Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 43/2025-T
Data da decisão: 2025-11-20  IVA  
Valor do pedido: € 44.712,00
Tema: IVA – Regularização a favor do sujeito passivo – Artigo 36º do CIVA;
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Despacho - Da junção pela Requerente de Documento n.º 1 em 14.10.2025:

 

A Requerente veio juntar, antes da apresentação das alegações finais, o documento identificado como Doc. n.º 1 (extrato de conta corrente), o qual reputa de relevante para a matéria dos autos.

 

A Requerida não deduziu oposição à sua junção, nem invocou qualquer obstáculo ao exercício do contraditório;

 

Atendendo ao princípio da descoberta da verdade material e aos poderes de livre condução do processo atribuídos ao Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 16.º, alínea c), do RJAT, e não sendo o referido documento manifestamente impertinente para a boa decisão da causa,

 

decide-se admitir e deferir a junção aos autos do documento identificado como Doc. n.º 1, o qual se considera integrado no processo para todos os efeitos legais.

 

Notifique.

Lx, d. i.

 

*

 

 

DECISÃO ARBITRAL 

 

 

Sumário:

 

Embora as faturas e bem assim os documentos a que alude o n.º 6 do artigo 36º do CIVA detenham relevância como instrumento documental de controlo fiscal, o seu incumprimento formal não deve, por princípio, prevalecer sobre a verificação dos pressupostos materiais da regularização que tais documentos visam titular, quando estes se encontrem provados. Estando demonstrados os requisitos substantivos exigidos pela lei, a inobservância de formalidades não tem força bastante para excluir o exercício do direito à dedução ou à correção do imposto, sob pena de se frustrar o princípio da neutralidade do IVA, que estrutura todo o sistema comunitário do IVA.

 

 

O árbitro Luís Sequeira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 25.03.2025, decide no seguinte:

 

 

I.              Relatório

A... S.A. (adiante denominada por “Requerente”), com sede na Rua ..., N.º...-..., ...-... Lisboa, titular do número de identificação fiscal ..., veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos arts.º 2º e 10º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugado com os art.ºs 102 e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada por “Requerida” ou “AT”.

 

A)   O pedido:

 

A Requerente solicita a ilegalidade e a consequente anulação da liquidação adicional de  Imposto  Sobre  o  Valor Acrescentado (“IVA”), a qual constitui o objeto imediato destes autos, com o n.º 2024..., referente ao período de 2309T, através da qual se procedeu a correção de IVA no valor de € 44.712,00, baseada na decisão emanada de Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”). 

 

A Requerente peticiona, ainda, o pagamento do valor indevidamente não reembolsado pela AT em função do resultado apurado de tais liquidações adicionais, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.

 

 

B) Tramitação

O processo teve início em 15 de janeiro de 2025, com a aceitação do pedido arbitral.

 

Em 7 de fevereiro de 2025 foi proferido despacho para designação de árbitro tendo esta tido lugar em 5 de março, não tendo as partes se oposto a tal nomeação.

 

A 25 de março de 2025, foi constituído este Tribunal Arbitral, o que foi comunicado às partes.

 

Foi de seguida proferido despacho ao abrigo do artigo 17.º do RJAT, 

 

Em 6 de maio de 2025, a Autoridade Tributária apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.

 

No dia 1 de julho de 2025, o Tribunal proferiu despacho arbitral, instando a Requerida à junção de relatório de inspeção (“RIT”), o qual veio a ser junto em 9 de julho de 2025, 

 

Em 18 de setembro de 2025, o Tribunal proferiu despacho designando o dia 06 de outubro de 2025, às 15h00, para efeito de realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e bem assim para produção da prova testemunhal, tendo aí sido prorrogado por dois meses, nos temros do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, o prazo para prolação de decisão.

 

A inquirição realizou-se a 6 de outubro de 2025, tendo sido produzida a respetiva ata e gravação da prova produzida, tendo sido concedido prazo às partes, de 15 dias, para alegações escritas facultativas, consignando-se que a decisão seria proferida no dia 20 de novembro de 2025.

 

Em 14.10.2025, a Requerente veio a apresentar requerimento através do qual solicitava a junção de documento – extrato de conta-corrente – o qual veio a ser notificado à Requerida, sem que sobre o teor do mesmo se tenha vindo a pronunciar.

 

Em 22.10.2025, Requerente e Requerida vieram a formular alegações escritas. 

 

C) Da posição das partes:

 

i)               Da Requerente:

Em síntese, sustenta a Requerente que:

 

A posição da Requerente assenta essencialmente no facto de a liquidação impugnada resultar da correção de um montante de IVA que havia sido regularizado a seu favor em 2018, em virtude de erro no enquadramento de dois contratos de arrendamento urbano que deveriam ter sido tratados como isentos de IVA, ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29 do CIVA. 

 

A regularização, efetuada em 2018, ocorreu no prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA, aplicável aos erros de direito e não às simples inexatidões das faturas.

 

Apesar de a Autoridade Tributária ter reconhecido que os contratos em causa eram efetivamente isentos, recusou a regularização alegando incumprimento de formalidades, designadamente: a falta de comunicação da “fatura negativa” no E-Fatura, a inexistência de prova de devolução do IVA ao arrendatário e a omissão da comunicação dos contratos no Portal das Finanças. 

 

A Requerente contrapõe que tais exigências formais não podem limitar um direito substantivo de regularização, sob pena de violação dos princípios da neutralidade e da proporcionalidade do IVA, à luz da jurisprudência do TJUE (casos Goed Wonen, Walderdorff, Mesquita, entre outros). 

 

Defende ainda que a fatura n.º 153, emitida em 2018 com valor negativo, constitui documento idóneo para suportar a regularização e que o encontro de contas efetuado com o arrendatário assegura que não há risco de enriquecimento sem causa. Em conclusão, considera ilegal o ato de liquidação e requer a sua anulação.

 

Em sede de alegações, a Requerente reafirma a legalidade da regularização de IVA efetuada em 2018, no montante de €44.712,00, por tempestiva e resultar de um erro de enquadramento jurídico dos contratos de arrendamento, enquadrável no prazo de quatro anos do artigo 98.º, n.º 2 do CIVA. 

 

Sustenta que a AT reconhece a isenção aplicável aos contratos, pelo que a sua recusa assenta exclusivamente em formalidades, nomeadamente a natureza do documento emitido, a não comunicação no e-Fatura e a alegada falta de prova da devolução do imposto. 

 

Defende que tais formalismos não podem suprimir um direito substantivo, em violação dos princípios da neutralidade, proporcionalidade e efetividade do IVA.

 

Com base na instrução realizada, reforça que ficou provado que o montante regularizado foi integralmente compensado com o arrendatário ainda em 2018, eliminando qualquer risco de enriquecimento indevido e demonstrando que a devolução económica do imposto ocorreu de forma total e rastreável. Conclui que a liquidação impugnada é ilegal, devendo ser anulada e reconhecido o direito ao reembolso integral e bem assim o pagamento de juros indemnizatórios.

 

ii)             Da Requerida:

 

Na sua Resposta, a Autoridade Tributária começa por sustentar que a regularização efetuada pela Requerente em 2018 não cumpre os requisitos formais exigidos em matéria de faturas/notas de crédito e, por isso, é insuscetível de produzir efeitos fiscais. 

 

Defende que a chamada “fatura n.º 153”, emitida com valor negativo, não se conforma com o disposto no artigo 36.º do CIVA, quer por não constituir um documento retificativo previsto na lei, quer por não ter sido comunicada no e-Fatura, requisito que considera essencial para a validade e controlo das operações. 

