entregue em 26-01-2024 ser enquadrável no prazo especial previsto naquele artigo; x Valor de aquisição: ao alterar o valor de aquisição que tinha sido determinado na ação de inspeção OI2022... por aplicação da CGAA, os reclamantes demonstraram a sua discordância com aquelas correções, tal como já tinham feito ao apresentar a reclamação graciosa n.º ...2024..., a qual foi indeferida, por despacho de 24-10-2024. Assim, deverá ser mantido o valor de aquisição apurado na ação de inspeção (€ 1.665.595,44); • Despesas e encargos: tratando-se de despesas inerentes à venda das partes de capital, têm enquadramento no art. 51.º, n.º 1, al. b) do CIRS, devendo ser aceite o valor inscrito neste campo; • Opção pelo englobamento: conforme vontade dos S.P., demonstrada no direito de audição desta reclamação graciosa, vai ser alterada a sua opção, não sendo englobados os rendimentos da categoria G, pelo que serão tributados à taxa autónoma de 28%, prevista no art. 72.º, n.º 1, al. c) do CIRS. (…)” (Projeto/Informação de 28-10-2024 e 14-11-2024, processo nº BD 920, cujos fundamentos se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos).
q) Através do ofício nº ... de 11-10-2022 (Registo CTT AR nº RL ... 5PT) da Direção de Finanças de Aveiro, foram os Requerentes notificados do referido despacho para os devidos e legais efeitos, a 18-11-2024, nos termos do nº 3 do art.º 39º do CPPT. Discordando do despacho de deferimento parcial, em 02-12-2024.
r) Através do mandatário, apresentaram recurso hierárquico ao abrigo do nº 2 do art.º 66º do CPPT, que foi instaurado no SICAT com o nº...2024... de 26-11-2024, cujo indeferimento tácito, nos termos dos nºs 1 e 5 do art.º 57º da LGT, deu lugar ao presente pedido de pronúncia arbitral.
Factos dados como não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, e em factos não questionados pelas partes.
Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos, tendo admitido, ao abrigo da livre condução do processo, todos os documentos pertinentes ao apuramento da verdade material, garantindo o pleno contraditório às partes.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
IV. 2. Matéria de Direito
IV. 2. A. Thema decidendum
a) Considerações gerais
Este Tribunal é chamado a apreciar sobre no que concretamente se refere à Requerente A..., a alienação de uma participação representativa de 17,3799% do capital social da C... à sociedade I... UNIPESSOAL LDA.
Efetivamente os factos relevantes resumem-se ao seguinte:
a) A sociedade C... foi, em 30.09.2019, transformada de sociedade por quotas em sociedade anónima.
b) A mencionada transformação foi deliberada pelos Pais da Requerente (detentores de 100% do capital social da C...).
c) Dessa deliberação fizeram parte, de um ponto de vista meramente formal e simbólico, além da Requerente A..., os seus irmãos J... e F..., a quem foram atribuídas quotas com o valor nominal de apenas € 1, com o único objetivo de assegurar o cumprimento do número mínimo de 5 acionistas legalmente exigido pelo Código das Sociedades Comerciais (“CSC”).
d) Tendo a participação em causa sido adquirida por doação realizada pelos pais da Requerente A... .
a) As ações adquiridas por doação foram devidamente avaliadas pela AT, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, tendo sido apurado um valor de € 5.760.685,33.
b) Este valor – € 5.760.685,33 – releva como custo fiscal de aquisição das ações da C... na esfera da Requerente A..., tal como resulta do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.
c) No momento do preenchimento da Declaração Modelo 3 de IRS, a Requerente ainda não tinha sido notificada das liquidações de Imposto do Selo (ocorreram apenas em 12.11.2020), pelo que o valor por si inicialmente inscrito da Declaração Modelo 3 de IRS (€ 5.854.325,31) divergiu em € 93.639,98 do valor apurado pela AT (€ 5.760.685,33).
d) Na medida em que a Requerente apurou, quanto à transmissão das ações da C..., uma menos-valia, a referida divergência não deu origem a qualquer impacto no apuramento do IRS de 2019 (não tendo igualmente as perdas sido aproveitadas no exercício de 2020, ou em qualquer outro exercício posterior, ou seja, não tendo existido, a este nível, qualquer tipo de vantagem fiscal).
e) Posto isto, verifica-se que a AT fundamenta a sua exposição quanto ao caráter alegadamente abusivo da operação, no facto de o curto espaço temporal verificado entre o momento da doação e da venda da C... significar que a Requerente A... não assumiu, de facto, a qualidade de acionista da sociedade.
f) Esclarecendo que “Destaca-se ainda que, conforme datas constantes do quadro 9 do anexo G da Modelo 3 de IRS de 2019, A... foi detentora das ações da C... durante apenas 6 dias, sendo peculiar que neste curto prazo tenha sido realizada uma menos-valia de € 1.937.086,32, pelo que esta transação vai ser alvo de uma análise mais aprofundada (…)” (Cf. Folha 6 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).
b) Sobre os pressupostos da Cláusula Geral Anti Abuso
O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral anti abuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».
