Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 206/2025-T
Data da decisão: 2025-11-21  IRC  
Valor do pedido: € 13.441,24
Tema: IRC sobre dividendos pagos a OIC não residentes; violação do direito da União Europeia.
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SUMÁRIO: 

 

1.     O Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência sobre a matéria em causa neste processo, em acórdão de 28-09-2023, seguindo a jurisprudência do TJUE e clarificando o princípio do primado do direito europeu, consagrado no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição.

2.     Aplicando ao caso a jurisprudência de ambos os tribunais, resulta clara a ilegalidade, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, do artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a fundos constituídos segundo a legislação nacional, excluindo do mesmo os fundos constituídos segundo legislações de outros Estados-Membros da UE.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.       RELATÓRIO

A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português ..., com sede em ..., ..., Frankfurt am Main, Alemanha (doravante designado de “Requerente”), vem, nos termos e para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), deduzir pedido de pronúncia arbitral para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2020 e 2022, bem como do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa previamente apresentado contra os mesmos atos de liquidação, que lhe foi notificado no dia 02.12.2024.

Muito sucintamente, na ótica do Requerente, que invoca a favor da sua tese o acórdão do TJUE proferido a 17 de março de 2022, no processo n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), Portugal, ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia, simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”).

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 05.03.2025, e em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do 
Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei 
n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, foi automaticamente notificada a AT.

O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram no prazo legalmente estipulado a aceitação dos respetivos encargos.

Em 22.04.2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 14.05.2025, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer a 17.06.2025. Além de invocar duas exceções que serão analisadas mais à frente nesta decisão, afirma, em síntese, que o TJUE tem entendido que o facto de determinado Estado-membro não conceder a entidades não residentes os benefícios fiscais que concede aos residentes, apenas poderá ser discriminatório se residentes e não residentes se encontrarem numa situação comparável e que, no caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento se encontram plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português. Com efeito, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente. Ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores. Ou seja, a aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, não pode levar a concluir, na opinião da AT, por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois, como se viu, embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não se pode afirmar que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.

Através de despacho de 14.07.2025, o Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar, querendo, sobre as exceções invocada pela Requerida na sua Resposta.

A 25.07.2025, a Requerente apresentou a sua pronúncia ao supra referido despacho, afirmando que:

(i)             Quanto à exceção de inimpugnabilidade dos atos de retenção na fonte de 2020 e 2021, que a Requerida invoca por entender que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado após o prazo de dois anos para apresentação de reclamação graciosa, sendo a (alegada) intempestividade o fundamento para a inimpugnabilidade, a Requerente contende que é jurisprudência unânime e reiterada que a circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação do ato de liquidação não obsta a que seja pedida a respetiva revisão oficiosa e que seja impugnado contenciosamente o eventual ato de indeferimento desta;

(ii)           Quanto à exceção de incompetência material, invocada pela AT por entender que os litígios que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de retenção na fonte estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais se não forem precedidos de reclamação graciosa, responde a Requerente que, por um lado, é entendimento pacífico da jurisprudência arbitral que podem ser apreciados nessa sede pedidos que resultem da impugnação de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa e, por outro lado, que o Tribunal Constitucional já decidiu “não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD” (acórdão do TC n.º 244/18, de 11.05.2018, processo n.º 636/17), pelo que o recurso à via administrativa inclui o recurso ao pedido de revisão oficiosa, que, assim, é um sucedâneo da reclamação graciosa para este efeito.

A 25.07.2025, a Requerida apresentou a sua pronúncia, tendo defendido que a falta de identificação e menção da entidade gestora resulta numa situação de falta de legitimidade singular; que é inadmissível o chamamento à lide do real titular do interesse em demandar e que deveria ser declarada a procedência da exceção dilatória de ilegitimidade do Requerente. 

Por despacho de 07.11.2025, o Tribunal comunicou às Partes que o processo seguiria para prolação da decisão arbitral, não tendo havido oposição das Partes.

