Sumário:
A revogação do ato de liquidação pela AT, através da qual a Requerente obteve a plena satisfação do seu pedido, resulta a impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., solteira, portadora do passaporte com o número ..., emitido na República Federal Alemã, válido até 04-02-2030, com o número de identificação fiscal português..., residente na ... em Albstadt na Alemanha (“Requerente”), apresentou, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1, 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (“RJAT”), pedido de constituição de tribunal arbitral com vista à declaração de ilegalidade dos atos tributários consubstanciados no despacho de indeferimento da reclamação graciosa, datado de 12-12-2024, proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia – 2, no âmbito do procedimento sob o número ...2024..., relativo à liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2024..., de 18-06-2024, referente ao ano de 2023 e bem assim contra esse mesmo ato.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
A) Constituição do Tribunal Arbitral
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).
Pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi comunicada a constituição do presente tribunal arbitral singular em 27-05-2025, nos termos da alínea c) do número 1, do artigo 11.º do RJAT.
B) História Processual
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede, em síntese, a anulação do ato de liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023, e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o mesmo. Em consequência, a Requerente peticiona a condenação da Requerida no reembolso do montante em que foi excessivamente tributada, que ascende a € 8.977,82, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.
Como fundamento da sua pretensão, a Requerente alega, em suma, que a AT procedeu a uma errónea e excessiva tributação dos seus rendimentos de trabalho dependente (Categoria A) auferidos em 2023, no montante total de € 74.340,00. Esta tributação excessiva resultou da incorreta aplicação da taxa geral de 45%, em vez da taxa especial de 20% prevista para os residentes não habituais (“RNH”), conforme o artigo 72.º, n.º 10, do Código do IRS.
A Requerente defende que preenche todos os pressupostos para ser enquadrada no regime dos RNH desde o ano de 2020, nomeadamente por se ter tornado residente fiscal em Portugal nesse ano e não ter tido residência fiscal no país nos cinco anos anteriores. Sustenta que o pedido de inscrição como RNH, apesar de ter sido apresentado em outubro de 2021 (e indeferido pela AT por extemporaneidade), tem natureza meramente declarativa e não constitutiva do direito ao regime. Assim, a falta de cumprimento do prazo para a sua solicitação não pode impedir a aplicação de um regime a que materialmente tem direito. A Requerente exerce, ainda, uma atividade de elevado valor acrescentado (i.e., Diretora de Produção), o que legitima a aplicação da taxa especial de 20%.
A Requerente alega que, aplicando a taxa de 20%, a coleta de imposto deveria ser de € 13.232,52, resultando num reembolso de € 10.931,44, em vez do valor de € 1.953,62 que foi apurado pela AT. A diferença corresponde ao montante de imposto pago indevidamente.
A Requerente juntou procuração forense, 3 documentos e o comprovativo do pagamento da taxa de arbitragem inicial. A Requerente requereu ainda a junção do processo administrativo instrutor.
Foi proferido despacho arbitral tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
Nesse seguimento veio a Requerida informar o presente Tribunal Arbitral que, ao abrigo do princípio da cooperação vertido na alínea f) do artigo 16.º do RJAT e por despacho da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR de 31-05-2025, a liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral em referência foi revogada e reconhecido o direito aos juros indemnizatórios peticionados a favor da Requerente.
II. Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT, relativamente ao pedido para apreciação da legalidade da liquidação de IRC n.º 2022..., referente ao ano de 2021.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
III. Matéria de facto
A) Matéria de Facto Provada
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
i) A Requerente é uma cidadã de nacionalidade alemã;
ii) Até março de 2020, a Requerente residiu na Alemanha;
iii) Em abril de 2020 a Requerente tornou-se residente fiscal em Portugal;
iv) Em 2020, a Requerente residiu na Rua ..., ..., ..., ...-..., Viana do Castelo;
v) No ano de 2023, a Requerente transferiu a sua residência para a Rua..., n.º ..., apartamento ..., ..., ...-... Vila Nova de Gaia, Portugal;
vi) A Requerente mudou-se para território português em virtude de ter celebrado um contrato de trabalho sem termo com a empresa denominada à data de B..., Lda., com número de identificação fiscal ... (atualmente denominada C..., Lda.), na qual desempenhava as funções inerentes à categoria profissional de Gestora da Área Operacional;
vii) A relação laboral da Requerente com a aludida empresa terminou a 31 de março de 2021, tendo celebrado contrato de trabalho sem termo com a empresa D..., Lda, a partir de 1 de abril de 2021, na qual prestou a atividade correspondente à categoria profissional deDiretor de Produção até 2024;
viii) A Requerente é engenheira e exerceu funções nessa qualidade em Portugal, entre 2020 e 2024;
ix) Nos 5 anos anteriores a 2020, a Requerente não foi residente em Portugal, uma vez que era residente na Alemanha;
x) A Requerente regressou à Alemanha, onde passou a ser residente a partir do final do ano de 2024, tendo residido todo o ano de 2023 em Portugal;
xi) A Requerente apresentou a Declaração (Modelo 3) de IRS do período de 2023;
xii) Naquela declaração de IRS foram declarados os rendimentos de trabalho dependente obtidos em território português no ano de 2023, decorrentes dos exercícios de funções acima descritas no montante total de € 74.340,00, assim como as retenções na fonte efetuadas no valor de € 24.152,00;
xiii) Nessa sequência, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2024..., de 18-06-2024, referente ao ano de 2023, que apurou um imposto a reembolsar de € 1.953,62;
xiv) Por preencher os pressupostos de tributação como residente não habitual desde 2020, a Requerente solicitou em 08-10-2021 a sua inscrição como residente não habitual, mediante preenchimento do respetivo formulário através do portal das finanças, tendo requerido, por lapso, que os efeitos do regime se reportassem ao ano de 2021;
xv) Em 15-10-2021, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento do referido pedido, e para exercer o direito de audição prévia;
xvi) A Requerente exerceu o direito de audição prévia relativamente ao referido projeto de decisão de indeferimento, evidenciando que se encontravam verificados todos os requisitos para ser tributada como residente não habitual, com efeitos a partir de 2020;
xvii) Em 24-06-2022, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, datada de 09-06-2022, proferida pelo Exmo. Senhor Diretor de Serviços da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, o Dr. E..., no âmbito do processo n.º ..2021...;
xviii) A Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de IRS n.º 2024 ..., de 18-06-2024, referente ao ano de 2023;
xix) Por decisão datada de 12-12-2024, os serviços da administração tributária indeferiram a reclamação graciosa referida no ponto anterior;
xx) A Requerente foi notificada pela Requerida da revogação da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral em referência e do reconhecimento do direito da Requerente aos juros indemnizatórios peticionados.
B. Matéria de Facto Não Provada
Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.
C. Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.
Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.
IV. Matéria de direito
A) Da inutilidade superveniente da lide
A inutilidade superveniente da lide ocorre quando, durante a sua pendência, a pretensão do autor não se puder manter, em virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo ou ter havido satisfação do pedido fora da providência requerida, caso em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o pedido ter acolhimento ou o fim visado com a ação ter sido atingido por outro meio.
Neste sentido, aponta o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 30-07-2014, proferido no âmbito do processo n.º 0875/14, que com a devida vénia reproduzimos na parte que se entende aplicável: «A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.»
O objeto do presente processo era a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, datado de 12-12-2024, no âmbito do procedimento sob o número ...2024..., e da liquidação de IRS n.º 2024..., de 18-06-2024, referente ao ano de 2023.
Ora, conforme resulta da matéria de facto dada como provada nos presentes autos, a Requerida informou o Tribunal Arbitral que, ao abrigo do princípio da cooperação vertido na alínea f) do artigo 16.º do RJAT e por despacho da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR de 31-05-2025, a liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral em referência havia sido revogada e reconhecido o direito aos juros indemnizatórios peticionados a favor da Requerente.
Deste modo, o Tribunal Arbitral considera que a revogação da liquidação de IRS impugnada satisfaz integralmente a pretensão da Requerente nos termos peticionados.
Em face do exposto e considerando que a pretensão da Requerente se encontra totalmente satisfeita, entende este Tribunal Arbitral que se verifica a inutilidade superveniente da lide quanto à apreciação da legalidade e consequente anulação do atos impugnados pela Requerente, de tal forma que se julga extinta a instância nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
V. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, por falta de objeto, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
VI. Valor do processo
Fixa-se ao processo o valor de € 8.977,82, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas arbitrais
Ao Tribunal Arbitral compete fixar o montante das custas finais do processo e determinar a responsabilidade das partes no seu pagamento.
Deste modo e tendo em conta o disposto no artigo 536.º n.º 3 do CPC, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, nas situações de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu requerido, caso em que é este o responsável pela sua totalidade.
No caso dos presentes autos, foi a Requerida que deu causa à inutilidade superveniente da lide, pelo que é ela que fica responsável pelo pagamento total das custas processuais, nos termos do já citado n.º 3 do artigo 536.º do CPC.
Assim, nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 918,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 19 de novembro de 2025
O Tribunal Arbitral,
Sérgio Santos Pereira