Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 465/2025-T
Data da decisão: 2025-11-24  IRS  
Valor do pedido: € 87.547,40
Tema: IRS – Categoria B – Inspeção Interna vs. Inspeção Externa – Cruzamento de Informações – Regime simplificado – Arts. 3.º e, 31.º do CIRS e 63.º-A, n.º 4 da LGT
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Sumário

I.     À AT compete fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais vinculativos que legitimam a sua atuação desfavorável aos contribuintes. A prova pode ser direta ou indireta, extraída de factos-índice que, ponderados à luz da experiência, sejam suficientes para manifestar que as declarações dos contribuintes não refletem a realidade. 

II.   A informação bancária obtida pela AT, reveladora de avultados recebimentos pelo contribuinte, aliada à informação constante do e-Fatura (provinda dos fornecedores), constituem factos-índice que, com elevada probabilidade, manifestam que a declaração fiscal entregue a zeros, relativamente aos rendimentos da atividade no ano em causa, não corresponde à realidade.  

III. Não tendo o contribuinte prestado esclarecimentos sobre a divergência de rendimentos identificada, verifica-se a violação do dever de colaboração. 

IV. A presunção de veracidade e de boa-fé das declarações dos contribuintes, consagrada no artigo 75.º, n.º 1 da LGT colapsa quando existam “indícios fundados” de que aquelas declarações não refletem a matéria tributável real do sujeito passivo e, ainda, quando o contribuinte não cumpra os deveres de esclarecimento da sua situação tributária como estatui o artigo n.º 2, alíneas a) e b) da LGT, pressupostos que se verificam na situação vertente. 

V.   O regime simplificado de tributação da categoria B de IRS constitui um método de avaliação indireta legalmente previsto, cuja aplicação não implica a impossibilidade de determinação direta e exata da matéria tributável, nem tem de ser precedido ou acompanhado por procedimento especial de determinação da matéria coletável (v. artigos 31.º do CIRS, 81.º, n.º 2 e 87.º, n.º 1, alínea a) da LGT). 

VI. O procedimento de divergências não corresponde a uma ação de inspeção externa.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (presidente), Prof. Doutor Gustavo Gramaxo Rozeira e Dra. Alexandra Iglésias, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 22 de julho de 2025, acordam no seguinte:

 

 

              I.           Relatório

 

A..., doravante “Requerente”, contribuinte fiscal n.º..., residente na Rua ...,  ..., ...-... Tocha, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), com vista à anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2025 ... e juros compensatórios inerentes, reportada ao período de tributação de 2021, que resultou no valor global a pagar de € 85 547,40, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente. 

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”. 

 

Em 13 de maio de 2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e, de seguida, notificado à AT.

 

Após nomeação de todos os árbitros, os mesmos comunicaram, em prazo, a aceitação do encargo. O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD informou as Partes, por notificação eletrónica registada no sistema de gestão processual em 2 de julho de 2025, não tendo sido manifestada oposição. 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 22 de julho de 2025. 

 

Em 29 de setembro de 2025, a Requerida apresentou Resposta, com defesa por impugnação e, na mesma data, juntou o processo administrativo (“PA”). 

 

Foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (v. artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT). 

 

A Requerente apresentou alegações em 9 de outubro de 2025 e a Requerida em 13 de outubro de 2025. 

 

Posição da Requerente

 

A Requerente começa por alegar ilegalidades procedimentais. Refere ter sido iniciada uma ação inspetiva de natureza interna que, contudo, se materializou, em atos praticados nas instalações da Requerente, pelo que, na verdade, se tratou de um procedimento externo. Questiona a validade jurídica da alteração do procedimento inspetivo de interno para externo, por não existir ordem de serviço externa contemporânea desses atos, nem ter sido notificado à entidade inspecionada o despacho fundamentado da referida alteração, que qualifica de arbitrária, com violação dos artigos 13.º, 15.º, n.º 1 e 49.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) e do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição. Mais invoca que, sem válida notificação, os atos em matéria tributária que afetem direitos e interesses legítimos não produzem efeitos em relação aos contribuintes (v. artigos 36.º e 45.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – “CPPT”; e 77.º, n.º 6 da Lei Geral Tributária – “LGT”).

 

Defende que, apesar de a AT classificar os atos praticados no âmbito de um procedimento de inspeção interno, aqueles foram efetivos atos de inspeção externa ilegais, devendo classificar-se como externos, pelo menos, desde a data de emissão da ordem de serviço n.º OI2024..., 29 de maio de 2024. Considera ainda que a AT utilizou elementos obtidos noutro procedimento inspetivo, omitindo tal circunstância no relatório de inspeção da Requerente. 

 

Para a Requerente, o ato tributário emergente do procedimento ilegalmente desenvolvido é anulável nos termos do disposto no artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).

 

Por outro lado, argui a ultrapassagem do prazo de 6 meses para a conclusão do procedimento inspetivo, que se iniciou em 29 de maio de 2024. Parte do entendimento de que a conclusão do procedimento apenas ocorre quando da notificação do Relatório de Inspeção (v. artigo 62.º do RCPITA), tendo tal ocorrido após 10 de janeiro de 2025, pelo que conclui que os atos de inspeção decorreram para além do período de 6 meses. 

 

Acrescenta que a AT já havia realizado um procedimento inspetivo externo para o ano 2021, o que colide com a regra de irrepetibilidade de inspeções externas para os mesmos fins, imposto e período de tributação. 

 

Advoga que as ilegalidades cometidas no procedimento inspetivo respeitam a formalidades essenciais, constituem garantias fundamentais e projetam-se na liquidação. Aduz a ofensa de diversos princípios constitucionais, a saber: da legalidade; da proporcionalidade e da necessidade; da imparcialidade; e da garantia e cooperação interligados ao princípio da boa-fé. De tudo retira a consequente anulabilidade do procedimento e nulidade/anulação do ato de liquidação (v. artigos 266.º, n.º 2 da Constituição; 48.º do CPPT; 3.º a 12.º e 161.º, n.º 2, alínea l) do CPA; 8.º, n.º 2, alínea a) e e) e 63.º da LGT; e 7.º do RCPITA).  

 

Sem prescindir, alega falta de fundamentação das regras de determinação da matéria coletável da liquidação de IRS, por aquela não ser clara, congruente e não permitir ao sujeito passivo a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela AT, em violação do disposto no artigo 77.º da LGT e do imperativo constitucional de fundamentação dos atos administrativos (v. artigo 268.º, n.º 3 da Constituição), como garantia de proteção dos contribuintes (com vista ao efetivo direito à via contenciosa), da racionalidade da própria decisão e da transparência da atuação administrativa. Neste âmbito, pugna pela declaração de nulidade do ato tributário (v. artigo 161.º, n.º 2, alínea d) e l) do CPA). 

 

No domínio das ilegalidades substantivas, a Requerente afirma que a AT não satisfez o ónus de demonstrar os pressupostos da liquidação adicional, como que lhe competia, nos termos do preceituado nos artigos 74.º da LGT e 342.º do Código Civil, dada a presunção de veracidade das declarações apresentadas pelos contribuintes (v. artigo 75.º, n.º 1 da LGT). Considera que a AT não demonstrou que as declarações entregues pela Requerente não correspondiam à sua realidade económica, ou que continham alguma irregularidade. 

 

Entende que a atuação da Requerida foi negligente, pois devia ter realizado mais diligências de apuramento dos factos para tributar com uma dimensão diversa da que resulta das declarações entregues pelo sujeito passivo, como postula o artigo 58.º da LGT, que enuncia o princípio do inquisitório, ordenado à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não tendo sequer pedido esclarecimentos adicionais e aplicando presunções sem qualquer suporte legal. 

 

Neste contexto, compulsa os princípios do procedimento previstos no artigo 55.º da LGT, em sintonia com o 266.º, n.º 2 da Constituição e 5.º a 9.º do RCPITA, nomeadamente os princípios da boa-fé (v. artigos 6.º-A do CPA; 59.º, n.º 1 e 68.º da LGT e 266.º, n.º 2 da Constituição), da legalidade (v. artigos 3.º do CPA; 8.º, n.º 2, alíneas a) e e) da LGT, e 266.º, n.º 2 da Constituição), da igualdade (v. artigo 5.º, n.º 1 do CPA), da proporcionalidade (v. artigos 5.º, n.º 2 do CPA; 46.º do CPPT; 63.º, n.ºs 2 e 4 da LGT e 18.º, n.º 2 da Constituição) e da justiça e imparcialidade (v. artigo 6.º do CPA). 