 

II.       SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1 e artigo 5.º, nºs. 1 e 3 ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, nº 2, ambos do RJAT.

Quanto às exceções invocadas pela AT, entende este tribunal que não merecem acolhimento. Quanto à primeira, tal como extensamente referido pela Requerente:

a) A jurisprudência do STA é unânime e pacífica no sentido de a revisão oficiosa pode ser desencadeada pelo contribuinte no prazo de 4 anos, mesmo após o decurso dos prazos da reclamação graciosa e da impugnação judicial;

b) A revisão oficiosa pode incidir sobre retenções na fonte;

c) O erro imputável aos serviços inclui errada interpretação da lei.

Quanto à exceção de incompetência material, que a AT faz repousar sobre o seu raciocínio de que não teria havido recurso à via administrativa, contudo, esse entendimento é contrário ao que já foi decidido pelo Tribunal Constitucional no Ac. TC 244/2018, em que ficou claro que o pedido de revisão oficiosa conta como via administrativa relevante para efeitos de interpretação e aplicação da Portaria 112-A/2011. Por outro lado, existe extensa jurisprudência arbitral e judicial que afirma que, onde existe pedido de revisão oficiosa prévio, existe “recurso à via administrativa”, não sendo exigível a apresentação de reclamação graciosa adicional.

Assim, o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, podendo o processo avançar para a apreciação do mérito do pedido arbitral oportunamente apresentado.

 

III.    FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. Matéria de facto 

A. Factos provados

Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal, cumpre enunciar os factos relevantes que se julgam provados nos documentos juntos pelas Partes ao presente processo:

A.   O Requerente é uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária;

B.    O Requerente é sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país;

C.    O Requerente detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal;

D.   Nos anos de 2020 a 2022 o Requerente, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos;

 

E.    Os dividendos recebidos nos anos de 2020, 2021 e 2022, foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 35%;

F.    Os dividendos recebidos e os impostos pagos sobre os mesmos nesses anos estão identificados na tabela seguinte:

 

 

 

G.   No dia 03.07.2024, o Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), pedido de revisão oficiosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte de IRC relativos aos anos de 2020 a 2022, na qual solicitou a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da UE, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal;

H.   No dia 02.12.2024, o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa, fundada no entendimento de que “(…) não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.”

B.    Factos não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos não provados.

 

C.   Fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT. 

No que se refere aos factos provados, a convicção da árbitra fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

III. 2. Matéria de Direito 

1. Apreciação do direito aplicável in casu

O Requerente é um fundo de investimento constituído ao abrigo do direito alemão que, nos anos de 2020 a 2022, recebeu dividendos, pagos em Portugal, por sociedades de direito português, relativamente aos quais foram efetuadas retenções na fonte à taxa de 35%. 

Tendo oportunamente apresentado um pedido de revisão oficiosa relativamente aos referidos atos de retenção na fonte, foi o mesmo indeferido. 

Assim, cabe ao Tribunal avaliar da legalidade dos referidos atos tributários, bem como do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado, face ao ordenamento jurídico que lhes era aplicável nas datas em que foram praticados.

O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção vigente em 2020, estabelecia o seguinte:

Artigo 22.º Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional. 

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1. 

4 – Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC. 

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC. 

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual. 

7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.

8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime. 

9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo, no entanto, ser inferior a um ano civil: 

a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil; 

b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade. 

10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.

11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.

12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC. 

13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC. 

14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia. 

15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba. 

16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.

O Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, que, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, procedeu à reforma do regime de tributação dos organismos de investimento coletivo, alterando o Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho, o Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro e a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, prevê, no respetivo artigo 7.º, que “as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015”. 

Ora, no n.º 1 do mencionado artigo 22.º do EBF, estabelece-se que o regime nele previsto é aplicável aos “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, o que, sendo o Requerente um fundo constituído ao abrigo da lei alemã, determina a sua exclusão da aplicação do regime em causa. 