 

Na perspetiva da AT, o único documento legalmente admissível para anular valores anteriormente liquidados é uma «nota de crédito», emitida nos termos do artigo 29.º, n.º 7 e do artigo 36.º, n.º 6 do CIVA, contendo referência expressa às faturas que se pretendia corrigir.

 

A AT afirma igualmente que a Requerente não demonstrou ter devolvido o IVA indevidamente liquidado ao arrendatário, incumprindo assim o artigo 78.º, n.º 5 do CIVA, o qual exige que a regularização a favor do sujeito passivo seja antecedida da reposição do imposto ao adquirente ou destinatário. 

 

Sustenta ainda que o alegado “encontro de contas” não constitui prova suficiente de que a restituição ocorreu nos termos legalmente exigidos, uma vez que não existe documentação comprovativa da aceitação pelo arrendatário nem de um mecanismo financeiro ou contabilístico que assegure a efetiva devolução do imposto.

 

Outro fundamento apresentado pela AT assenta na falta de comunicação contratual prevista no artigo 60.º do CIS. Considera que as alterações introduzidas pela Requerente aos contratos de arrendamento em 2018 — nomeadamente a mudança de enquadramento para operações isentas — exigiam comunicação obrigatória no Portal das Finanças, formalidade que não foi cumprida. Tal omissão contribuiria, segundo a AT, para inviabilizar a regularização retroativa dos exercícios anteriores.

 

A AT invoca ainda que a regularização não respeita as regras da Diretiva 2006/112/CE, especialmente os artigos 90.º e 273.º, que permitem aos Estados-Membros exigir formalidades que assegurem o controlo das operações e evitem risco de fraude ou perda de receita. 

 

Refere também que o procedimento seguido pela Requerente contraria as orientações administrativas constantes dos Ofícios-Circulados n.º 30136 e 30141, ambos da DSIVA, que regulam os requisitos formais dos documentos retificativos e das regularizações.

 

Em síntese, a AT conclui que a regularização promovida não cumpre nem os requisitos formais, nem os requisitos substanciais legalmente exigidos, sendo por isso inidónea para produzir efeitos fiscais. Entende que a liquidação adicional impugnada se encontra devidamente fundamentada e que deve ser mantida na ordem jurídica, defendendo assim a improcedência total do pedido arbitral.

 

Em sede de alegações, veio a AT a sustentar a inviabilidade de ter sido compensado o montante total de €44.712,00 cuja regularização a Requerente pretende ver reconhecida, argumentando ainda que a própria Requerente não concretizou qual a “parte” das rendas do 2.º trimestre que teria sido compensada, gerando incerteza sobre o valor real compensado.

 

Isto é, mesmo admitindo a existência de compensação parcial, não ficou demonstrado — nem documentalmente nem pela prova testemunhal — que o IVA tenha sido integralmente restituído, devendo, por isso, considerar-se não provado o requisito material essencial da regularização previsto no artigo 78.º, n.º 5 do CIVA.

 

Finalmente, a AT reafirmou, em sede de alegações a improcedência do pedido, assente na falta de prova bastante quanto à restituição do imposto e igualmente fundada na ilegalidade da regularização, por incumprimento de formalidades.

 

II.        Saneamento

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea a) do CPPT. 

 

As partes estão devidamente representadas, têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades e não existem questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

 

III. Matéria de facto 

 

1. Factos provados 

 

Dão-se como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

A.   A A..., S.A. é uma sociedade com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ...-...  Lisboa, titular do NIF ... . Encontra-se enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade trimestral desde 29.10.2002, com atividade principal “compra e venda de bens imobiliários” (CAE 68100) e atividade secundária “arrendamento de bens imobiliários” (CAE 68200, desde 2018, com início de atividade em 29.10.2002) – cfr. RIT.

 

B.    No âmbito da sua atividade, a Requerente era proprietária, à data do facto tributário, designadamente, de duas frações autónomas sitas na freguesia ..., inscritas na matriz predial urbana da versada freguesia sob o artigo ..., frações AM (6.º B) e AN (6.º A)– cfr. RIT.

 

C.    Em 06.11.2006, a Requerente celebrou com. B..., NIF ...- este último, na qualidade de arrendatário - dois contratos de arrendamento urbano com prazo certo, relativos às frações AM e AN do prédio sito em ..., prevendo-se rendas trimestrais de €6.150,00 (fração AN) e €7.500,00 (fração AM), acrescidas de IVA à taxa legal em vigor - cfr. contratos de arrendamento, “Contratos de Arrendamento Urbano com Prazo Certo”, de 06.11.2006 – cfr. Doc. 4 do PPA e RIT;.

 

D.   Entre 28.02.2014 e 07.12.2017, a Requerente emitiu, no âmbito destes contratos, 28 faturas com liquidação de IVA à taxa de 23%, sobre rendas trimestrais no montante global de €194.400,00, correspondendo o IVA liquidado ao montante total de €44.712,00 - – cfr. quadro-resumo de faturas 103, 104, 105, 106, 110, 111, 113, 114, 119, 120, 123, 124, 125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 136, 137, 141, 142, 143, 144, 145 e 146, com base tributável no total de €194.400,00 e IVA de €44.712,00 – cfr. Doc. 6  do PPA; vide RIT, IV.2.3.

 

E.    Em 2018, a Requerente concluiu que os contratos de arrendamento relativo às frações AM e AN, uma vez respeitando a locação de paredes nuas, deverem as respetivas rendas ser tidas como isentas de IVA ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29 do CIVA, pelo que a anterior liquidação de IVA efetuada nas rendas anteriores – a que respeitam as faturas do precedente ponto D. - era incorreta.

 

F.    Para suportar essa regularização, a Requerente emitiu a “Fatura n.º 153”, datada de 01.06.2018, no montante total (negativo) de “–€44.712,00”, com o descritivo “Anulação do IVA, liquidação indevida, nas faturas n.ºs 103, 104, 105, 106, 110, 111, 113, 114, 119, 120, 123, 124, 125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 136, 137, 141, 142, 143, 144, 145 e 146”– cfr. cópia da fatura n.º 153, triplicado, e quadro anexo com identificação das faturas anuladas – cfr. Doc. 6 do PPA; vide RIT, IV.2.3 – cujo teor ora se reproduz:

 

 

 

 

B...

 

A...

 

G.   Por ter um valor negativo, a fatura n.º 153 não foi suscetível de registo no sistema E-Fatura, não constando dos registos eletrónicos da AT – cfr. RIT, IV.2.3 e posicionamento das partes; 

 

H.   O arrendatário B... foi informado pela Requerente da necessidade de corrigir o IVA indevidamente liquidado nas rendas relativas aos meses de 2014 a 2017, inclusive e de que seria emitido um documento retificativo (“fatura n.º 153”) da qual tomou conhecimento e aceitado que o montante de IVA por este pago em excesso fosse objeto de compensação através do valor das rendas relativas a 2018. 

 

I.      Em consequência da deteção do aludido erro e da subsequente emissão da fatura identificada em F), procedeu a Requerente, âmbito da declaração periódica (“DP”) de IVA de 2018.06T, submetida em 14.08.2018, à regularização a seu favor de IVA no montante de €44.712,00, inserindo esse valor no campo 40 da declaração, correspondente ao imposto liquidado nas rendas de 2014–2017 que considerou indevidamente liquidado - cfr. comprovativo da DP 2018.06T – cfr. Doc. 5 do PPA; vide RIT, IV.1 e IV.2.3.