No caso em apreço, a Administração Tributária decidiu a aplicação da cláusula geral anti abuso considerando que os negócios jurídicos que devem ser desconsiderados para efeitos de tributação são:
· a participação em causa sido adquirida por doação realizada pelos pais da Requerente A... .
· As ações adquiridas por doação foram devidamente avaliadas pela AT, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, tendo sido apurado um valor de € 5.760.685,33.
· Este valor – € 5.760.685,33 – releva como custo fiscal de aquisição das ações da C... na esfera da Requerente A..., tal como resulta do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.
· No momento do preenchimento da Declaração Modelo 3 de IRS, a Requerente ainda não tinha sido notificada das liquidações de Imposto do Selo (ocorreram apenas em 12.11.2020), pelo que o valor por si inicialmente inscrito da Declaração Modelo 3 de IRS (€ 5.854.325,31) divergiu em € 93.639,98 do valor apurado pela AT (€ 5.760.685,33).
· Na medida em que a Requerente apurou, quanto à transmissão das ações da C..., uma menos-valia, a referida divergência não deu origem a qualquer impacto no apuramento do IRS de 2019 (não tendo igualmente as perdas sido aproveitadas no exercício de 2020, ou em qualquer outro exercício posterior, ou seja, não tendo existido, a este nível, qualquer tipo de vantagem fiscal).
· Posto isto, verifica-se que a AT fundamenta a sua exposição quanto ao caráter alegadamente abusivo da operação, no facto de o curto espaço temporal verificado entre o momento da doação e da venda da C... significar que a Requerente A... não assumiu, de facto, a qualidade de acionista da sociedade.
· Esclarecendo que “Destaca-se ainda que, conforme datas constantes do quadro 9 do anexo G da Modelo 3 de IRS de 2019, A... foi detentora das ações da C... durante apenas 6 dias, sendo peculiar que neste curto prazo tenha sido realizada uma menos-valia de € 1.937.086,32, pelo que esta transação vai ser alvo de uma análise mais aprofundada (…)” (Cf. Folha 6 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).
Efetivamente a AT desconsidera os atos praticados pelos Pais da Requerente para ficcionar outros que, sem qualquer justificação em matéria de elemento resultado, poderiam ser suscetíveis de gerar uma receita fiscal que nunca seria apurada na ausência dessa ficção.
A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que as referidas operações de realizadas no sobredito enquadramento são abusivas, na medida em que o elemento meio, caraterístico da aplicação da CGAA.
Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches: o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por ação intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».
Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo atua contra legem, extra legem e intra legem.
Quando este atua contra legem, a sua atuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe diretamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal passível, inclusive, de ser objeto de censura contra-ordenacional ou criminal.
A atuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar diretamente. Este adota «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal». Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detetar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema». Este tipo de atuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal».
Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a atuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a atuação não se enquadre na supra referida atuação extra legem.
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo.
Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:
– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;
– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente;
– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigida [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objetivamente, se o contribuinte «pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»;
– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela »;
– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).
Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente».
Apreciemos, tendo este aspeto em consideração, os elementos da cláusula geral anti abuso considerando a fundamentação da decisão, os factos provados, e a argumentação jurídica das partes.
c) Análise da situação em causa
Nesta análise, tem de partir-se do pressuposto de que a fundamentação do ato que decidiu a aplicação da cláusula geral anti abuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio ato e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por atos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele]. Por isso, os atos que são objeto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos.
C1. Quanto à operação de transformação da sociedade por quotas e em sociedade anónima
No caso sub juditio a Requerente verificou, pela análise do Projeto de Relatório de Inspeção, que a AT teceu um conjunto de considerações sobre as motivações subjacentes à operação de transformação.
Na verdade, conforme referido pela Requerente, a referência a que a evolução para uma estrutura jurídica de sociedade anónima melhor se ajusta à dimensão, posicionamento, e perspetiva de crescimento da sociedade, é perfeitamente comum nas operações.