 

Segundo a Requerente, a AT estava obrigada a proceder à reconstrução do putativo rendimento real obtido, o que não fez, em desrespeito do princípio da capacidade contributiva, e fez uso de um método indiciário/presuntivo sem qualquer sustentação legal. Assim, a AT violou o princípio constitucional da legalidade ao alterar sem fundamento as declarações fiscais entregues pela Requerente e procedeu a verdadeiras correções por métodos indiretos que camuflou de avaliação direta, sem ter seguido os procedimentos exigidos para aqueles, pelo que a liquidação deve ser declarada nula, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alíneas d) e l) do CPA, ou, no mínimo, ser anulada segundo o disposto no artigo 163.º do CPA.  

 

Mais invoca ter a AT utilizado ilegalmente a informação da D..., com violação dos trâmites previstos no artigo 63.º-B da LGT. Os elementos bancários deviam ter sido destruídos e não utilizados, exceto em relação aos crimes nele tipificados, sob pena de violação do direito à intimidade e reserva da vida privada. Ao obter informações bancárias da Requerente sem o seu prévio consentimento e cobertas pelo segredo bancário, sem observar o procedimento prescrito no artigo 63.º-B da LGT, violou a lei com prejuízo do direito constitucionalmente protegido de acesso aos tribunais para tutela da reserva da sua vida privada (v. artigos 20.º, n.º 1 e 26.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição), o que conduz à anulação da liquidação impugnada. 

 

Posição da Requerida

 

A Requerida assinala que a Requerente não invoca qualquer factualidade relevante e reitera serem devidas as correções nos termos apurados e fundamentados no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”).  

 

Refere que, à data dos factos [2021], a Requerente era um sujeito passivo de IRS enquadrado no regime simplificado da categoria B, tendo entregue o anexo B da declaração anual modelo 3 sem declarar quaisquer valores neste anexo. Foi primeiramente identificada pelo sistema informático da Requerida uma divergência declarativa relativa a uma operação de alienação de imóvel omitida no anexo G, que originou uma correção que não constitui objeto dos presentes autos e que a Requerente confunde com uma “putativa inspeção externa que nunca ocorreu”. 

 

Além da referida divergência, e com referência ao mesmo ano, assinala que o banco D... comunicou à AT, por intermédio do modelo 40, valores de fluxos de pagamentos – com cartões de débito e de crédito, ou por outros meios de pagamento eletrónico – na conta bancária da Requerente, no valor total de € 144 124,11. Nesta sequência, foi aberto um procedimento inspetivo interno pela Requerida e comunicado o seu início à Requerente, tendo-lhe também sido solicitados esclarecimentos, que, porém, não foram prestados.

 

Suportada nestes elementos, a Requerida concluiu que aquele ingresso de € 144 124,11 correspondia a rendimentos da categoria B de IRS, que foram omitidos pela Requerente na sua declaração deste imposto, sujeitos nos termos previstos no artigo 3.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS, com englobamento por força do artigo 22.º, n.º 1 do mesmo diploma, impondo-se a consequente liquidação de IRS. 

 

Na perspetiva da Requerida, a comunicação dos fluxos de pagamentos pelas entidades bancárias deriva de obrigação legal, nos termos do artigo 63.º-A, n.º 4 da LGT, tendo o sistema informático da AT cruzado a informação obtida por esse meio, com a declaração de rendimentos da Requerente, o que resultou na apontada divergência. 

 

E sublinha que a Requerente não correspondeu aos pedidos de colaboração e esclarecimentos endereçados pelos Serviços de Inspeção Tributária, nem quando da realização dos atos inspetivos, nem com a notificação do projeto de relatório de inspeção, em sede de direito de audição, que optou por não exercer. Mesmo na presente ação arbitral, não carreou para os autos factos que permitissem vislumbrar outra justificação plausível para os movimentos de pagamentos detetados na sua conta bancária, por referência ao ano 2021. Assim, não contrariou os elementos existentes relativos ao recebimento da importância de € 144 124,11, não permitindo que se alcance conclusão diversa daquela a que os Serviços de Inspeção Tributária chegaram. 

 

A AT repudia a alegação de que se dirigiu às instalações da Requerente e solicitou o processo de documentação fiscal do ano 2021. Afirma que os Serviços de Inspeção Tributária no âmbito da ordem de serviço da inspeção interna nunca visitaram a Requerente nas suas instalações ou dependências ou de demais obrigados tributários, de terceiros ou em qualquer outro local, nem ocorreram alterações do procedimento inspetivo, que manteve a sua natureza interna. 

 

Aduz que não existiram outros procedimentos inspetivos por referência aos rendimentos da Requerente relativos ao ano 2021, nem foram realizadas diligências externas, ou recolhidos elementos e documentos junto de outras entidades, asseverando a falsidade dessas alegações da Requerente. Afirma que a comunicação pela entidade bancária, por via do modelo 40, dos fluxos de pagamentos não consubstancia uma diligência externa, mas o mero cumprimento de uma obrigação legal do banco.  

 

Nem o procedimento de inspeção interno sofreu alterações na sua natureza pelo facto de os Serviços terem endereçado à Requerente um pedido de colaboração que visava obter esclarecimentos concretos sobre a informação/divergência existente, como se depreende da leitura do artigo 13.º do RCPITA, que ficou clarificada com a alteração legislativa operada pelo Decreto-lei n.º 36/2016, de 1 de julho (na sequência da autorização legislativa contida no artigo 181.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016). Entende que o procedimento pode ser qualificado como interno, mesmo que a análise tenha incidido sobre documentação na posse da AT ainda antes da sua instauração, como foi o caso. Nem a Lei obsta que num procedimento inspetivo interno sejam solicitadas informações e esclarecimentos aos sujeitos passivos, pelo que não existe fundamento para sustentar a desqualificação do procedimento inspetivo. 

 

Caso se entenda que o procedimento foi erroneamente qualificado como interno, seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, essa falta apenas gera invalidade se a entidade não tiver tido conhecimento do procedimento e do seu objeto a tempo de sobre o mesmo se pronunciar. O que não aconteceu no caso concreto, pois a Requerente foi notificada do início dos atos de inspeção, ao contrário do que afirma, e só não teve uma participação ativa porque optou por não o fazer, tendo sido devidamente notificada para exercer o direito de audição prévia. 

 

Também declina a existência de uma alteração do procedimento inspetivo, reiterando que só existiu um e que o mesmo foi notificado à Requerente, não tendo existido duplicação de procedimentos de inspeção externos para o mesmo ano e imposto. Tal como rejeita a violação do prazo máximo de 6 meses desse procedimento, pois notificou o seu início em 20 de junho de 2024, o projeto de Relatório foi notificado à Requerente em 11 de dezembro de 2024 e o Relatório Final de Inspeção em 13 de janeiro de 2015. Por outro lado, ainda que tal prazo tivesse sido excedido, não decorreriam efeitos sobre o ato de liquidação. 

 

Em relação ao vício de falta de fundamentação, a Requerida entende que esta é clara e suficiente e consta do Relatório de Inspeção Tributária que serviu de suporte à liquidação, sendo contemporânea da prática deste ato como é exigível. Além de que a Requerente demonstrou no seu longo articulado ter compreendido o quadro fáctico e legal em que assentou a decisão da Requerida. 

 

Sobre o ónus probatório, salienta que foi a Requerente que, perante os factos-índice (pagamentos) constantes da informação comunicada pela entidade bancária, violou o princípio da colaboração, não apresentando os esclarecimentos que lhe foram solicitados, pelo que não pode beneficiar da presunção de veracidade e de boa-fé das declarações fiscais, como contempla o artigo 75.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) da LGT. 