 

J.     A partir de 2018, inclusive, a Requerente passou a emitir as faturas de arrendamento das frações AM e AN sem liquidação de IVA, qualificando-as como operações isentas nos termos do artigo 9.º, n.º 29 do CIVA– cfr. RIT, IV.2.1; cfr. faturas de 2018 juntas – Doc. 9 e Doc. 10 do PPA.

 

K.   Do extrato da conta-corrente da Requerente com o arrendatário resulta que, após a emissão da denominada “fatura n.º 153”, em 01.06.2018, o arrendatário passou a assumir a posição de credor da Requerente, no montante total de € 44.712,00, correspondendo ao IVA cuja regularização se pretendia efetuar, passando essa quantia a ser titulada como adiantamento de rendas futuras – cfr. Doc. 1 junto pela Requerente e Doc. 14 do PPA.

 

L.    A partir de julho de 2018, os valores das rendas devidas foram sendo compensados com o crédito do arrendatário, deixando de existir pagamentos e surgindo um mecanismo de compensação– cfr. lançamentos contabilísticos de julho a dezembro de 2018 (vide Doc. 14 do PPA e Doc. 1 junto pela Requerente) e depoimento da testemunha inquirida.

 

M.  Essa compensação prolongou-se até 31.12.2018, data em que, com a emissão das faturas n.º 156 e 157, resulta o saldo final credor da Requerente no valor de € 1.153,04, demonstrando o esgotamento do crédito anteriormente detido pelo arrendatário – cfr Doc. 14 do PPA e Doc. 1 junto pela Requerente e depoimento da testemunha inquirida.

 

N.   Em 18.10.2023, a Requerente apresentou a declaração periódica de IVA relativa ao 3.º trimestre de 2023 (2023.09T), com o n.º de identificação..., na qual apurou crédito de imposto de €106.122,42, indicou excesso a reportar de €1.122,42 e solicitou reembolso de €105.000,00 -– cfr. comprovativo de entrega da DP 2023.09T – Doc. 7 do PPA.

 

O.   O crédito de imposto de €106.122,42 declarado em 2023.09T resulta, em parte, da regularização a favor do sujeito passivo efetuada em 2018.06T no valor de €44.712,00 (campo 40), bem como do crédito estrutural gerado pela atividade de exploração turística (operações à taxa reduzida e custos à taxa normal) – cfr. RIT, IV.1; cfr. Docs. 5 e 7 do PPA.

 

P.    Em 19.10.2023, foi emitida a Ordem de Serviço OI2023..., qualificando a ação como procedimento inspetivo interno e de âmbito parcial em sede de IVA, relativamente ao período 2023.09T, tendo a Requerente sido notificada do início do procedimento inspetivo por notificação eletrónica (ViaCTT), considerando-se notificada em 14.11.2023– cfr. RIT, II.1 e II.2; e notificação de início de procedimento inspetivo – Doc. 8 do PPA.

 

Q.   No âmbito dessa ação inspetiva, a Requerente foi notificada, em 28.11.2023, para apresentar elementos e esclarecimentos adicionais sobre o pedido de reembolso de IVA de 2023.09T, incluindo contratos de arrendamento, faturas de vários anos e justificação da alteração do enquadramento em 2018 – cfr. ofício “Pedido de elementos e/ou prestação de esclarecimentos – Reembolso de IVA” – Doc. 8 do PPA.

 

R.    No Relatório de Inspeção Tributária, datado de 27.09.2024, a Administração Tributária concluiu que a regularização de €44.712,00 efetuada a favor da Requerente em 2018.06T foi indevida, por entender que: (i) a fatura n.º 153, de montante negativo, não cumpre os requisitos do artigo 36.º do CIVA e não pode ser inserida no e-Fatura; (ii) não foi feita prova da devolução do montante de IVA ao arrendatário, tendo sido apenas utilizado um encontro de contas; (iii) as alterações aos contratos de arrendamento de 2018 não foram comunicadas no Portal das Finanças, nos termos do artigo 60.º do CIS - cfr. RIT, IV 2.3. e V.V.1 e X.1 e X.2; cfr. Doc. 12 do PPA – cuja fundamentação se deixa aqui citada:

 

 

 

 

B...

 

 

 

 

 

S.    Em face do supra exposto, os Serviços de Inspeção propuseram a correção do crédito de imposto em 2023.09T, eliminando o efeito da regularização de €44.712,00, de modo que o crédito apurado na DP 2023.09T fosse corrigido de €106.122,42 para €61.410,42, com deferimento parcial do pedido de reembolso nesse montante e anulação do crédito a reportar de €1.122,42 – cfr. mapa resumo de correções do RIT (I.1 e I.4.) e capítulo V;

 

T.    A Requerente exerceu direito de audição em 13.09.2024, sustentando, entre o mais, que a regularização foi efetuada ao abrigo do prazo do artigo 98.º, n.º 2 do CIVA (erro de direito), que o IVA liquidado em excesso foi devolvido ao arrendatário por encontro de contas e que as exigências formais relativas ao tipo de documento e comunicação não podem prevalecer sobre os requisitos materiais da isenção (princípio da neutralidade), sob pena de enriquecimento sem causa do Estado - cfr. requerimento de direito de audição – Anexo 1 do RIT;

 

U.   Da análise do direito de audição, a AT reafirmou que a fatura de valor negativo não foi reportada no SAFT e deveria ter sido substituída por nota de crédito, que foram detetadas falhas na comunicação dos contratos de arrendamento e no pagamento de imposto de selo e que não foram apresentados novos elementos probatórios suscetíveis de alterar a posição inicialmente assumida, pelo que se mantiveram as correções propostas - cfr. RIT, X.2.- cuja fundamentação se reproduz:

 

V.   Em 27.09.2024, o Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa proferiu despacho concordando integralmente com o Relatório de Inspeção Tributária elaborado no âmbito da Ordem de Serviço OI2023..., considerando verificados os pressupostos legais e de facto para manter as correções propostas em sede de IVA, designadamente a correção de €44.712,00 relativa à regularização efetuada pela Requerente em 2018.06T. O despacho determinou a convolação das correções em definitivas, o deferimento parcial do pedido de reembolso de IVA do período 2023.09T no montante de €61.410,42, a emissão do respetivo Documento de Correção Único e o levantamento do competente Auto de Notícia - vide Despacho de 27.09.2024, constante do RIT, do Chefe de Divisão dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, por Subdelegação do Diretor de Finanças Adjunto,  

 

W.  Em consequência de tal decisão no âmbito do versado RIT, foi emitida a liquidação adicional de IVA n.º 2024..., respeitante ao período 2023.09T, datada de 08.10.2024, qualificada como “Liquidação Adicional feita com base em correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária”, da qual resultou: pedido de reembolso inicialmente declarado de €105.000,00, reembolso autorizado de €61.410,42, e correção do crédito em conformidade com o montante de €44.712,00 considerado indevidamente regularizado - – cfr. demonstração de liquidação de IVA, n.º de liquidação ... – cfr. Doc. 1 do PPA.

 

X.   A liquidação adicional n.º 2024 ... não determinou qualquer valor de IVA a pagar em numerário pela Requerente, uma vez que a correção foi concretizada através da redução do montante do reembolso pedido e da correção do crédito a reportar, originando  um reembolso final de € 61.410,42 -– cfr. demonstração de liquidação e notificação relativa ao “excesso a reportar” – Doc. 1 do PPA.