Por outro lado, considera a Requerente que o facto de a sociedade ter tido um histórico de vários anos como sociedade por quotas, e de ter tido sucesso enquanto tal, não pode limitar os seus sócios na possibilidade de, se assim entenderem, promoverem a transformação em sociedade anónima.
Aliás, a própria AT, quando realizou a inspeção tributária, deveria ter tido o cuidado de verificar que a sociedade, nesse momento, quase 3 anos após a transformação, já detida por um Fundo de Private Equity altamente profissionalizado, ainda era uma sociedade anónima.
C2. Quanto à doação das participações sociais
Já quanto à doação existe um motivo económico inquestionavelmente válido para a transformação uma vez que:
· sem penhor financeiro não haveria financiamento bancário;
· sem financiamento bancário não haveria operação de transmissão;
· A existir vantagem fiscal associada à transformação, sempre aproveitaria à entidade adquirente, em sede de IMT;
· A operação “de base” – transmissão de participações pelos Pais da Requerente A...-, estaria sempre excluída de IRS, na medida em que as mais-valias que seriam declaradas no Anexo G1 da Declaração Modelo 3 de IRS não seriam sujeitas a imposto.
Essa operação – transmissão da sociedade pelos Pais da Requerente – é precisamente a demonstração da total inexistência de vantagem fiscal para a Família ... caso, tal como defende a AT, o objetivo consistisse em assegurar a inexistência de tributação em sede de IRS numa venda da sociedade.
Mas será que todo este encadeamento de operações visou tão só e apenas subtrair a tributação rendimentos a ela sujeitos ou, pelo contrário, não foi esse o único ou principal leit motiv?
Vejamos:
A cláusula geral anti abuso (abreviadamente, CGAA) foi introduzida no sistema fiscal português durante a década de noventa, altura em que começaram a ser adotadas também em Portugal algumas outras medidas antiabuso, especiais, no âmbito dos impostos sobre o rendimento.
E, na essência das alterações introduzidas à redação inicial da CGAA pela Lei nº 100/99, de 26 de julho, está a “importação” da doutrina germânica do missbrauch von formen [abuso de formas ou possibilidades de configurações jurídicas dos negócios].
A sua razão de ser e principal motivação encontra-se na necessidade de se estabelecerem meios de relação – e, também, de prevenção – que sejam mais adequados a reprimir estes comportamentos tidos por “antijurídicos”, ainda que lícitos, exigindo que a Administração Fiscal faça a prova da verificação concreta dos pressupostos legais que permitem desencadear as suas consequências próprias.
O princípio subjacente à CGAA é o da prevalência da substância económica sobre a forma jurídica dos atos ou negócios jurídicos, sem, no entanto, se chegar ao ponto de retirar alcance prático aos princípios da legalidade e da tipicidade taxativa dos impostos.
Por isso é que, para o pleno funcionamento da CGAA, ter-se-á, no limite de concluir pela existência duma “roupagem” de formas jurídicas destinadas tão só e apenas a encobrir realidades económicas que, sem essa “roupagem”, seriam tributadas.
Se, pelo contrário, os contribuintes são norteados por outras preocupações ou razões quando escolhem uma via que redunda em dispensa ou redução de tributação, então revelar-se-á excessivo concluir pela obrigação de opção do contribuinte pela via que implique um maior agravamento na tributação.
Subsumindo:
Recorrer-se-á aos requisitos que constam do artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária – posto que são os únicos que considera aplicáveis – tentando demonstrar a sua verificação ou não.
1.º Requisito – Vantagem Fiscal e Negócio Económico Equivalente
Um dos requisitos primeiros de que depende a aplicação daquela Cláusula da Lei Geral Tributária é precisamente a existência de um negócio ou estrutura que permita obter uma vantagem fiscal, da qual o contribuinte, doutro modo (pela via negocial direta), não disporia.
Isso equivale a demonstrar, por um lado, a verificação de uma vantagem fiscal em favor do contribuinte e, por outro, um (ou vários) negócio(s) jurídico(s) de efeitos económicos equivalentes, que se podem reputar de negócio(s) indireto(s).
Em termos esquemáticos, sendo A a via não utilizada, e B a via utilizada, impõe-se que a Administração Fiscal demonstre, quanto a este requisito, que
- B é fiscalmente mais vantajoso que A;
e que
- B produz efeitos económicos equivalentes a A.