 

No tocante à suscitada violação do artigo 63.º-B da LGT, alega que esta norma não tem aplicação ao caso vertente, pois a Requerida não acedeu a qualquer informação bancária ou documentação bancária da Requerente ao abrigo deste normativo, nem este foi invocado. A informação a que a AT teve acesso deriva do cumprimento das obrigações acessórias legalmente devido por terceiros (entidades bancárias), nos termos do artigo 63.º-A, n.º 4 da LGT. 

 

            A final, a Requerida pugna pela improcedência da ação arbitral, com a absolvição de todos os pedidos, com as legais consequências. 

 

 

           II.           Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do pedido de anulação do ato de liquidação de IRS e juros compensatórios objeto desta ação arbitral, por enquadramento no âmbito da apreciação da legalidade de “atos de liquidação de tributos”, conforme previsto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a); 5.º, n.ºs 1 e 3; e 11.º, n.º 8, todos do RJAT. 

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado dentro do prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, tendo a ação arbitral dado entrada em 12 de maio de 2025.

 

Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito. 

 

 

         III.           Fundamentação de Facto

 

1.              Factos Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.     A..., aqui Requerente, é um sujeito passivo de IRS, tendo iniciado a sua atividade na categoria B – rendimentos empresariais e profissionais – em 2 de julho de 2021 e cessado em 17 de junho de 2022. No cadastro da AT, a Requerente estava inscrita com a atividade principal de Outros Prestadores de Serviços (CAE 1519) e secundária de Restaurantes Tipo Tradicional (CAE 56101) – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”). 

B.      No período de tributação de 2021, a Requerente enquadrava-se na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS e no regime simplificado previsto no artigo 31.º, n.º 1, alínea b) do Código deste imposto, para efeitos de determinação do rendimento coletável da categoria B – cf. RIT.

C.     À data dos factos, a Requerente era ainda sócia-gerente da sociedade B..., Lda. e gerente da sociedade C..., Lda. – cf. RIT.

D.     Em 17 de junho de 2022, a Requerente entregou a declaração de IRS modelo 3, com o código de identificação..., relativa ao período de tributação de 2021, na qual apresentou 3 Anexos: A (Trabalho Dependente e Pensões), B (Rendimentos da Categoria B, Regime Simplificado) e H (Benefícios Fiscais e Deduções). Não  entregou o anexo G referente a mais-valias, nem declarou quaisquer rendimentos da atividade profissional, tendo preenchido o Anexo B a zeros (campo 403 do Anexo B) – cf. Documento 3 e RIT.

E.      Na sequência da apresentação, pela Requerente, da declaração de IRS modelo 3, referente ao ano 2021, o sistema informático da AT detetou uma divergência declarativa relativa a uma “Alienação de imóveis não declarada” – cf. Documento 1 e PA.

F.      A AT procedeu ao envio, por via postal, de ofício de notificação à Requerente, datado de 19 de setembro de 2022, para esta exercer o direito de audição prévia em relação a esta divergência. Subsequentemente, por entender que não foram “comprovados todos os elementos declarados”, a AT enviou novo ofício de notificação à Requerente (por via postal), datado de 3 de novembro de 2022, da decisão, da mesma data, da Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa ..., que corrigiu a Declaração de rendimentos Modelo 3 do ano 2021, com a inclusão do Anexo G com a alienação do imóvel – cf. Documento 1 e PA.

G.     A AT procedeu ainda ao envio à Requerente do ofício n.º..., datado de 14 de novembro de 2022 com a menção de que “Foi retirada a opção pelas regras do artº 17A do CIRS, por falta de comprovativo dos rendimentos obtidos no estrangeiro, pelo que por decisão de 2022-11-03 da Chefe deste Serviço de Finanças, foi determinada a efetivação da correção da declaração indicada.” – cf. Documento 1 e PA.

H.     As correções que antecedem (pontos E, F e G), referentes a mais-valias imobiliárias e rendimentos do estrangeiro, resultam das divergências declarativas iniciais identificadas pela AT e não constituem objeto da presente ação arbitral, conforme decorre da análise do ppa.

I.       A instituição de crédito D..., reportou na Declaração Modelo 40 - Valor dos Fluxos de Pagamento, o montante total de € 144 124,11, de que a Requerente foi beneficiária em 2021 – cf. RIT. 

J.       Recebida esta informação pela AT, foi determinado pela ordem de serviço n.º OI2024..., de 29 de maio de 2024, o procedimento de inspeção interno, de âmbito parcial – IRS –, tendo por objeto a análise da situação tributária da Requerente no ano 2021, ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1, alínea b) do RCPITA – cf. RIT e PA.

K.     A Requerente foi notificada, nos termos do n.º 2 do artigo 69.º da LGT, por ofício remetido por via postal registada em 19 de junho de 2024 (e entregue no dia seguinte), do início de procedimento inspetivo interno de comprovação e verificação, credenciado pela ordem de serviço n.º OI2024..., abrangendo o IRS do ano 2021 – cf. PA.

L.      No âmbito deste procedimento, a Requerente foi notificada, pelo ofício n.º 2024..., remetido por via postal registada em 2 de julho de 2024 (e entregue no dia seguinte), “ao abrigo do dever de colaboração previsto no n.º4 do artigo 59.º da LGT e no artigo 48.º do RCPITA, para no prazo de 5 dias, apresentar, no âmbito do procedimento inspetivo credenciado pela ordem de serviço acima identificada, os elementos e/ou prestar os esclarecimentos a seguir indicados, com referência ao exercício/período de 2021. […]

Elementos e/ou esclarecimentos solicitados

“Verificando-se uma divergência entre os rendimentos declarados para efeitos de IRS do ano 2021 (rendimentos do trabalho dependente e pensões - 6.229,02; mais valias 124.000,00 ) e o montante dos recebimentos (144.124,11) constante das declarações Modelo 40 - Valores de Fluxos de Pagamentos entregues por entidades bancáriasas, associados à conta bancária PT50..., solicita-se o envio dos seguintes elementos/esclarecimentos:

(i) Esclarecimento quanto ao motivo da divergência acima assinalada ;

(ii) Elementos e documentos que comprovem os esclarecimentos prestados no âmbito do ponto anterior. […]” – cf. RIT.

M.    A Requerente não deu resposta ao pedido de esclarecimentos, tendo sido emitido o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, que foi notificado à Requerente nos termos dos artigos 60.º da LGT e do RCPITA, por correio registado com data de expedição de 10 de dezembro de 2024 (entregue no dia seguinte, 11 de dezembro de 2024), que, com relevo para a liquidação impugnada nestes autos, contém os fundamentos infratranscritos – cf. PA: 

IV.2 Aquisições (e-Fatura)

Constam aquisições comunicadas no sistema e-Fatura no exercício de 2021 no total de 5.933,17 €, o que sugere a existência de gastos na atividade desenvolvida. 

IV.3 Declaração Modelo 40 

As instituições bancárias, de crédito e sociedades financeiras, estão obrigadas a comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do artigo 63.º- A, n.º 4 da Lei Geral Tributária (LGT), através da declaração Modelo 40, aprovada pela Portaria n.º 64/2018, de 5 de março, o valor dos fluxos de pagamentos com cartões de débito e de crédito, ou por outros meios de pagamento eletrónico.

Relativamente ao sujeito passivo, foi comunicado na Modelo 40 pelo banco D..., NIF ..., o montante total de 144.124,11 €, relativamente ao exercício de 2021.

IV.4 Pedido de esclarecimentos 

Atendendo às incongruências decorrentes da análise descrita nos pontos anteriores, designadamente:

- Falta de rendimentos declarados na categoria B;

- Nos rendimentos da categoria G consta alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis com o valor de realização de 124.000,00;

- Na declaração modelo 40 constam recebimentos bancários de 144.124,11;

Foi enviada notificação em 2024/07/01 para, no prazo de 5 dias apresentar elementos e/ou esclarecimentos sobre as referidas incongruências (Anexo II)

Tal notificação não obteve resposta. Foram realizados contactos telefônicos, nos quais o sujeito informou não ter recebido o valor em questão e que tomaria providências junto ao Banco para obter um esclarecimento completo da situação. No entanto, até o momento, não apresentou os elementos solicitados. 

V.  Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

Face ao descrito no capítulo anterior, verifica-se que o sujeito passivo não declarou, no âmbito da sua atividade profissional, todas as prestações de serviços efetuadas, e que se traduz na omissão de rendimentos em sede de IRS.