 

Y.   X.  Na sequência da notificação da liquidação adicional de IVA n.º 2024 ..., a Requerente apresentou, em 13.01.2025, pedido de pronúncia arbitral (PPA) junto do CAAD, visando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional e a anulação da correção de €44.712,00, bem como o reconhecimento do direito ao reembolso integral de €105.000,00 e aos juros indemnizatórios, tendo o pedido sido aceite em 15.01.2025.

 

Z.    R. No âmbito do RIT, a AT aceitou que, a partir de 2018, os arrendamentos das frações AM e AN configuram locações de paredes nuas, isentas de IVA ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29 do CIVA, não pondo em causa a isenção futura, mas apenas a regularização retroativa relativa às rendas de 2014–2017.– cfr. RIT, V.1.

 

 

 

 

2. Factos não provados:

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

 

3. Fundamentação da matéria de facto:

 

Relativamente à matéria de facto, o tribunal arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT). 

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados resultam da prova produzida nos autos e, ou, do acordo, expresso ou implícito (por não impugnação especificada), de Requerente e Requerida, livremente apreciados (nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) à luz das regras de racionalidade, lógica e experiência comum, segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

No âmbito da apreciação da prova produzida em sede de reunião arbitral, importa analisar e fundamentar a credibilidade atribuída ao depoimento da testemunha B..., considerando a sua relevância para a formação da convicção do tribunal.

 

A prova testemunhal produzida, conjugada com os documentos contabilísticos constantes dos autos, permitiu ao Tribunal formar uma convicção clara e segura quanto à efetiva realização da compensação entre a Requerente e o seu arrendatário no ano de 2018, na sequência da emissão da denominada “fatura n.º 153”, de valor negativo.

 

A testemunha B..., arrendatário e único destinatário das rendas faturadas, prestou um depoimento coerente, esclarecido e compatível com a documentação junta, sendo considerado credível. Esclareceu que, no final de 2017, dispunha de um saldo credor, e que, com a emissão das faturas de renda do primeiro semestre de 2018, o saldo passou a ser devedor. Confirmou depois que a emissão da “fatura 153” — documento retificativo com valor negativo de cerca de € 44.712,00 — foi imediatamente refletida na sua conta corrente, transformando o seu saldo devedor num saldo credor, o que implicou que a Requerente “ficasse a dever-lhe dinheiro”.

 

Do depoimento resulta que este saldo credor foi integralmente utilizado, desde logo, para compensar as rendas emitidas no 2.º semestre de 2018, tendo a testemunha explicado que não pagou tais rendas “porque o valor da nota de crédito serviu para saldar essas faturas” 

 

Explicou também — de forma detalhada e espontânea — que o encontro de contas está refletido no extrato de conta de cliente de 2014 a 2018, documento que ele próprio enviara à Autoridade Tributária em 2024 e que foi junto aos autos. 

 

Este extrato confirma que, após o lançamento da “fatura 153”, no valor de € 44.712,00, foi registado um saldo credor de € 25.246,96, o qual serviu ainda para liquidar as faturas n.º 156 e 157 (total e parcialmente, respetivamente), assim se extinguindo, em 31.12.2018, o crédito do arrendatário sobre a Requerente relativo a tal regularização.

 

A testemunha foi clara ao afirmar que a compensação ocorreu exclusivamente no ano de 2018, momento em que “deixou de pagar as rendas seguintes” porque estas foram totalmente saldadas pelo crédito resultante da regularização do IVA: “esses 16 mil euros ficaram a meu favor e eu não paguei as rendas emitidas no terceiro e no quarto trimestre”

 

Ainda que não tenha sido capaz de recordar com precisão alguns valores concretos sem recorrer aos documentos — o que é natural face à distância temporal — sempre reconheceu que a documentação junta refletia a realidade dos pagamentos e compensações. 

 

Os documentos contabilísticos (extratos, lançamentos, memorandos internos) são perfeitamente coerentes com este relato. Em particular, o memorando enviado à AT, datado de junho de 2024, reconhece expressamente que “o valor do imposto não foi objeto de devolução ao cliente tendo sido utilizado por encontro de contas”, acrescentando que a nota de crédito saldou as faturas de 2018 que estavam em dívida e permitiu compensar a quase totalidade das restantes faturas emitidas nesse ano 

 

Cumpre notar que nenhum elemento documental ou testemunhal contraria esta versão dos factos, nem a AT logrou demonstrar qualquer pagamento, recebimento ou saldo divergente que pudesse infirmar a compensação declarada. A tese da AT — de que não estaria demonstrada a restituição ao arrendatário — diverge dos lançamentos contabilísticos juntos e com o depoimento direto do próprio destinatário dos serviços em causa. 

 

Com base nos elementos acima expostos, o Tribunal Arbitral considerou o depoimento da testemunha supra identificada - como credível e relevante para a decisão da causa, atendendo à sua razão de ciência, coerência, conhecimento direto dos factos e ausência de motivos para falsear a verdade, justificando assim que as mesmas sejam valorizadas como prova, em conformidade com os artigos 466.º do CPC e 396.º do Código Civil.

 

 

IV.           Do Direito:

 

1. Da legalidade da liquidação adicional de IVA – Regularização:

 

Nos exatos termos em que os autos se encontram delimitados pelas partes, quer no PPA, quer na respetiva Resposta da AT, atenta a fundamentação externalizada no âmbito do RIT, o thema decidendum nos presentes autos consiste em apreciar se, ante o enquadramento legal aplicável, tinha ou não a Requerente direito a regularizar o IVA anteriormente liquidado relativamente às faturas referentes aos anos de 2014 a 2017, inclusive, sobre as quais emitiu a fatura n.º 153, de valor negativo, isto é, se a liquidação adicional de IVA objeto destes autos, através do qual se materializou a correção, por indevida regularização de imposto, é ou não ilegal. 

A Requerente defende que a regularização de €44.712,00 foi realizada dentro do prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA, por respeitar a um erro de direito no enquadramento dos contratos de arrendamento isentos ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29,sustentando que a AT não pode recusar a regularização com base em formalismos — tipo de documento, comunicação no e-Fatura ou ausência de aditamento contratual — pois todos os requisitos materiais da isenção estavam cumpridos e o IVA indevidamente liquidado foi efetivamente regularizado perante o arrendatário através de compensação, não havendo risco de fraude nem de enriquecimento sem causa do Estado.

Por seu turno, sustenta a AT que a regularização de €44.712,00 efetuada em 2018 é ilegal porque suportada numa fatura de valor negativo que não cumpre o artigo 36.º do CIVA, não tendo sido comunicada no sistema e-Fatura e não comprova a devolução do IVA ao arrendatário, sendo insuficiente o alegado encontro de contas. Acrescenta que a Requerente não aditou nem comunicou as alterações contratuais de 2018 previstas no artigo 60.º do CIS, razão pela qual considera inaceitável a regularização retroativa das rendas dos anos anteriores.

Importa assim, antes de mais, enquadrar, no caso concreto, a regularização do IVA indevidamente liquidado nas faturas relativas às rendas relativas aos anos de 2014 a 2017, ao abrigo do prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, por aplicação às situações de erro de direito quanto ao enquadramento das operações tributáveis.

Com efeito, importa começar por recordar o regime legal aplicável à correção do imposto em excesso. O artigo 78.º, n.º 6, do CIVA estabelece que a correção de erros materiais ou de cálculo é facultativa quando resulte imposto a favor do sujeito passivo, mas apenas pode ser efetuada no prazo de dois anos, prazo esse que se conta, no âmbito do direito à dedução, a partir do nascimento do respetivo direito, nos termos do artigo 22.º do mesmo código.