Assim deveria a AT encontrar efeitos equivalentes das respetivas situações:
a) Quanto a ambos, a respetiva data de aquisição era anterior a 1 de janeiro de 1989 (no caso de A..., 1971, e no caso de E..., 1987).
b) A verdade é que os Pais da Requerente A... doaram as ações aos filhos porque, caso não fosse concretizada a venda (apesar de tudo, importa recordar que tinha sido celebrado apenas um CPCV), já não queriam ter mais envolvimento na empresa, fruto da idade avançada.
c) Sendo certo que sempre seriam os filhos a assumir a posição acionista num cenário de não realização da transmissão.
d) Recorde-se, aliás, que o Pai da Requerente A... se encontrava, à data, já com idade avançada e em estado de saúde fragilizado, tendo vindo a falecer.
e) Nunca foi, por isso, intenção dos Pais voltar a assumir a qualidade de acionistas da sociedade, tendo deliberadamente tomado a opção de doar as participações sociais aos filhos.
f) Essencialmente para a eventualidade de a operação de transmissão perspetivada não se concretizar.
g) O que, como se disse, é evidente pelo facto de terem doado percentagens distintas de capital social aos filhos, em função do respetivo envolvimento na empresa.
h) Até porque se o objetivo fosse doar liquidez resultante da venda, teriam concretizado a venda e, sem terem de pagar IRS (por terem adquirido as participações em data anterior a 1 de janeiro de 1989), fariam doação isenta de Imposto do Selo aos filhos.
i) Doação esta que, ao contrário da doação de participações sociais, nem sequer teria de ser declarada junto da AT através da entrega da Modelo 1 de Imposto do Selo, por força da dispensa prevista no n.º 11 do artigo 26.º e n.º 1 do artigo 28.º, ambos do Código do Imposto do Selo.
j) E sempre se diga que, ao contrário do que refere a AT na decisão da reclamação graciosa apresentada, os Requerentes não pretendem com esta argumentação apresentar um negócio alternativo ao efetivamente realizado.
k) Pretendem apenas demonstrar que a alegada vantagem fiscal em sede de IRS é inexistente, na medida em que a mais-valia não seria tributada na esfera dos Pais.
l) Não existindo, por isso, qualquer fundamento para aplicação da CGAA a uma operação que, na esfera familiar da Requerente, não originou qualquer vantagem fiscal.
Deste modo, e existindo um meio alternativo (ao que se veio a materializar e, bem assim, ao indicado pela AT) de realizar a operação, considerando até que tal opção se afigura menos complexa, mas que ainda assim resultaria na exclusão de tributação do rendimento em causa, temos de admitir como lógica a possibilidade de a operação ter sido realizada nos termos em que ocorreu, por forma a viabilizar o financiamento bancário (o que justifica plenamente o motivo económico, no entendimento deste Tribunal Arbitral Tribunal). (…) Pelos argumentos expostos, não é possível (pelo menos de modo cabal) concluir que o motivo da transformação da forma societária foi o único, ou o principal motivo, para evitar a tributação em sede de mais-valias.
Na verdade, resulta claro que qualquer em qualquer destas operações a alternativa seria a tributação plena:
a) Ao contrário do que refere a AT na decisão da reclamação graciosa apresentada, os Requerentes não pretendem com esta argumentação apresentar um negócio alternativo ao efetivamente realizado.
b) Pretendem apenas demonstrar que a alegada vantagem fiscal em sede de IRS é inexistente, na medida em que a mais-valia não seria tributada na esfera dos Pais.
c) Não existindo, por isso, qualquer fundamento para aplicação da CGAA a uma operação que, na esfera familiar da Requerente, não originou qualquer vantagem fiscal.
Com o devido respeito, a formulação administrativa inexequível e na ausência de equivalência económica entre as situações descritas – que é condição de aplicabilidade – a Cláusula Geral Anti Abuso é forçosamente inoperável no caso, porquanto desaparece a própria ratio essendi da própria cláusula, a saber, reprimir a utilização de vias indiretas, abusivas e fiscalmente vantajosas de obtenção de um resultado económico idêntico, assim defraudando o propósito da Lei e/ou do Sistema Fiscal considerado globalmente.
2.º Requisito - Abuso de Formas Jurídicas
É característica essencial da aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso – no que consistiu uma alteração à redação inicial da Cláusula (na senda da melhor doutrina, como a de Saldanha Sanches), com a transposição para a norma nacional, das conceções germânicas sobre abuso de formas [Miβbrauch von Formen], que enformam o § 42 da Abgabenordnung de 1977 – a existência de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”.
O que são, então, meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas?