Tal como se referiu anteriormente, foram associados movimentos bancários na conta titulada pelo sujeito passivo, sem que tenha existido a emissão do correspondente documento de faturação, nem objeto da sua evidenciação no anexo B da Modelo 3 de IRS, ou qualquer outra justificação para tais recebimentos.

Da análise efetuada, nada obsta que o referido montante de 144.124,11 respeite à atividade profissional desenvolvida pelo sujeito passivo, correspondendo a rendimentos da categoria B previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS, e sobre o qual incide IRS, de acordo com o artigo 1.º do CIRS, encontrando-se sujeito a englobamento, por força do estipulado no n.º 1 do artigo 22.º do mesmo diploma legal.

Desta forma, conclui-se que em 2021 o sujeito passivo não declarou os rendimentos da categoria B de IRS no montante de 144.124,11, infringindo o disposto nos artigos 3.º, 22.º e 57.º do CIRS, pelo que a correção ao rendimento coletável, ao abrigo do artigo 65.º do CIRS, traduz-se em 108.093,08, apurado da seguinte forma:

Categoria B – Rendimento bruto: 144.124,11€

Coeficiente 0,75 (constante da alínea b) do nº 1 do artigo 31º do CIRS)

Categoria B – Rendimento tributável: 144.124,11 x 0,75 = 108 093,08.

Determinação do Rendimento Líquido da Categoria B - Regime Simplificado (rendimentos profissionais/comerciais):

Linhas

Designação

Valores (€)

1

Rendimento líquido da declarado

0,0

2

Correções ao rendimento líquido

108 093,08

3 = 1+2

Rendimento líquido corrigido

108 093,08

 

 

                            Quadro Resumo

 

Rubrica

Valores (€)

Rendimento Coletável Declarado

56 609,90

Correções ao Rendimento Coletável

108 093,08

Rendimento Coletável Corrigido

164  702,98

 

N.     A Requerente não exerceu o direito de audição, nem solicitou a regularização da situação tributária, conforme previsto nos artigos 60.º e 58.º do RCPITA, respetivamente, tendo-se convolado o projeto no Relatório de Inspeção Tributária, definitivo, datado de 9 de janeiro de 2025 e notificado por carta registada com aviso de receção, assinado em 13 de janeiro de 2025, com a manutenção da correção proposta – cf. RIT.

O.     Em consequência da mencionada correção ao rendimento da categoria B da Requerente, foi emitida a liquidação n.º 2025..., com data de 24 de janeiro de 2025, reportada ao período de tributação de 2021, que resultou no valor global a pagar de € 85 547,40, já incluindo os juros compensatórios inerentes na importância de € 6 381,07 – cf. Documento de liquidação junto aos autos pela Requerente.

P.      Em 12 de maio de 2025, discordante da liquidação adicional de IRS e juros compensatórios referente ao ano 2021, a Requerente apresentou no CAAD o pedido de pronúncia arbitral na origem deste processo – cf. registo de entrada no SGP do CAAD. 

 

2.         Factos não Provados 

 

            Não se provou que, em relação ao ano 2021, já tivesse corrido contra a Requerente um procedimento de inspeção externo (v. artigos 9.º e 92.º do ppa). O que resulta da análise dos documentos juntos pela Requerente (certidão constante do documento 1) é que houve um procedimento de divergência no ano 2022, ano de entrega da declaração modelo 3 de IRS referente a 2021, resultante da identificação, pela AT, de uma operação de alienação de um imóvel que a Requerente não declarou, pois nem sequer apresentou o anexo G. A Requerente foi notificada, por via postal, no âmbito deste procedimento de divergência[1], para apresentação de esclarecimentos e exercício dos direitos de defesa, o que não constitui ou equivale a uma ação inspetiva externa. 

 

            Também não se provou que a AT se tenha dirigido às instalações do sujeito passivo e solicitado o processo de documentação fiscal relativo a esse ano, tal como já havia feito anteriormente (v. artigos 12.º e 26.º do ppa) e que o sujeito passivo tenha cumprido esse hipotético pedido (v. artigo 13.º do ppa). Ou que o procedimento interno tenha dado início a diligências inspetivas externas (v. artigos 25.º, 42.º, 51.º ou 71.º do ppa). Não existe evidência alguma, nem foi carreado qualquer meio de prova que suporte esta factualidade. Aliás, este segmento do articulado da Requerente parece referir-se a outro sujeito passivo, pois o processo de documentação fiscal (v. artigo 129.º do Código do IRS) só é aplicável a sujeitos passivos que possuam ou sejam obrigados a possuir contabilidade organizada, o que não é o caso da Requerente, pessoa singular enquadrada no regime simplificado de tributação. 

 

            Não foram, bem assim, recolhidos elementos junto de outras entidades (v. artigos 28.º do ppa). 

 

            De igual modo, não se comprovou que tivesse sido alterado o procedimento inspetivo quanto ao lugar de realização e quanto ao seu âmbito (v. artigo 17.º do ppa). 

 

            Nem, se demonstrou que o procedimento inspetivo se tivesse iniciado em 29 de maio de 2024 (v. artigo 89.º do ppa), dado que a notificação da Requerente foi feita por via postal, por ofício datado de 19 de junho recebido em 20 de junho de 2024. Este aspeto só releva no caso de se concluir que o procedimento era externo, pois o procedimento interno não tem de ser notificado (v. 49.º, n.º 1 do RCPITA). Contudo, se fosse considerado externo, o início do procedimento corresponderia à data da notificação (v. 51.º, n.º 2 do RCPITA), ou seja, 20 de junho de 2024. 

 

3.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto 

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes. 

 

            No que se refere aos factos provados essenciais, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes, conforme supra referenciado em relação a cada facto julgado assente. 

 

Não se deram como provadas, nem não provadas as alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

 

         IV.          Do Direito

 

1.       Questões a Apreciar

 

Considerando a ordem de conhecimento dos vícios estabelecida no artigo 124.º do CPPT, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, importa apreciar, em primeiro lugar, as ilegalidades substantivas, por erro nos pressupostos de facto e de direito (incluindo a errónea qualificação e quantificação dos factos tributários e a dúvida sobre a existência do facto tributário), por conferirem a tutela mais estável e eficaz dos interesses em presença, pois, em caso de procedência, impedem a reedição ou renovação dos atos tributários impugnados nos presentes autos. 

 

Após, na medida em que não fiquem prejudicados pela solução dada aos precedentes, o Tribunal apreciará os vícios formais respeitantes às ilegalidades no procedimento inspetivo e falta de fundamentação. 

 

 

 

2.       Do erro nos pressupostos de facto e de direito: violação do ónus probatório e do disposto no artigo 63.º-b da lgt

 

            Argui a Requerente que a AT não demonstrou, apesar de ser seu ónus, que a declaração de IRS apresentada com referência ao período tributário de 2021 não corresponde à realidade ou contém irregularidades. 

 

            De harmonia com o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, em linha com o princípio da legalidade administrativa (v. artigo 266.º, n.º 2 da Constituição, 3.º, n.º 1 do CPA e 8.º da LGT) e do ónus probandi (v. artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil), o “ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, em consonância com o artigo 342.º n.º 1 do Código Civil, segundo o qual, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 

 

            Do assinalado pressuposto deriva o entendimento, consolidado pela jurisprudência dos tribunais superiores, de que à AT compete fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais vinculativos que legitimam a sua atuação desfavorável aos contribuintes (no caso, a existência dos factos tributários e a respetiva quantificação). Só depois compete a estes [contribuintes] o ónus da prova da existência de factos impeditivos, modificativos ou extintivos que fundamentem o seu direito – v. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26 de fevereiro de 2014, processo n.º 0951/11, e de 17 de abril de 2002, processo n.º 016635. 

 

            A que acresce, subsistindo a dúvida, dever a mesma ser resolvida pelo Tribunal contra a AT, nos termos estatuídos no artigo 100.º do CPPT. 