Já o artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, que consagra o regime geral de restituição do imposto pago em excesso, determina que, salvo disposição especial, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido no prazo de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou do pagamento indevido do imposto. 

Este prazo corresponde, segundo jurisprudência constante, ao aplicável nos casos em que o erro cometido pelo sujeito passivo não é de natureza contabilística ou aritmética, mas antes um erro de enquadramento jurídico das operações tributáveis, isto é, o legislador prevês assim dois regimes distintos: a) Erros materiais ou de cálculo — sujeitos ao prazo mais curto de dois anos, previsto no artigo 78.º, n.º 6, do CIVA; b) Erros de direito, envolvendo incorreta interpretação ou aplicação do regime jurídico do imposto — sujeitos ao prazo mais amplo de quatro anos, consagrado no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA.

Nos termos do artigo 98.º, n.º 1, do CIVA, quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, aplica-se ainda o regime de revisão oficiosa, efetuada ao abrigo do artigo 78.º da LGT, porém, quando a liquidação excessiva é imputável ao próprio sujeito passivo — como sucede quando este liquidou imposto sobre operações que deveriam ter sido tratadas como isentas, p.ex. — aplica-se diretamente o prazo de quatro anos para correção do erro de direito, nos termos do n.º 2 do artigo 98.º.

Assim, no âmbito do presente processo, estando em causa um erro de direito no enquadramento dos contratos de arrendamento urbano ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29, do CIVA, o prazo aplicável à correção do imposto liquidado em excesso é o prazo de quatro anos, nos termos do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA.

Este entendimento encontra eco consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo[1], que tem vindo a distinguir de forma consistente os erros meramente materiais dos erros jurídicos, podendo nesta matéria atentar-se, entre outros, nos seguintes arestos:

i)               no Acórdão do STA de 28.06.2017, proc. n.º 01427/14, onde se afirma expressamente que a errónea interpretação ou aplicação das normas do CIVA não configura erro material, antes integrando um erro de qualificação jurídica, sujeito ao prazo mais longo previsto no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA.

ii)             Acórdãos de 02.12.2020 (proc. n.º 136/14.0BEALM) e de 18.11.2020 (proc. n.º 01783/13.3BEBRG), onde se considerou que a inclusão de valores indevidos na matéria tributável, por incorreta interpretação do regime legal, constitui igualmente um erro de direito, cuja correção se submete ao prazo de quatro anos do artigo 98.º, n.º 2, podendo mesmo fundamentar revisão oficiosa, afastando-se a aplicação do prazo mais curto do artigo 78.º, n.º 6;

iii)           Acórdão de 17.06.2020, proc. n.º 0443/13.0BEPRT, segundo o qual não configura erro material mas sim erro na interpretação do regime jurídico a desconsideração, pelo sujeito passivo, de operações com relevância para o cálculo do pro rata, tratando-se, também aqui, de erro de direito;

iv)            Acórdão de 03.06.2020, proc. n.º 0498/15.2BEMDL, que reafirma expressamente que, nos casos de imposto entregue em excesso em resultado de erro de direito, o prazo aplicável é o de quatro anos, previsto no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA;

Nos presentes autos, a questão em apreço respeita ao enquadramento jurídico das operações de arrendamento urbano e, em particular, à determinação sobre se as rendas em causa são suscetíveis de beneficiar da isenção prevista ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29, do CIVA, pelo que o erro - sujeição a IVA de rendas de contratos de arrendamento habitacionais - que está na base da regularização objeto de correção no ato ora impugnado subsume-se, sem margem para dúbia  interpretação, a um “erro de direito”.

 

Como resulta da jurisprudência acima citada, um tal erro é suscetível de ser corrigido no prazo de quatro anos, nos termos do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, pelo que quanto a esta questão, mácula alguma é imputável à Requerente, na medida em que procedeu à regularização em respeito de tal comando jurídico, o que, de resto, a Requerida não coloca em crise.

 

 

Não obstante o exposto, sustenta a Requerida, no âmbito do RIT e em defesa da legalidade do ato tributário sindicado, que a regularização efetuada em 2018 por três razões essenciais: (i) a fatura n.º 153, por ter valor negativo, não respeita o artigo 36.º do CIVA, não constituindo nota de crédito válida e nem tendo sido comunicada no e-Fatura; (ii) não foi feita prova da efetiva restituição do IVA ao arrendatário, sendo o “encontro de contas” insuficiente face ao requisito do artigo 78.º, n.º 5 do CIVA; e (iii) as alterações contratuais de 2018 não foram comunicadas à AT, em violação do artigo 60.º do CIS, motivo pelo qual não se admitiu a regularização retroativa dos anos anteriores, embora se tenha reconhecido a isenção apenas para o futuro. Vejamos,

 

Dispõe o artigo 36º do CIVA, no segmento que importa à análise das formalidades ora em causa (n.º 3 a 11), o seguinte:

“3 - As faturas são substituídas por guias ou notas de devolução, quando se trate de devoluções de mercadorias anteriormente transacionadas entre as mesmas pessoas, devendo a sua emissão processar-se o mais tardar no 5.º dia útil seguinte à data da devolução

 

4 - Os documentos referidos nos números anteriores devem ser processados em duplicado, destinando-se o original ao cliente e a cópia ao arquivo do fornecedor.

 

5 - As faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter os seguintes elementos: 

 

a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente sujeito passivo do imposto, bem como os correspondentes números de identificação fiscal; 

b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efectivamente transaccionadas devem ser objecto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução;

c) O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável;

d) As taxas aplicáveis e o montante de imposto devido;

e) O motivo justificativo da não aplicação do imposto, se for caso disso;

f) A data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, em que os serviços foram realizados ou em que foram efectuados pagamentos anteriores à realização das operações, se essa data não coincidir com a da emissão da factura.

 

No caso de a operação ou operações às quais se reporta a factura compreenderem bens ou serviços sujeitos a taxas diferentes de imposto, os elementos mencionados nas alíneas b), c) e d) devem ser indicados separadamente, segundo a taxa aplicável.

 

6 - As guias ou notas de devolução e outros documentos retificativos de faturas devem conter, além da data e numeração sequencial, os elementos a que se refere a alínea a) do número anterior, bem como a referência à fatura a que respeitam e as menções desta que são objeto de alterações. 

 

7 - Os documentos emitidos pelas operações assimiladas a transmissões de bens pelas alíneas f) e g) do n.º 3 do artigo 3.º e a prestações de serviços pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 4.º devem mencionar apenas a data, natureza da operação, valor tributável, taxa de imposto aplicável e montante do mesmo.

 

8 - Pode o Ministro das Finanças, relativamente a sujeitos passivos que transmitam bens ou prestem serviços que, pela sua natureza, impeçam o cumprimento do prazo previsto no n.º 1, determinar prazos mais dilatados de facturação.

 

9 - No caso de sujeitos passivos que não disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional, que tenham nomeado representante nos termos do artigo 30.º, as faturas emitidas, além dos elementos previstos no n.º 5, devem conter ainda o nome ou denominação social e a sede, estabelecimento estável ou domicílio do representante, bem como o respetivo número de identificação fiscal. 

 

10 - As faturas podem, sob reserva de aceitação pelo destinatário, ser emitidas por via eletrónica. 