Apenas haverá abuso de formas e artifícios, na fórmula que a Recorrente considera mais apropriada, quando a configuração jurídica (estrutura) adotada seja “inoportuna, complicada, pesada, absurda ou supérflua, não correspondendo sob qualquer ponto de vista, para além do objetivo da vantagem fiscal, a um esquema razoável ou comum de atingir os fins a que se propõe à partida” e se demonstre uma “efetiva discrepância entre a causa típica do negócio, e os fins práticos visados pelas partes quando os celebraram.
E isto porque a dita causa típica não é incompatível com a finalidade económica prática que as partes perseguem, pese embora seja distinta e instrumentalmente “pouco ortodoxa” para a alcançar. O negócio é intencionalmente desfuncionalizado, sendo desejado pelas partes não para realização da sua função, mas para obtenção de um outro resultado prático ou económico, o qual pode não ser admitido pelo Sistema Fiscal. Só neste último caso, os referidos negócios anómalos serão censuráveis em função do requisito da inusualidade” – Gustavo LopesCourinha, A cláusula geral anti-abuso no Direito Tributário: contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2004, p. 152 e bibliografia aí referida.
Também Gonçalo Avelãs Nunes, “A Cláusula Geral Anti Abuso de Direito em Sede Fiscal Art. 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária à luz dos Princípios Constitucionais do Direito Fiscal”, Fiscalidade, n.º 3, 2000, p. 55, descreve assim a artificialidade e o abuso de formas a que a lei se refere: “Em primeiro lugar teremos de estar perante uma montagem, ou seja, um conjunto de atos fictícios, praticados pelo contribuinte que são inadaptados, artificiais ou anómalos relativamente ao fim pretendido. Por outras palavras: o contribuinte constrói uma solução constituída por um ou mais atos anómalos, desadequados face ao fim pretendido, mas que em si mesmo são legais e produzem o mesmo resultado, dos atos usuais e adequados que estão definidos nas normas de incidência de certo imposto.”
E para Marcelo Costenari Cavali, Cláusula Gerais Antielusivas: Reflexões acerca da sua conformidade constitucional em Portugal e no Brasil, Almedina, Coimbra, 2006, p. 244: “(…) podemos resumir esses conceitos todos – inusualidade, anormalidade, artificialidade, anomalia – numa ideia mais objetiva: a de inadequação”, para a determinação da qual se deverá atender em cada negócio à respetiva “causa”, enquanto “função económico-social que o justifica.”
Na leitura do caso realizada pela Administração Fiscal parece existir abuso de formas no presente caso por estarmos perante as seguintes situações, e de acordo com as palavras da Requerida:
· “Uma análise holística/integrada de todos dos atos ou negócios (construções), principais, preparatórios e complementares, permite concluir que a FAMÍLIA G..., agiu sempre de forma concertada, com vista à obtenção do resultado final (alienação das ações sem as sujeitar a tributação), independentemente de ter sido a irmã da Requerente (J...), a principal interveniente por ser a gerente da sociedade e representante da Requerente em quase todos atos, tendo assinado tanto o contrato promessa de compra e venda – CPCV como representante dos pais (em 08-08-2019), como o contrato definitivo em representação dos 4 irmãos e da própria (em 24-10-2019).
· Neste sentido, (...) não parece credível a alegação de desconhecimento, participação simbólica e falta de intervenção nos factos e construções em discussão, uma vez que, de acordo com o que foi apurado, tanto a Requerente como os restantes irmãos, delegaram ou deram poderes à irmã para agir em seu nome (o que demonstra a confiança entre todos intervenientes), sendo esta a principal peça deste negócio/plano da família G...e que foi gizado para obtenção de vantagens fiscais que resultou na transformação da C... NIF ... em sociedade anónima antes da doação das suas ações (de pais para os 5 filhos) e sua posterior alienação pelos donatários para a sociedade I..., UNIPESSOAL, LDA NIF ... .”
Não podemos concordar, no todo ou em parte, com esta leitura.
Em primeiro lugar, não é consistente esta abordagem “holística/integrada” (expressão da Requerida) com a determinabilidade própria da CGAA, que já foi explicada supra.
Em segundo lugar, na verdade, encontramo-nos diante de operações inseridas numa empresa familiar, dotada de uma “forma” perfeitamente típica e direta, sem que haja vantagens fiscais evidentes que vão para além da não tributação, até porque, como explicado supra, se o objetivo fosse doar liquidez resultante da venda, teriam concretizado a venda e, sem terem de pagar IRS (por terem adquirido as participações em data anterior a 1 de janeiro de 1989), fariam doação isenta de Imposto do Selo aos filhos.
Deste modo, não se está a engendrar um esquema rebuscado, atípico, indireto e em abuso da autonomia privada ou da liberdade negocial.