 

            Sobre o tipo de prova exigível à Administração, não é imperioso que esta efetue uma prova direta. Em muitas situações, como declara o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de novembro de 2016, processo n.º 0600/15, haverá que recorrer à prova indireta, a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” — cfr. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o já citado acórdão de 18/11/10, proferido no processo 00144/02. TFPRT 12. J. Entendendo ainda que: “Nesta tarefa, poderá a Administração Tributária lançar mão de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios, pelo que tais indicadores de falsidade das facturas não têm necessariamente que advir de elementos do próprio contribuinte fiscalizado.”

 

            Interessa também articular o acima exposto com a presunção de veracidade e de boa-fé das “declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei”, consagrada no artigo 75.º, n.º 1 da LGT. Presunção que colapsa quando existam “indícios fundados” de que as declarações dos contribuintes não refletem a matéria tributável real do sujeito passivo ou impedem o conhecimento desta, conforme estatui o artigo 75.º, n.º 2, alínea a) da LGT, e, ainda, quando o contribuinte não cumpra os deveres de esclarecimento da sua situação tributária, como previsto na alínea b) da citada norma. 

 

            De notar, em sintonia com o acórdão (do Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de setembro de 2019, no processo n.º 01424/05.2BEVIS 0292/18 (com referência ao acórdão, de 24 de abril de 2002, no processo n.º 0102/02), que “a lei não exige senão “indícios fundados”, ou seja, não impõe à Administração a “prova provada” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente reflectem e comprovam, basta-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte. E a este, desprovido do escudo protector da presunção, não resta senão demonstrar a veracidade dos seus elementos contabilísticos, e respectivos suportes, destarte posta em crise, face àqueles “fundados indícios”. ” Como realça o acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 17 de abril de 2002, no processo n.º 26635, o cumprimento do ónus de prova atribuído à AF “basta-se com um juízo administrativo de adequação entre os factos e valorações em que a administração diz, formalmente, suportar a sua actuação e o resultado desse juízo”, i.e., com a prova perante o tribunal dos elementos que fundam esse juízo e a sua pertinência e adequação.

            Retomando a situação dos autos, constata-se que a Requerente foi notificada pela AT para prestar esclarecimentos sobre a divergência identificada através do cruzamento de três fontes de dados: i) os provenientes da declaração do contribuinte [modelo 3 de 2021]; ii) os reportados na declaração da entidade bancária apresentada em observância do disposto no artigo 63.º-A, n.º 4 da LGT e da Portaria n.º 64/2018, de 5 de março, denominada “Modelo 40 – Valor dos Fluxos de Pagamento”; e, por fim, os obtidos do sistema e-Fatura. 

 

            Na declaração de IRS de 2021, a Requerente reportou a inexistência de rendimentos da categoria B, provenientes da sua atividade profissional; enquanto a entidade bancária reportou a ocorrência de recebimentos efetuados na conta da Requerente, no montante de € 144 124,11, por meios de pagamentos eletrónicos (como cartões de débito e crédito efetuados através de Terminais de Pagamento Automático (“TPA”), ou outras tipologias de cartões, incluindo pré-pagos e virtuais, assim como através de “referências multibanco” ou “transferências multibanco ou imediatas”); e o sistema e-Fatura revelou, para o mesmo período, aquisições efetuadas pela Requerente de € 5 033,17. 

 

            Considerando que o recebimento de quantias daquele montante na conta bancária da Requerente e a existência de aquisições reportadas no e-Fatura constituem fortes indícios da perceção de rendimentos e da existência de atividade, a AT notificou-a, por ofício datado de 19 de junho de 2024, da instauração/início de procedimento inspetivo interno (de comprovação e verificação) e, ainda, por carta registada de 2 de julho de 2024, “ao abrigo do dever de colaboração previsto no n.º4 do artigo 59.º da LGT e no artigo 48.º do RCPITA”, para apresentar elementos ou prestar esclarecimentos sobre a divergência assinalada – de € 144 124,11 – com expressa identificação da fonte da informação da AT (modelo 40 da entidade bancária). 

 

            Todavia, até hoje, quer no pedido de esclarecimentos da AT que se seguiu à identificação da divergência, quer em fase de direito de audição sobre o projeto de correções resultante do procedimento inspetivo, quer na presente ação arbitral, a Requerente não prestou quaisquer esclarecimentos sobre o valor recebido na sua conta bancária, por via de pagamentos eletrónicos, nem sobre as aquisições que efetuou e que constam do e-Fatura. Esta omissão de resposta viola o dever de colaboração previsto nas normas acima citadas, violação que tem por efeito a cessação da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes, como prevê a alínea b) do n.º 2 do artigo 75.º da LGT. E se assim não fosse, também cessaria essa presunção de veracidade por estarmos perante indícios fundados de que a declaração de IRS apresentada pela Requerente “a zeros”, na parte referente aos rendimentos da categoria B, não reflete a matéria tributável real do contribuinte (v. alínea a) do n.º 2 do artigo 75.º da LGT). 

 

            Na verdade, como acima referido, foram identificados ingressos de elevado valor – € 144 124,11 – reportados por instituição de crédito onde a Requerente detém conta bancária, efetuados por meios de pagamento eletrónicos, bem como de aquisições efetuadas no montante de € 5 033,17, reportadas pelos fornecedores no e-Fatura. Estes factos-índice conduzem, com elevada probabilidade, à legítima conclusão de que a Requerente desenvolveu atividade em 2021 e auferiu rendimentos pela mesma. Importa notar que estamos perante indícios objetivos que, ponderados à luz da experiência, são suficientes para manifestar essa forte probabilidade. A prova indireta também é prova válida (v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de outubro de 2016, processo n.º 0511/15) e não se confunde com avaliação por métodos indiretos. 

 

            Desta forma, quebrada a presunção de veracidade da declaração de IRS da Requerente, pela sua atuação omissiva e evidente violação do dever de colaboração, e tendo a AT satisfeito o ónus de demonstrar que a declaração de IRS entregue por aquela não correspondia à realidade, através da comprovação de indícios fundados da obtenção de rendimentos da categoria B em 2021, estão reunidos os pressupostos da tributação desses rendimentos em sede de IRS. 

 

            Para se opor a essa tributação, caberia à Requerente fazer contraprova, explicando a origem dos fluxos financeiros com os respetivos elementos de suporte. Não o fez, pelo que não logrou abalar os factos-índice carreados pela AT.

 

            A Requerente estriba a sua argumentação (em 139 páginas de pedido arbitral) essencialmente em vícios formais, procedimentais e na violação de garantias, com vista à anulação do ato de liquidação de IRS, objetivo que seria facilmente alcançável pela singela explicação da origem e natureza dos € 144 124,11 que caíram na sua conta bancária, caso os mesmos não respeitassem a rendimentos da sua atividade. Além de que aponta à AT a violação do princípio da colaboração quando, na realidade, foi ela própria [Requerente] que não prestou a informação devida que apenas ela estava em condições de transmitir e esclarecer. 

 

            Conclui-se do exposto que foi feita prova com os factos-índice obtidos pelo cruzamento da informação de declarações fiscais de terceiros (o modelo 40 submetido pela entidade bancária e o e-Fatura, “preenchido” pelos fornecedores da Requerente). Estas fontes de informação são perfeitamente legítimas, tendo sido criadas pelo legislador precisamente para permitir o rastreamento de contribuintes faltosos e prevenir graves entorses ao sistema vigente de repartição de encargos tributários parametrizado pelo princípio da igualdade. 

 

            Com efeito, o 63.º-A da LGT, aditado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, que reformou a tributação do rendimento, prevê a obrigação de comunicação de informações das instituições de crédito e sociedades financeiras à AT (inicialmente apenas para pagamentos com cartões de débito e de crédito), no quadro de medidas destinadas a combater a evasão e fraude fiscais, finalidade também assumida na Portaria n.º 64/2018, de 5 de março, que alargou o universo das entidades abrangidas por esta obrigação acessória (do modelo 40) e dos meios de pagamento sujeitos a comunicação, para “melhorar o controlo por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo em vista a redução e combate da evasão fiscal.”