Contudo, defende o Requerente que, do regime previsto no artigo 22.º do EBF, resulta um tratamento discriminatório para os OIC não residentes, mas cujos rendimentos são tributados em Portugal, em relação aos residentes, sendo esse tratamento discriminatório incompatível com o disposto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece, no respetivo número 1, que, “no âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.” 

A esse propósito, cumpre, porém, referir que, do disposto no artigo 65.º do TFUE resulta uma restrição do potencial âmbito daquela previsão normativa, já que aí se refere (n.º 1) que “O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros: a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido; b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.” O n.º 2 dispõe ainda que “o disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados” e o n.º 3 que “As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.”

Torna-se evidente, assim, que o mero tratamento diferenciado da situação dos residentes e dos não residentes é, apenas, um indício de que poderá haver uma discriminação violadora da previsão do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE. No ensejo de clarificar as situações em que essa discriminação efetivamente ocorre nos casos de tributação de OIC residentes e não residentes, o TJUE, em acórdão de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, concluiu que “O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”

No que ao contexto português diz respeito, é, ainda, de assinalar que o próprio Supremo Tribunal Administrativo uniformizou a jurisprudência sobre a matéria em causa, seguindo a jurisprudência do TJUE, em acórdão de 28-09-2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19, clarificando o já conhecido princípio do primado do direito europeu, consagrado no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático” e dando cumprimento ao entendimento do próprio STA no sentido de que a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602). 

Considerando o exposto, resulta clara a ilegalidade, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, do artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a fundos constituídos segundo a legislação nacional, excluindo do mesmo os fundos constituídos segundo legislações de outros Estados-Membros da UE. 

Consequentemente, são ilegais, por vício de violação de lei, os atos de retenção na fonte impugnados, relativos aos anos de 2020, 2021 e 2022, bem como o ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado contra os mesmos, o que determina a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT. 

2. Questões de conhecimento prejudicado

Tendo-se concluído que o Direito da União Europeia impõe a anulação das retenções na fonte impugnadas e que este tem primado sobre o direito de fonte nacional, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, fica prejudicado, por ser inútil (nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que não se toma delas conhecimento.

3. Do reembolso das quantias pagas e do pagamento de juros indemnizatórios

Verificando-se que foram pagas as quantias liquidadas sobre os rendimentos em causa, em virtude da aplicação da taxa liberatória de 35%, e tendo sido determinada a ilegalidade dos atos de liquidação em causa, existe fundamento para o reembolso, por parte da AT, da totalidade da quantia retida na fonte, o que equivale ao valor de € 13.441,24. 

Por outro lado, foi ainda formulado pelo Requerente um pedido de pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

O Pleno do Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, em acórdão datado de 29-06-2022, proferido no âmbito do processo n.º 93/21.7BALSB, clarificando que, em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à AT depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para o cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, da LGT. 

No caso em apreço, não houve reclamação graciosa, mas foi apresentado, seu lugar, um pedido de revisão oficiosa, o qual foi indeferido expressamente através de ato notificado ao Requerente a 02.12.2024.

Assim, de harmonia com a referida jurisprudência uniformizada, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios contados sobre a quantia a restituir desde 02.12.2024 até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

IV.    DECISÃO 

Termos em que se decide:

a)  Julgar procedente o pedido arbitral, com a consequente anulação dos atos de retenção na fonte de IRC pagos com referência aos exercícios de 2020, 2021 e 2022, no valor total de € 13.441,24;

b)  Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, desde 02.12.2024, devendo estes ser contados tendo por base a quantia de € 13.441,24, desde aquela data até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril;

c)  Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

  V.       VALOR DO PROCESSO

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 13.441,24 (treze mil, quatrocentos e quarenta e um euros e vinte e quatro cêntimos) que a AT não questionou e que corresponde ao valor da liquidação de imposto a que se pretendia obstar, para efeitos do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa. 

 

VI.    CUSTAS

Custas a cargo da Requerida, no montante de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos dos artigos 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento.

Notifique-se.

Lisboa, 21 de novembro de 2025

A Árbitra,

 

Raquel Franco