A sociedade socorre-se apenas de meios normais de se reorganizar sem alterar o seu perímetro familiar, não havendo qualquer modelação, desfuncionalização, anomalia ou desformatação de uma emissão obrigacionista clássica, o que seria condição sine qua non deste requisito e, logo, da aplicação da Cláusula – diga-se, de passagem, que foi precisamente para evitar decisões precipitadas como a presente que a redação inicial da Cláusula Geral Anti Abuso foi alterada pela Lei n.º 30.º-G/2000, de 29 de Dezembro.
Se os negócios são, indiscutivelmente, típicos e não foram modificados nos seus elementos estruturantes e definidores – ao fim e ao cabo, se a sua “causa” negocial permanece intacta e não foi afrontada – e se demonstram adequados à prossecução dos objetivos económico-societários a que se propõem, não há justificação para alegar Miβbrauch von Formen.
3.º Requisito – Reprovação pelo Sistema Fiscal (Fraude à Lei)
Encontramos aqui aquela que é, em nosso ver, a razão última da não aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso ao presente caso.
Embora se tratando do requisito menos evidente da Cláusula Geral Anti Abuso, a existência de uma reprovação pela Lei ou pelo Sistema Fiscal do resultado obtido pelo contribuinte é, segundo a totalidade da doutrina, conditio insuperável da aplicação em termos constitucionalmente conformes desta disposição geral anti abuso, porquanto traduz a importação para a sede fiscal nacional das conceções de proibição de Fraude à Lei já consagrada noutros ordenamentos.
Nesta linha, para Saldanha Sanches, “Abuso de direito em matéria fiscal: natureza, alcance e limites”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 398, 2000, pp. 26-30: “A aplicação de normas anti-abusivas não pode por isso preceder a tarefa constitucionalmente imposta ao legislador de construção de um sistema de tributação de rendimento sem falhas ostensivas nem zonas de não-tributação.” Mais recentemente, em José Luís Saldanha Sanches (2006), Os Limites do Planeamento Fiscal, Almedina, Coimbra, p. 177, esclarece o autor sobre a necessidade de existir, para efeitos da Cláusula Geral Anti Abuso, uma “intenção de abrangência por parte do legislador fiscal.”
Segundo Gustavo Lopes Courinha, A cláusula geral anti abuso no Direito Tributário: contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2004, p. 144: “se o resultado fiscalmente menos oneroso – vantagem fiscal – for admitido, tolerado, ou mesmo estimulado pela lei (…) não é condenável à luz da teoria da Fraude à Lei”, o que impediria a aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso. E, ainda segundo o mesmo autor “O ato fraudulento configura-se em função da reprovação pelo Direito da sua natureza verdadeira e substancial – os efeitos obtidos. Efeitos esses que não são desejados, previstos ou promovidos pelo Direito, mas antes rejeitados” (p. 187); a pp. 188-9, refere que: “O elemento normativo destina-se a conferir coerência ao sistema fiscal, às normas e ao Ordenamento, i.e. à interpretação e aplicação do Direito Tributário, tentando extrair, manter presente e evidenciar os princípios e propósitos que os enformam – o espírito e intenção da lei e não apenas a sua letra, contribuindo para a sua compreensão e evitando os respetivos abusos formais (...)”, concluindo, finalmente o autor que “o elemento normativo pretende auxiliar no enquadramento da norma fiscal numa perspetiva não literal, com vista à obtenção de soluções sistemática e teleologicamente consideradas.”
De acordo com Ricardo da Palma Borges, A zona franca da Madeira entre a isenção e a elisão: um contributo para o estudo do direito tributário internacional português, inédito, disponível na biblioteca da FDL, 2003, pp. 383-4: “Para a viabilidade da aplicação da fraude à lei, rectius à intenção normativa, em matéria fiscal, é necessário, em primeiro lugar, estar-se perante um ordenamento jurídico que, no plano tributário, se norteie teleologicamente, nomeadamente recorrendo a uma base de incidência tão ampla quanto possível. Perante a pretensão de plenitude de previsão do sistema, será mais fácil distinguir entre omissão juridicamente intencional e não intencional ou lacuna, e fundamentar a existência de abuso. O Estado Fiscal contemporâneo supõe uma metodologia jurídico-fiscal própria, avessa a assintonias legislativas flagrantes que tributem na base da mera forma.”