 

            Esta comunicação por via declarativa, efetuada pelas entidades bancárias no ano seguinte àquele a que respeitam os pagamentos, constitui uma obrigação acessória de terceiros que deriva de imposição legal (v. artigo 63.º-A, n.º 4 da LGT) e protege a identidade dos pagadores (que estão anonimizados), pelo que não implica a violação de deveres de sigilo, nem requer qualquer procedimento administrativo de acesso à informação bancária, situando-se fora do âmbito do artigo 63.º-B da LGT. Não são, desta forma, aplicáveis os requisitos previstos nesta última norma, nomeadamente os referentes ao consentimento do titular dos elementos protegidos ou à existência de indícios da prática de crime em matéria tributária, entre outros, pelo que é de refutar a alegada violação do artigo 63.º-B da LGT, inaplicável à situação vertente, bem como a violação do acesso aos tribunais para tutela da reserva da vida privada. Nem a Requerente explicitou em que medida a norma do n.º 4 do artigo 63.º-A da LGT, que é a pertinente ao caso, viola os artigos 20.º, n.º 1 e 26.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição.  

 

            Nem se acolhe a tese da Requerente de a AT ter feito uso camuflado de um método indiciário/presuntivo por via administrativa, violando a obrigação de proceder à reconstrução do rendimento real obtido sem observar os procedimentos exigidos para a avaliação indireta. 

 

            O facto de a declaração da Requerente ser omissa quanto aos rendimentos obtidos não se traduziu numa impossibilidade de quantificação do rendimento bruto da categoria B do ano 2021. A determinação do rendimento passível de tributação no regime simplificado, aplicável à Requerente, contém elementos presuntivos, porém, ao contrário do que esta afirma, não carece de qualquer procedimento específico. 

 

            O artigo 87.º da LGT autoriza a aplicação do regime simplificado, que o legislador reconhece consistir num método de avaliação indireta. O que implica, assim, por opção legislativa e não administrativa, a legítima aplicação de um método indireto, a que subjazem razões de facilitação de cumprimento de obrigações declarativas e de praticabilidade, quando os contribuintes não excedam uma determinada dimensão económica, com o consequente afastamento da regra da avaliação direta, constante do artigo 81.º da LGT, sem qualquer procedimento adicional. 

 

            Isto, sem prejuízo de a lei contemplar a possibilidade de o sujeito passivo poder optar pela avaliação direta, se entender que o regime simplificado (aproximativo, presuntivo) lhe é prejudicial, faculdade que a Requerente não exerceu, limitando-se simplesmente a pugnar pela não tributação. 

 

            No caso concreto, uma vez identificadas as entradas de dinheiro que a AT inferiu, de forma legítima, decorrerem da atividade, ocorre um “apuramento simplificado”, que não postula uma análise circunstanciada dos gastos incorridos para chegar ao rendimento coletável e se satisfaz com a aplicação do coeficiente de 0,75 àqueles ingressos, pois assume-se que os custos da atividade se cifram - por presunção legal constante do artigo 31.º, n.º 1, alínea b)  do Código do IRS - em 25% do valor do rendimento bruto. 

 

            Atendendo à informação bancária em poder da AT, com base no cruzamento de dados,  a Requerente auferiu € 144 124,11. Este facto, aliado aos indícios de atividade do e-Fatura (e à ausência de contraprova), permite concluir que estão reunidos os elementos essenciais, quantitativos e diretos – os valores de depósitos diretos na conta bancária da Requerente – para determinação do rendimento segundo o método simplificado, que, é, como acima referido, aproximativo. Da aplicação do coeficiente de 0,75 àquela importância, alcança-se o rendimento coletável de € 108 093,08, como computado pela Requerida (v. sobre esta questão o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16 de maio de 2024, processo n.º 2202/19.7BELRS, com as necessárias adaptações, uma vez que se pronuncia no âmbito do IRC e do regime de contabilidade organizada[2]). 

 

            À face do exposto, foi corretamente determinado pela AT o rendimento coletável da Requerente, ao abrigo do regime simplificado previsto no artigo 31.º do Código do IRS, com base em rendimentos identificados através de factos-índice, que não foram contrariados por prova produzida pelo contribuinte. Neste contexto, não se suscita a este Tribunal qualquer dúvida quanto à existência do facto tributário e à sua quantificação, que foram objeto de comprovação pela AT nos moldes supra descritos, não tendo a situação vertente enquadramento na previsão do artigo 100.º do CPPT. 

 

            Improcede, de igual modo, a alegação da Requerente de que a Requerida foi negligente e “devia ter realizado mais diligências de apuramento dos factos”, em violação do disposto no artigo 58.º da LGT. Como já se salientou, foi a Requerente que se escusou a prestar esclarecimentos, com a consequente perda da presunção de veracidade das suas declarações, não competindo à AT desenvolver atividade probatória para demonstração de factos cujo ónus cabia à Requerente. 

 

            Todavia, mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá, em linha com a decisão do processo arbitral n.º 14/2021-T, de 23 de novembro de 2021, que o “principal efeito jurídico da insuficiência das diligências instrutórias a realizar pela Administração no âmbito do procedimento tributário traduz-se, em sede de impugnação judicial, num non liquet probatório sobre os factos materiais da causa, implicando que o tribunal emita uma pronúncia desfavorável em relação à parte a quem incumbia fazer a prova dos factos, à luz dos critérios de repartição do ónus da prova do artigo 74.º da LGT (SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, Vol. I, Coimbra, 2017). Como vício invalidante do ato tributário, a preterição do princípio do inquisitório (e, consequentemente, do princípio da verdade material) apenas pode ser considerada na situação limite em que os serviços omitam diligências essenciais à averiguação da situação tributária de tal modo que não se encontre justificação plausível para a correção fiscal.

 

            Não é esse o caso quando a Administração fundamenta a correção em elementos de informação objetivos e credíveis, obtidos mediante o cruzamento de informação transmitida por entidades bancárias nos termos legais, e tenta junto do contribuinte obter esclarecimentos escusando-se este a prestá-los. 

 

3.       Violação de princípios constitucionais  

 

            A Requerente imputa ainda à correção tributária efetuada a violação de múltiplos princípios do procedimento: da boa-fé, da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.  

            Não vislumbra este Tribunal Arbitral em que medida estes princípios foram preteridos, nem as normas que os preteriram. 

 

            A arguição de inconstitucionalidade requer a identificação de uma norma ou da interpretação de uma norma desconforme ao parâmetro constitucional. Como assinala a decisão no processo arbitral n.º 14/2021-T: 

 

“[…] o controlo difuso da constitucionalidade pelos tribunais é normativo, incidindo sobre uma norma ou interpretação normativa que tenha sido aplicada em decisão judicial ou em ato administrativo, competindo à parte suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). 

A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional (acórdãos n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08) e a indicação das razões pelas quais se considera verificada a violação de normas ou princípios constitucionais (acórdãos n.ºs 645/06, 708/06, 630/08), não bastando uma referência genérica a essas normas ou princípios ou a imputação da inconstitucionalidade aos próprios actos jurídicos que são objeto de impugnação judicial. 

Tendo-se limitado a Requerente a imputar os vícios de inconstitucionalidade às correções tributárias, sem indicação da norma ou interpretação normativa que entende terem sido aplicadas em violação da Lei Fundamental e sem um mínimo desenvolvimento quanto às razões que justificam um juízo de inconstitucionalidade, não há que tomar conhecimento de qualquer dessas questões.”

 

            Afigura-se que a Requerente suscita, incorretamente, a inconstitucionalidade que é um desvalor que afeta um ato normativo e não um procedimento ou um ato administrativo/tributário. 

 

            A Requerente não indica uma norma aplicada pela AT que seja inconstitucional, nem as razões para tal. O que a Requerente aponta são vícios do procedimento e do ato tributário que, a verificarem-se, consubstanciam ilegalidade (por violação de lei ordinária) e não inconstitucionalidade.

 

            À face do exposto, soçobram as alegações da Requerente com fundamento em inconstitucionalidade. 

 

4.       Da ilegalidade do procedimento inspetivo 

 

            Segundo a Requerente, o procedimento tributário em causa foi classificado pela AT como interno, mas consubstanciou-se na prática de atos de inspeção externos, com deslocações às instalações da Requerente “com recolha de elementos de outras acções de inspecção” junto de terceiras entidades, pelo que deve ser enquadrado como procedimento inspetivo externo, no âmbito do qual, a seu ver, foram preteridos de diversos formalismos geradores da ilegalidade do procedimento projetados na invalidade do ato de liquidação sequente.