 

11 - A elaboração de faturas por parte do adquirente dos bens ou dos serviços fica sujeita às seguintes condições: 

 

a) A existência de um acordo prévio, na forma escrita, entre o sujeito passivo transmitente dos bens ou prestador dos serviços e o adquirente ou destinatário dos mesmos;

 

b) O adquirente provar que o transmitente dos bens ou prestador dos serviços tomou conhecimento da emissão da factura e aceitou o seu conteúdo.

 

c) Conter a menção 'autofaturação':

 

Por sua vez, dispõe o n.º 5 do artigo 78º do CIVA:

“5 - Quando o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução.”

 

Vistos os preceitos convocados pela Requerida e entendidos por pertinentes para a dilucidação da questão em apreço, importa começar por notar a existência de consenso, no âmbito da doutrina e jurisprudência, quanto ao facto de o IVA ser um imposto de matriz comunitária e plurifásico, assente numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, o qual, efetivamente, o suporta, sem direito à dedução.

 

Assim, o direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado[2]  designada como método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtrativo indireto nos termos do qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto liquidado nos respetivos inputs.

 

Do exposto, flui que o direito à dedução se tenha como um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado e que é exercido imediatamente para a totalidade dos impostos que oneraram as operações efetuadas a montante, conforme defendido reiteradamente pelo TJUE, nos acórdãos Mahagében e Dávid, C-80/11 e C-142/11; Bonik, C-285/11; e Petroma Transports C-271/12[3]

 

O regime de deduções instituído pela Diretiva IVA visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, assim, a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA.

 

Nos termos do Acórdão Kopalnia, proferido no processo nº C-280/10, de 1 de março de 2012,defendeu o TJUE, que:

“ [o] Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transações em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, requisitos adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito (v., no que respeita ao regime de autoliquidação, acórdão de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, Colet., p. I-10385, n.o 42).” (destaques e sublinhados nossos).

 

Com efeito, no supracitado Aresto resulta que a circunstância de a fatura ter sido emitida, antes do registo e da identificação da referida sociedade para efeitos de IVA, em nome dos futuros sócios, e não em nome da própria sociedade, não pode excluir o direito à dedução quando houver identidade entre as pessoas que tiveram de pagar o IVA a montante e aquelas que constituem a sociedade em causa.

 

Importa chamar à colação, igualmente, a propósito das formalidades para efeitos do direito à dedução, o aresto do TJUE, prolatado no âmbito do processo nº C-664/16, Vãdan, de 21 de novembro de 2018, do qual se extrai, com relevo para a questão dos presentes autos arbitrais, designadamente, o seguinte:

“40. No que respeita aos requisitos formais do direito a dedução, resulta do artigo 178.º, alínea a), da Diretiva IVA que o exercício desse direito está subordinado à posse de uma fatura emitida nos termos do artigo 226.º desta diretiva (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, EU:C:2016:691, n.º 29 e jurisprudência aí referida).

41.Ora, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Em consequência, a Administração Fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.os 6 e 7, da Diretiva IVA, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito estão preenchidos (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C-516/14, EU:C:2016:690, n.os 42 e 43).

42.Assim, a aplicação estrita do requisito formal de apresentar faturas colide com os princípios da neutralidade e da proporcionalidade, pois teria por efeito impedir de forma desproporcionada o sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal correspondente às suas operações.

43.No entanto, cabe ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA provar que preenche os requisitos para dela beneficiar (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C-516/14, EU:C:2016:690, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

 

Em idêntico sentido, atente-se no teor do aresto prolatado pelo TJUE, no âmbito do acórdão Vadan, com o n.º de processo C-664/16, nos termos do qual:

“40. No que respeita aos requisitos formais do direito a dedução, resulta do artigo 178.º, alínea a), da Diretiva IVA que o exercício desse direito está subordinado à posse de uma fatura emitida nos termos do artigo 226.º desta diretiva (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, EU:C:2016:691, n.º 29 e jurisprudência aí referida).

41.Ora, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Em consequência, a Administração Fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.os 6 e 7, da Diretiva IVA, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito estão preenchidos (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C-516/14, EU:C:2016:690, n.os 42 e 43).

42.Assim, a aplicação estrita do requisito formal de apresentar faturas colide com os princípios da neutralidade e da proporcionalidade, pois teria por efeito impedir de forma desproporcionada o sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal correspondente às suas operações.

43.No entanto, cabe ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA provar que preenche os requisitos para dela beneficiar (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C-516/14, EU:C:2016:690, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

44.Assim, o sujeito passivo é obrigado a apresentar provas objetivas de que os bens e os serviços lhe foram efetivamente entregues ou prestados a montante pelos sujeitos passivos, para os fins das suas próprias operações sujeitas ao IVA, e relativamente aos quais tenha efetivamente pago IVA.

45.Estes elementos de prova podem incluir, por exemplo, documentos na posse dos fornecedores ou prestadores de serviços a quem o sujeito passivo tenha adquirido bens ou serviços relativamente aos quais tenha pago IVA. Uma estimativa resultante de uma peritagem ordenada por um órgão jurisdicional nacional pode eventualmente completar essas provas ou reforçar a sua credibilidade, mas não pode substituí-los.” 

 

Também ao nível interno e em matéria de cumprimento das formalidades relativas a faturas incorretamente emitidas, importa trazer à colação o seguinte aresto, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), no âmbito do processo nº 177/18.9BECTB, datado de 23 de abril de 2020:

“A anulação de facturas por iniciativa do respectivo emitente ocorre quando por algum motivo ele, fornecedor de bens ou prestador de serviços, considera que a factura não foi correctamente emitida.

Caso a anulação ocorra antes da contabilização e declaração da operação tributável, a mesma reveste-se de um procedimento meramente administrativo ou interno; caso ocorra após a contabilização e declaração da operação, a regularização do IVA a favor do emitente passa pela emissão de uma nota de crédito devendo o emitente munir-se de prova de que o adquirente tomou conhecimento da anulação da factura na sua totalidade ou por redução da base tributável (art.º 78.º n.º 5, do CIVA), que poderá consistir (mas não só) na devolução da nota de crédito devidamente assinada e carimbada pelo adquirente.”

 

Neste particular, convoque-se igualmente o doutrinado no Acórdão deste TCAS, proferido no processo nº 60/10, de 05 de junho de 2019:

A ratio subjacente ao n.º 5 do art.º 71.º do CIVA é a de que esteja assegurado o conhecimento por parte do cliente da situação em causa, permitindo-se, dessa forma, que lhe venha a ser imputável uma eventual dedução indevida (daí que careça de relevância o alegado em torno do prazo legalmente previsto para se efetuar deduções, porque pertinente, atenta a opção do legislador, é haver segurança no sentido de qualquer dedução que possa ser feita pelo cliente ser claramente indevida).

 

 

 

Visto o teor dos normativos em causa, quer a jurisprudência comunitária e igualmente dos tribunais superiores nacionais, não podemos deixar de aplicar tais linhas de interpretação normativas ao caso dos autos.

 

No caso em apreciação, estamos perante a regularização efetuada pela Requerente, com base na denominada “Fatura n.º 153”, a qual expressamente corrigiu o teor das faturas melhor identificadas no ponto F. dos “Factos Provados”, por nestas se ter procedido, erradamente, à liquidação de IVA, quando o facto tributário subjacente a estas – rendas relativas ao arrendamento de “nuas paredes” - dele se encontrava isento (como, de resto, a este respeito, as partes convergem), nos termos do n.º 29 do artigo 9º do CIVA.