Por seu turno, Marcelo Costenari Cavali, Cláusula Gerais Antielusivas: Reflexões acerca da sua conformidade constitucional em Portugal e no Brasil, Almedina, Coimbra, 2006, p. 250, sustenta que: “(...) a cláusula somente será aplicável se o intérprete entender que, na sua ausência, o resultado seria contrário à razão de ser da lei e do próprio ordenamento.”
Olhando ao caso constante do processo, poderemos concluir que o resultado obtido pelo contribuinte contraria o Sistema Fiscal ou a Lei, defraudando por esta via a mens legis?
Pese embora a Administração Fiscal se tenha, novamente, abstido de alegar e demonstrar – aqui, apenas em termos jurídicos, por se tratar de um requisito exclusivamente de Direito – a verificação deste elemento da Cláusula Geral Anti Abuso, julgamos dever, ainda assim e em atenção à prudência aconselhada nestes casos, responder, sem prejuízo de se alegar, desde já, a falta de um (mais um) dos requisitos da Cláusula Geral Anti Abuso.
A resposta é, fundadamente, negativa, no sentido de que não existem razões válidas para sustentar a reprovação normativo-sistemática do resultado que o contribuinte obteve.
Veja-se inclusive, quanto à tributação das mais valias, que norma que a Administração Fiscal parece considerar contornada pelo contribuinte foi o artigo 10.º/n.º 2/alínea a) do Código do IRS, cuja redação dispõe:
“Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:
a) Ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses;”
Esta norma possui, atualmente, a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, que alterou, em termos fundamentais, a opção fiscal anterior decorrente da Reforma Fiscal da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro e, posteriormente mantida, com a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, as quais, por seu turno, alteraram as opções idênticas à atual e que se mantinham desde a redação inicial do Código do IRS.
Pelos diplomas legislativos de 2000 e 2001, as mais-valias decorrentes da alienação onerosa de ações ficaram sujeitas a tributação como os demais rendimentos do Código do IRS, independente de detidas por mais ou por menos de 12 meses. A solução era, então, a de tributação e tratamento igualitário das mais-valias, como os demais rendimentos.
Desde 2002, repôs-se a opção legislativa que durou também entre 1988 (data da aprovação do Código do IRS e da grande Reforma Fiscal do Rendimento) e 2000. Que opção é essa? A resposta é simples – a opção de não tributação, por via da atribuição de uma isenção ex lege.
Trata-se, aliás, de uma não tributação especial, posto que muito ampla: trata-se de um benefício fiscal deliberado e manifesto, consistente numa isenção total (a 100%) de tributação – que constou mesmo, entre 1988 e 1992, do artigo 34.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, só depois vindo a transitar para o Código do IRS.
É, com efeito, uma opção de política fiscal que contrasta com o tratamento dado à generalidade dos rendimentos e que surge particularmente evidente quando confrontado, por exemplo, com tributação dos rendimentos da Categoria A (Trabalho Dependente), Categoria H (Pensões) ou, como no caso, com os dividendos.
Tal regalia fiscal – só brevemente suprimida entre finais de 2000 e 2002, como vimos – é tão mais inusitada quanto esta opção de tratamento fiscal altamente preferencial das mais-valias de ações foi sempre objeto de críticas duríssimas por parte da doutrina mais reputada que alertou não só para a discriminação de outros rendimentos (objeto de um tratamento fiscal muito mais pesado [infinitamente mais pesado, face a uma situação de isenção fiscal total de tais mais-valias]), como para o incentivo notório que assim se concedia e às possibilidades de planeamento que incentivava.
Basta recordar as fortes e sustentadas críticas que Teixeira Ribeiro logo cedo endereçou a um tal tratamento privilegiado das mais-valias de ações – vd. Teixeira Ribeiro, “Comentários ao Código do IRS”, A Reforma Fiscal, Coimbra Editora, 1989, p. 243 ou Teixeira Ribeiro, “As opções fiscais da Constituição”, A Reforma Fiscal, Coimbra Editora, 1989, p. 206 (onde advogava uma taxa mais baixa para as mais-valias, como benefício máximo admissível face à Constituição).
Ou Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 237-40, que sempre endereçou críticas a um tal regime preferencial: “(…) a dificuldade do alargamento da base perante a resistência dos interesses instalados fez com que “a história das reformas fiscais” fosse a história desta batalha” [da tributação das mais-valias] e ”(…) que o que se passou entre nós, com o alargamento do conceito de rendimento nas linhas gerais da reforma e as sucessivas restrições à tributação das mais-valias que lhe sucederam, confirma esta característica das reformas.” (p. 240)
Perante este convite fiscal ao investimento, negociação e alienação de participações, a única resposta expectável do contribuinte mais atento às matérias de benefícios fiscais não pode deixar de ser a de investir e organizar os seus negócios de modo a aumentar a respetiva eficiência fiscal, de acordo com as medidas fiscais promovidas pela legislação fiscal. É, aliás, co-natural ao próprio conceito de benefício fiscal gerar um comportamento reativo por parte do contribuinte que o leve a preferir a situação positivamente discriminada pelo legislador.