 

            De acordo com o disposto no artigo 13.º do RCPITA, o procedimento é classificado, quanto ao lugar da realização, em: 

a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento; 

b) Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”

 

No caso concreto, não se demonstrou, nem para tanto a Requerente carreou qualquer meio de prova, que tivessem existido deslocações dos inspetores da AT às instalações daquela (nem sequer para assinatura de uma ordem de serviço), ou que tivessem sido efetuados quaisquer atos de inspeção em instalações ou dependências da Requerente ou de terceiros, ou que, independentemente do lugar, tivessem sido praticados atos materiais inspetivos (v. artigo 55.º do RCPITA) com carácter investigatório. 

 

Provou-se sim que a AT, através da análise dos elementos constantes do seu sistema informático e por cruzamento de informação entre a declaração de IRS da Requerente, o modelo 40 apresentado por entidade bancária e os dados constantes do e-Fatura, concluiu, internamente e sem qualquer interação com o sujeito passivo, pela existência de divergências em relação aos rendimentos da categoria B (não) reportados por via declarativa. Esta conclusão foi alcançada pela mera análise da documentação que já estava na posse da Administração Tributária, no âmbito de informação que já constava da sua própria plataforma informática e das declarações de imposto apresentadas (pela Requerente e pela entidade bancária).

 

Deste modo, é totalmente desprovida de suporte factual a tese da Requerente de que se tratou de uma ação inspetiva de cariz externo, quer quanto ao lugar da sua realização, quer quanto à sua natureza material, pois limitou-se à “análise formal e de coerência dos documentos” detidos ou obtidos pela AT. Assim, são inaplicáveis as garantias procedimentais instituídas para as inspeções externas, como o princípio da irrepetibilidade das inspeções, que vigora somente para os procedimentos externos, e a obrigatoriedade de notificação prévia destes (v. artigos 63.º, n.º 4 da LGT e 49.º do RCPITA e a decisão dos processos arbitrais n.ºs 111/2014-T, de 22 de dezembro de 2014, e 468/2022-T, de 28 de janeiro de 2023)[3].  

 

Veja-se, neste sentido, a fundamentação do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 4 de maio de 2023, processo n.º 292/12.2BELRA: “No fundo, do que aqui [na inspeção externa] se trata é da existência de alguma atividade da inspeção que revele um cariz investigatório que extravasa os tais dados de que a AT dispõe nas suas bases de dados”. Conclui esta jurisprudência que “São ações inspetivas externas aquelas em que existe alguma atividade da inspeção que revele um cariz investigatório que extravasa os tais dados de que a AT dispõe nas suas bases de dados.”

 

            Acerca das diligências externas junto de outras entidades e da utilização de elementos provindos de outras ações inspetivas, de novo, estamos perante pressupostos de facto indemonstrados. De notar que não constitui uma diligência externa da AT o cumprimento, por parte da entidade bancária, da obrigação declarativa prevista no artigo 63.º-A, n.º 4 da LGT – Modelo 40 – Valor dos Fluxos de Pagamento, efetivada por transmissão eletrónica de dados para o sistema informático da AT, tendo sido esta a fonte de informação para a identificação da divergência subjacente à liquidação adicional de IRS controvertida. Informação obtida pela Requerida antes sequer do início do procedimento inspetivo interno, notificado à Requerente em 20 de junho de 2024. 

 

            Por outro lado, o envio de um ofício da AT à Requerente a expor a divergência em causa (omissão de reporte de rendimentos da categoria B) e a solicitar esclarecimentos ou elementos em relação à mesma, não consubstancia uma ação inspetiva externa. Constitui, antes, um passo essencial, para a concretização do direito de participação do sujeito passivo (v. artigo 267.º, n.º 5 da Constituição), permitindo-lhe a invocação e demonstração de factos impeditivos do ato de liquidação perspetivado. No entanto, apesar do repto lançado pela AT à Requerente, esta nada respondeu, não tendo prestado esclarecimentos, nem remetido elementos. 

 

A classificação do procedimento atribuída pelos serviços de inspeção não é determinante, nem pode ser fixada de forma arbitrária, estando submetida aos parâmetros legais estabelecidos no artigo 13.º do RCPITA  (neste sentido v. os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13 de novembro de 2014, processo n.º 01854/10.8BEBRG; do Tribunal Central Administrativo Sul, de 27 de janeiro de 2022, processo n.º 290/08.0BEFUN, e de 4 de maio de 2023, processo n.º 292/12.2BELRA; bem como a decisão arbitral do processo n.º 468/2022-T). 

 

No entanto, como se referiu, não se verificou uma ação inspetiva externa, nem houve alterações do procedimento inspetivo que não só foi (bem) classificado como interno, como a sua natureza é consentânea com a classificação que lhe foi atribuída. Conclui, assim, este Tribunal Arbitral que o procedimento não carece de reclassificação para externo, não tinha de ser emitida uma ordem de serviço para procedimento externo, nem a Requerente tinha de ser notificada do início de procedimento externo, ou da alteração do lugar/natureza do procedimento (de interno para externo), em virtude de tais circunstâncias serem inexistentes ou não estarem comprovadas.   

 

Todavia, sempre se dirá que ainda que se concluísse que o procedimento era externo, o mesmo foi precedido de uma ordem de serviço e a Requerente foi notificada do início da inspeção, nos termos do artigo 51.º do RPITA, cumprindo-se as formalidades essenciais exigidas pelo maior potencial de lesividade do procedimento de inspeção externa, nomeadamente, dando-se conhecimento ao contribuinte. 

 

Acresce que, mesmo que a Requerente não tivesse sido notificada do início do procedimento (e foi), essa omissão só seria passível de gerar a invalidade do ato tributário se o contribuinte não tivesse tido conhecimento do procedimento e do seu objeto em tempo de sobre o mesmo se pronunciar. Circunstância que também não se verifica, in casu, uma vez que a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção tributária em 11 de dezembro de 2024, embora tenha optado por não exercer o direito de audição / participação no procedimento. 

 

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29 de junho de 2016, processo n.º 01095/15, de que se transcreve o seguinte excerto ilustrativo: 

 

“[…] o sujeito passivo, a ora Recorrido, em nada viu diminuídos os seus direitos ou interesses legítimos de participação. Na verdade, «[a] falta de comunicação do início do procedimento só deverá no entanto gerar invalidade se se demonstrar que o interessado não teve conhecimento do procedimento e respectivo objecto, e que por força dessa ausência de conhecimento não pode nele intervir tempestivamente. Assim, se o contribuinte inspeccionado […] foi notificado do projecto de conclusões do relatório do relatório de inspecção, a eventual falta de notificação da carta aviso degrada-se numa mera irregularidade, sem efeitos invalidantes» ( JOAQUIM FREITAS DA ROCHA e JOÃO DAMIÃO CALDEIRA, ob. cit., pág. 270.).

Assim, dando de barato que a inspecção foi externa, nunca a omissão daquela notificação prevista no art. 49.º do RCPIT teria efeito invalidante da mesma, uma vez que a ora Recorrida foi notificada para exercer o direito de audiência, ao abrigo do art. 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do art. 60.º do RCPIT, tendo aliás exercido esse direito (Neste sentido, vide o acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 841/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Abril de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32220.pdf), págs. 1984 a 1989, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/20c1d19978b649ec80257b7f004ffad3.).
Daqui resulta que, como bem sustenta a Recorrente, não pode a liquidação ser anulada 
 […]”[4]

 

Conclui-se neste aresto que:

 

I - Ainda que o procedimento de inspecção tenha sido erradamente qualificado como interno, quando o deveria ter sido como externo, esse erro irreleva para a decisão a proferir se não puder concluir-se ter sido preterida qualquer formalidade essencial imposta por esta última modalidade de inspecção.

II - A falta da notificação prévia prevista no art. 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento e do seu objecto a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição durante o procedimento inspectivo.