 

Ora, do teor da “Fatura n.º 153”, no valor negativo de € 44.712,00, expressamente decorre que, através da mesma se pretendia anular o IVA erroneamente liquidado e contido nas faturas n.ºs  103, 104, 105, 106, 110, 111, 113, 114,119, 120, 123, 124, 125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 136, 137, 141, 142, 143, 144, 145 e 146.

 

Não obstante os termos efetivamente inusitados e atípicos revestidos por tal “fatura”, a qual objetivamente se afasta daquele que se entende serem os seus elementos caraterizadores, os quais se devem apreender da conjugação do artigo 29º, n.º 1 , al. b) e n.º 5 do artigo 36º, ambos do CIVA e os quais se reconduzem a um documento fiscal obrigatório que titula e comprova a transmissão de bens ou prestação de serviços, contendo a descrição da operação económica, o respetivo valor tributável e, quando aplicável, o imposto liquidado, constituindo o elemento formal que dá expressão à obrigação de liquidação de IVA (ou da isenção, não sujeição).

 

Assim, a lógica do acervo normativo a que se alude assenta na existência de uma operação (tributável ou não) com valor económico positivo, destinando-se a documentar operações onerosas, refletindo o seu respetivo valor económico, ao mesmo tempo que assegura a rastreabilidade da operação e servindo de suporte à dedução (sempre que aplicável) do imposto pelo adquirente.

 

Ora, no caso dos autos, está-se antes, não perante uma fatura que titule qualquer venda de bens ou prestação de serviços da Requerente ao arrendatário, mas antes perante um documento pelo qual aquele pretende retificar o IVA incorretamente liquidado a este, pelo que, atento o disposto no n.º 7 do artigo 29º do CIVA – “ Quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura” – e o preceituado no n.º 6 doa artigo 36º do CIVA – “As guias ou notas de devolução e outros documentos retificativos de faturas devem conter, além da data e numeração sequencial, os elementos a que se refere a alínea a) do número anterior, bem como a referência à fatura a que respeitam e as menções desta que são objeto de alterações.” 

 

Não poderia, pelo exposto, a operação em causa deixar de corresponder a um documento retificativo de fatura, como a «nota de crédito» enquanto documento respeitante à anulação do IVA liquidado pela Requerente e suportado pelo seu destinatário.   

 

Sem prejuízo de tal errónea nomenclatura utilizada, não menos certo é que o documento intitulado por «fatura» expressa de forma clara e objetiva a operação que a sua emissão pretende titular: a anulação do IVA liquidado nas faturas aí identificadas, contendo aquelas que são as informações que deveriam constar de uma «nota de crédito».

 

Assim e em rigor, a “fatura n.º 153” configura não uma «fatura» mas antes, no dizer da norma, um «documento retificativo de fatura» (vide n.º 6 do artigo 36º do CIVA), isto é, um documento que em termos materiais tem acolhimento no texto legal, enquanto elemento-base para efeitos de refletir determinada operação, in casu, a retificação de faturas emitidas (e contabilizadas).

 

Com efeito, a circunstância de o documento ter sido erradamente intitulado como “fatura” e de não ter sido registado no E-Fatura não deve obstar, por si só, ao exercício do direito à regularização, uma vez que o critério legal – logo o único relevante - não se centra na formalidade estrita do documento emitido, mas antes no preenchimento do requisito substantivo consagrado no artigo 78.º, n.º 5 do CIVA, isto é, a demonstração de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto liquidado em excesso. 

 

Conforme resulta da jurisprudência consolidada do TJUE (v. g., acórdãos Barlis, Senatex e Vadan) a prevalência das exigências materiais sobre os requisitos formais constitui expressão direta dos princípios estruturantes do sistema comum do IVA, nomeadamente o princípio da neutralidade e a proibição de formalismo desproporcionado, razão pela qual não pode ser recusado um direito quando estão reunidos os elementos substantivos exigidos pela lei.

 

Nesta medida, a eventual desconformidade documental — como a nomenclatura inadequada do documento ou a ausência de inserção no Efatura, tal como invocadas pela Requerida — poderão configurar, na melhor das hipóteses, como irregularidades meramente formais, eventualmente suscetível de valoração contraordenacional, mas sem qualquer interferência na validade substancial da regularização efetuada. 

 

Não cabendo, evidentemente, no âmbito dos poderes e competências deste tribunal arbitral apreciar ou sancionar tais aspetos formais à luz do regime sancionatório tributário aplicável, tanto mais que esse controlo contraordenacional obedece a procedimento próprio, distinto e autónomo daquele que aqui se aprecia. 

 

Resulta da prova produzida — documental e também do depoimento do arrendatário — que este teve então conhecimento da regularização do IVA liquidado em excesso a ser levada a efeito pela Requerente.

 

A testemunha confirmou que, em 2018, o valor em causa já se encontrava compensado no âmbito da relação contratual estabelecida com a Requerente, por via de encontro de contas relativo a faturas vencidas naquele ano, demonstrando plena ciência quanto ao teor da retificação e às faturas por ela abrangidas. Assim, a intervenção consciente do adquirente e a sua anuência quanto à compensação contabilístico-financeira — expressamente admitida no RIT — revelam um conhecimento direto, real e efetivo da retificação tributária operada pela Requerente, o que satisfaz, sem margem para dúvida, o requisito estabelecido no artigo 78.º, n.º 5 do CIVA.

 

Acresce que a análise da contabilidade e do extrato de conta-corrente do arrendatário confirma — de forma objetiva — que o acerto financeiro decorrente da retificação fiscal se encontrava refletido no saldo remanescente da relação contratual entre as partes no final de 2018. 

 

A contabilidade demonstra uma compensação efetiva, efetivada e já repercutida nos valores faturados após o período em análise, evidenciando que o arrendatário dispunha de informação suficiente e detalhada para compreender o modo como tal correção operou.

 

Da conjugação dos elementos documentais resulta uma situação de real conhecimento dos termos em que a retificação e consequente regularização, de modo que a AT, dispondo destes elementos, não poderia ignorar a verificação do pressuposto legal atinente a tal conhecimento do arrendatário sobre regularização a levar a efeito pela Requerente.

 

Neste contexto, o requisito do artigo 78.º, n.º 5 do CIVA não pode ser interpretado de forma formalista nem restritiva, impondo-se que se valorize a substância da operação e não o formalismo documental adotado. 

 

O legislador não exige, imprescindivelmente, a restituição imediata e direta do imposto ao adquirente, mas apenas que este tenha tomado conhecimento da retificação ou que tenha sido reembolsado, constituindo estas duas hipóteses condições alternativas; e não cumulativas.

 

Ora, estando demonstrado que o arrendatário tomou conhecimento da retificação e aceitou a compensação efetuada, cumpre-se o requisito legal e afasta-se qualquer alegação de ilegalidade ou de ameaça à neutralidade fiscal. 

 

Aqui chegados e não perdendo de vista o supra exposto, nomeadamente, em matéria jurisprudencial, não poderemos deixar de entender que a ratio legis subjacente a esta regularização, é, tão-só, evitar que o sujeito passivo regularize a seu favor, com fundamento na anulação total ou parcial da(s) fatura(s), o montante de IVA que tenha liquidado e simultaneamente que o cliente/adquirente não tenha conhecimento sobre tal retificação, o que, desde logo, inviabilizaria (em termos práticos) a concomitante retificação em matéria de imposto a operar entre estes.