É, portanto, inconcebível sustentar outra opinião que não a de que o sistema fiscal, ao invés de reprovar, promove operações como aquela precisamente aqui em causa – de aquisição de acções próprias – assim como promove transformações do tipo societário (Sociedades de Quotas em Anónimas) que permitam usufruir do dito artigo 10.º/n.º 2/alínea a) do Código do IRS.
A Cláusula Geral Anti Abuso não pode, deste modo, ser interpretada no sentido de que o legislador pretendeu, por um lado, conceder um benefício fiscal às mais-valias mobiliárias de ações e, por outro lado, impossibilitar essa mesma utilização.
Ao incentivo fiscal estabelecido pela Lei de 2002 – por muito criticável e mesmo injusto que tal solução possa ser considerada dum ponto de vista de política económica fiscal – não pode a Cláusula Geral Anti Abuso vir responder com a sua negação, porque isso equivaleria a forçar o contribuinte a “optar” pela via fiscal mais onerosa, eliminando de uma assentada o direito a qualquer planeamento fiscal.
A ser assim, a utilização da Cláusula Geral Anti Abuso pela Administração Fiscal serviria para esta aceder ao poder, por enquanto ainda reservado à Assembleia da República (ou ao Governo, com autorização desta), de legislar. Ora, esse poder não está, segundo a Constituição da III.ª República Portuguesa, acessível à Administração Fiscal.
A levar ao limite tal intenção da Administração Fiscal, todo o Estatuto dos Benefícios Fiscais, assim como toda a plêiade de benefícios fiscais espalhados pelos diversos códigos e legislação fiscal avulsa poderiam acabar derrogados por meio do recurso casuístico e arbitrário à Cláusula Geral Anti Abuso, o que seria, obviamente contrário à correta interpretação desta e defraudaria o espírito e propósito (verdadeira fraude à Lei) da própria Cláusula Geral Anti Abuso.
Não se vislumbra, por conseguinte, o preenchimento do requisito da reprovação normativo-sistemática estabelecida na CGAA – não há uma situação de Fraude à Lei.
Com efeito, a aceitação inquestionável das operações realizadas são fatores com que o contribuinte contou e a partir dos quais elaborou a sua estrutura e que, por isso, merecem adequada tutela jurídica.
Ora, se o legislador delimitou negativamente a área de elisão fiscal, a Cláusula Geral Anti Abuso é inaplicável sob pena de o intérprete se estar a arrogar funções normo-genéticas, o que seria evidentemente inconstitucional.
Em resumo, não existem fundamentos suficientes para sustentar uma aplicação ao caso da CGAA, em face dos requisitos supraidentificados.
Conclui-se, assim, que não se verifica um dos pressupostos de facto de que depende a aplicação da cláusula geral anti abuso, que é o ato ou negócio ter sido essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos.
À face do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, quando esta norma refere que, para aplicação da cláusula geral anti abuso, os negócios devem ser dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo antes indispensável que a obtenção destas tenha sido um objetivo essencial ou principal visado pelo contribuinte.
Ora é a prova da essencialidade desse objetivo para finalidades de menor tributação, o que, no caso, não se afigura evidente.
A argumentação exposta basta para se proceder à anulação da liquidação impugnada, com as demais legais consequências.
IV. 2. B. Quanto ao reembolso do imposto liquidado e juros indemnizatórios
O Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da LGT. Nos termos do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Decorre, ainda, do n.º 5 do art. 24.º do RJAT que o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral.
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. Ora, no caso dos autos, é manifesto que, atendendo à ilegalidade dos atos impugnados, pelas razões apontadas, a Requerente efetuou o pagamento de importância indevida.
Assim sendo, reconhece-se ao Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (vd. artigo 43.º, n.º 1, da LGT, e artigo 61.º do CPPT).
V. DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e determinar a anulação da liquidação de imposto objeto dos autos e demais acréscimos (juros compensatórios) e
E em consequência:
b) Ordenar a devolução à requerente dos referidos montantes, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 914.645,49, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 12.852,00 a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de novembro de 2025
Os Árbitros,
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)
(Cristiana Maria Leitão Campos)
(Marta Vicente)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.