            Por outro lado, falece o argumento trazido pela Requerente da repetição ilegal de mais do que um procedimento de inspeção externo para o mesmo ano, o mesmo imposto e os mesmos fins, porquanto não se provou ter existido sequer uma ação inspetiva externa com incidência no ano 2021. Com efeito, o adquirido processual revela dois procedimentos de divergências relativos ao período de tributação em causa, originados em informação constante dos sistemas informáticos da AT: um decorrido em 2022 (por omissão do anexo G e de uma operação de alienação de imóvel) e outro em 2024 (por omissão de rendimentos da categoria B, que está em discussão neste processo). Os procedimentos de divergências não são inspeções externas. Da prova produzida não resultou a identificação de qualquer procedimento externo relativo ao ano 2021, pelo que também neste ponto a ação é improcedente. 

 

            Em matéria de ilegalidades procedimentais, é ainda suscitada a violação do prazo legal do procedimento inspetivo de seis meses. Sobre este ponto, parece resultar do RCPITA que tal prazo, estipulado no seu artigo 36.º, n.º 2, apenas se refere às ações de inspeção externas, pois só para estas se prevê a notificação do seu início (no artigo 49.º, n.º 1 do RCPITA) e é dessa notificação que começa a contagem do prazo de seis meses. Pelo que estamos perante requisito inaplicável ao procedimento interno. 

 

            Porém, caso se tratasse de um procedimento externo, não foi alegada, nem demonstrada a prática de atos materiais de inspeção além do prazo de seis meses. 

 

            A que acresce que a ultrapassagem do prazo de seis meses entre a data de notificação do início do procedimento (20 de junho de 2024) e a data de notificação do relatório final de inspeção (13 de janeiro de 2025), estabelecida pelo artigo 62.º, n.º 2 como data de conclusão do procedimento, não tem por efeito a invalidade do ato tributário, atento o disposto no artigo 36.º, n.º 7[5] do RCPITA que determina que “o decurso do prazo do procedimento de inspeção determina o fim dos atos externos de inspeção, não afetando, porém, o direito à liquidação dos tributos”. 

            Esta regra constitui expressão da jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo que sublinha a natureza ordenadora do prazo de seis meses e atribui como consequência do respetivo incumprimento (se ocorrer) apenas a não suspensão do prazo de caducidade e o impedimento de atos externos de inspeção, não a invalidade do ato tributário originado nesse procedimento (v. os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de setembro de 2020, processo n.º 02256/19.6BEBRG; de 7 de maio de 2008, processo n.º 0102/08; de 27 de fevereiro de 2008, processo n.º 0955/07; e de 29 de novembro de 1996, n.º 0695/06.

 

            Em suma, improcedem as ilegalidades procedimentais arguidas pela Requerente. 

 

5.       Da falta de fundamentação 

 

            O dever de fundamentação desempenha a função primordial de permitir que o destinatário do ato se inteire das razões que subjazem à decisão administrativa, permitindo o controlo da sua validade, através da análise dos respetivos pressupostos, e o acesso à garantia contenciosa, dando a conhecer ao sujeito passivo o itinerário cognoscitivo e valorativo para a AT ter decidido no sentido em que decidiu. 

 

            Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, deve considerar-se “fundamentado o ato quando ele se insira num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível por um destinatário normal colocado na posição em que se encontra o seu real destinatário” – v. acórdão de 17 de novembro de 2010, processo n.º 1051/09.

 

Contrariamente ao que a Requerente alega, o Relatório de Inspeção Tributária que lhe foi notificado explicita de forma cristalina as razões da divergência que originaram a correção efetuada ao IRS, que se prendem com a incongruência entre o valor de rendimentos da categoria B declarado pela Requerente (zero), o valor dos ingressos na conta bancária da Requerente, efetuados por meios de pagamento eletrónicos e comunicados no modelo oficial pelo Banco (de € 144 124,11), e a evidência de aquisições comunicadas por fornecedores no e-Fatura (de € 5 933,17), manifestação de exercício de atividade. Factos não infirmados e em relação aos quais a Requerente não exerceu o direito de audição que lhe assistia. 

 

Sobre as regras de determinação da matéria coletável da liquidação de IRS, o relatório também não podia ser mais transparente. Fundamenta o respetivo apuramento com o regime simplificado e cita as normas fundamento aplicadas, em concreto, os artigos 3.º, 22.º, 31.º, 57.º e 65.º do Código do IRS, com evidência dos cálculos, que são relativamente simples e se reconduzem à aplicação do coeficiente de 0,75 ao rendimento bruto, nos termos legais. 

 

Deste modo, constata-se que o Relatório contém, com suficiente clareza e grau de detalhe, os argumentos, de facto e de direito, que alicerçam a correção de IRS impugnada. Não se constata qualquer dificuldade em entender o percurso lógico-dedutivo que conduziu à prolação do ato de liquidação, nem se identifica contradição, opacidade ou insuficiência dessa fundamentação. De onde se conclui que os argumentos da AT, o seu sentido e alcance foram devidamente percecionados pela Requerente que os refuta de forma circunstanciada (e extensa), pelo que foram observados os requisitos de fundamentação do ato tributário previstos no artigo 77.º da LGT e 153.º do CPA, improcedendo a ilegalidade formal, por falta de fundamentação, suscitada pela Requerente.

 

            Questão distinta, atrás apreciada, é a da validade, já não formal (relativa à enunciação dos motivos), antes substancial dos fundamentos do ato, que “tem já a ver com o mérito da decisão e com a legalidade «stricto sensu» do próprio ato”, quer por os factos não corresponderem à realidade, quer por terem sido extraídas conclusões erradas ou não serem “suficientes para legitimar a concreta atuação administrativa (VIEIRA DE ANDRADE, O Dever de Fundamentação Expressa de Atos Administrativos, Almedina, 2003, pág. 231)” – acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de abril de 2014, processo n.º 1690/13, e de 21 de novembro de 2019, processo n.º 0404/13.9BEVIS. 

 

À face do exposto, conclui-se, quer em relação à fundamentação formal, quer no tocante à fundamentação substantiva, serem improcedentes as ilegalidades alegadas pela Requerente, mantendo-se o ato tributário de liquidação de IRS referente ao período de tributação de 2021.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

     

            V.          Decisão

 

            À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

 

         VI.          Valor do Processo 

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 87 547,40 (oitenta e sete mil, quinhentos e quarenta e sete euros e quarenta cêntimos), que corresponde ao valor a pagar da liquidação de IRS, incluindo juros compensatórios, cuja anulação a Requerente pretende – v. o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

        VII.     Taxa de Arbitragem 

 

            Custas no montante de € 2 754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), a suportar pela Requerente em razão do decaimento integral, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT. 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de novembro de 2025

 

 

Os árbitros,

 

Dra. Alexandra Coelho Martins, Relatora

 

 

Prof. Doutor Gustavo Gramaxo Rozeira

(com declaração de voto)
 

 

 

Dra. Alexandra Iglésias

 

 

Declaração de votoVoto favoravelmente a presente Decisão Arbitral, salvo quanto à questão da ultrapassagem do prazo de duração máxima da ação inspetiva. Pelos fundamentos constantes da Decisão Arbitral de 07-10-2024 (Proc.º 838/2023-T, ainda não transitada), e para os quais remeto brevitatis causa, teria julgado procedente a pretensão arbitral com fundamento na caducidade da ação inspetiva.

CAAD, 24/11/2025

Gustavo Gramacho Rozeira



[1] Decorrente deste procedimento de divergência, por informação interna da AT, foi corrigida a omissão identificada de falta de declaração de operação de transmissão de imóvel, com consequências ao nível da liquidação de IRS. Contudo, não é esta a correção que está em apreciação nestes autos. 

[2] Afigura-se inaplicável ao caso, a solução preconizada no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13 de dezembro de 2019, no processo n.º 170/15.3BECTB, que tem por objeto uma situação de avaliação direta, distinta do regime simplificado de tributação. 

[3] Neste sentido, vide Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 4.ª edição, Encontro da Escrita, 2012, p. 271, e António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2001, p. 293. 

[4] Jurisprudência secundada em diversos acórdãos posteriores. V. a título ilustrativo, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 9 de março de 2017, no processo n.º 05458/12. 

[5] Aditado pela Lei n.º 75-A/2014, de 30 de setembro.