 

Ademais, há que ter presente que “[a] interpretação e aplicação do disposto no artigo 71º[atual artigo 78º, no essencial, com idêntica redação], nº5 do CIVA não pode ficar alheia às especificidades de cada situação concreta, sob pena de permitirmos que exigências excessivamente formalistas coloquem em casa a própria neutralidade do imposto, posto que não se levantem questões de abuso e evasão fiscal”, conforme explanado no processo deste TCAS nº 06570/13, datado de 15 de dezembro de 2016[4].

 

Ora, não se afigura que no caso dos autos seja configurável tal perigo de abuso, por indevida «duplo benefício», isto é, por parte do arrendatário e da Requerente, ante o acervo probatório vindo de se dar por assente – compensação consumada durante o ano de 2018.

 

Do supra expendido dimana inequívoco que a prova carreada aos autos é suficiente e conforme com as exigências legais contempladas no citado normativo, logo a correção operada pela AT é carecida de apoio legal, na medida em que a Requerente, não obstante a irregularidade ao nível da nomenclatura utilizada para efeitos de retificação do valor de faturas anteriormente emitidas e contabilizadas, logrou dar conhecimento ao arrendatário/adquirente daquelas, pelo que estavam reunidos as legais condições que legitimavam a que a Requerente procedesse à regularização em 2018.

 

Relativamente aos demais fundamentos da AT — inexistência de comunicação no E-Fatura decorrente dos termos – valor negativo assumido pela fatura - e omissão de registo dos aditamentos contratuais previstos no artigo 60.º do CIS — tais irregularidades revestirão, quando muito, relevância para efeitos contraordenacionais, enquanto práticas potencialmente infratoras do legalmente estatuído nos invocados normativos.  

 

Com efeito, tais eventuais infrações são inócuas quanto à aferição da legalidade da regularização, pois as mesmas não integram os requisitos tipificados pelo legislador para efeitos de regularização do imposto, tal como decorre do teor do artigo 78.º, n.º 5 do CIVA, nem colocando em causa o direito a que se respeita o artigo 98.º, n.º 2 do CIVA. 

 

Atento a fundamentação vinda de expender, não podemos deixar de aqui citar o expendido pela pelo TCAS, no âmbito do processo n.º 325/19.1BELRA, de 14.03.2024[5]:

I - Constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça e recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham omitido certos requisitos formais, sendo que a posse de uma factura com as menções previstas no artigo 226º da Directiva IVA constitui um requisito formal e não um requisito material do direito à dedução do IVA.

II - Assim, não poderá ser recusado o direito à dedução do IVA pelo simples facto de uma factura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226º, ponto 6, da Directiva IVA, se existirem dados suficientes para verificar se os requisitos materiais relativos a esse direito estão preenchidos, pois que a aplicação estrita do requisito formal de apresentar facturas colidiria com os princípios da neutralidade e da proporcionalidade, uma vez que teria por efeito impedir de maneira desproporcionada o sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal relativa às suas operações, sendo que, naturalmente, cabe ao sujeito passivo que pede a dedução do IVA provar que preenche os requisitos para dela beneficiar.

 

No caso dos autos, resulta inteiramente aplicável a orientação jurisprudencial firmada pelo TJUE e acolhida de forma consistente pelo Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual o princípio da neutralidade do IVA impõe que a dedução do imposto seja admitida sempre que os requisitos materiais se encontrem preenchidos, não podendo, por princípio, meras desconformidades formais obstar ao exercício de um tal direito tido como essencial para o funcionamento do imposto. 

 

Com efeito, a exigência de observância das menções previstas no artigo 226.º da Diretiva IVA – e, por identidade de razão, das formalidades previstas nos artigos 36.º do CIVA assume natureza estritamente formal, não constituindo requisito material do direito à dedução.

 

Assim, não pode ser recusado o direito à regularização do IVA pelo simples facto de a “fatura n.º 153” não apresentar a nomenclatura típica de uma «nota de crédito» enquanto outro documento retificativo de fatura ou pela circunstância de o seu valor ser “negativo” e nessa medida ser insuscetível de submissão no E-Fatura, desde que, como sucede in casu, se encontrem demonstrados os pressupostos materiais exigidos pela lei, designadamente o conhecimento pelo destinatário da retificação do imposto liquidado por banda da Requerente. 

 

Fazer prevalecer in casu o cumprimento estrito de formalidades acessórias, em detrimento do princípio da dedução e em concreto da correção do imposto, seria colidir com os princípios da proporcionalidade e da neutralidade do IVA, violando aquele que é o sentido da Diretiva e o entendimento consolidado da jurisprudência nacional e europeia nesta matéria.

 

Assim sendo, demonstrado que está que o arrendatário tomou pleno conhecimento da retificação efetuada – o que satisfaz o critério legal previsto no artigo 78.º, n.º 5 do CIVA – e ante a ausência de qualquer elemento que possa indiciar um quadro de abuso fiscal por parte dos intervenientes (Requerente e arrendatário) por via de tal operação, inexiste fundamento jurídico para obstar à regularização efetuada, impondo-se reconhecer a existência de vício de violação de lei, consubstanciado em erro sobre os pressupostos de facto e de direito e, em consequência, dar provimento ao  pedido de anulação da correção arbitralmente impugnada e relevada na liquidação adicional objeto nestes autos.

 

2. Pedido de restituição da quantia indevidamente não reembolsada e do pagamento de juros indemnizatórios

 

A Requerente formula pedido de restituição da quantia indevidamente não reembolsada e ainda o pagamento pela AT de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º da LGT.

 

De harmonia com o disposto na al. b) do art.º 24 do RJAT e no art.º 100 da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29 do RJAT), a decisão arbitral favorável à pretensão do sujeito passivo vincula a AT a restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos necessários para o efeito, tendo em vista garantir a imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios.

 

No entanto, importa ter presente que, ao contrário de outros litígios, esta lide se funda em liquidação que não apurou qualquer pagamento de imposto, na medida em que da mesma resultou antes um valor a reembolsar, pese embora de valor inferior ao anteriormente solicitado na DP, por via das correções inspetivamente apuradas – no caso, no montante de € 105.000,00.

 

Por subsunção ao caso dos autos vertentes e por se acompanhar o entendimento vertido no âmbito do processo arbitral n.º 781/2020-T, proferido no âmbito do CAAD, não podemos deixar de deixar citado e assim incorporar o aí decidido, no que a esta concreta matéria diz respeito:

“…sem prejuízo de a jurisprudência arbitral reiteradamente afirmar a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT, interessa considerar que, na situação concreta dos autos, a consequência da liquidação indevida de IVA não se materializou num pagamento adicional suscitado pelo ato tributário, antes, na anulação indevida do crédito de imposto que a Requerente havia reportado nas suas declarações periódicas de IVA e cujo reembolso havia solicitado, repercutindo-se a jusante na decisão deste procedimento de reembolso.

Tratando-se de quantia pendente de reembolso, objeto de um procedimento administrativo próprio, rege, nesta matéria, a norma especial prevista no artigo 22.º, n.º 8 do Código do IVA, segundo a qual:

“8 – Os reembolsos de imposto, quando devidos, devem ser efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira até ao fim do 2.º mês seguinte ao da apresentação do pedido ou, no caso de sujeitos passivos que estejam inscritos no regime de reembolso mensal, até aos 30 dias

posteriores ao da apresentação do referido pedido, findo os quais podem os sujeitos passivos

solicitar a liquidação de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da lei geral tributária.”

Assim, o pedido de juros indemnizatórios deriva do atraso no processo de reembolso de IVA e tem direta conexão com este, pelo que a sua apreciação deve ser efetuada em sede própria, que é a do respetivo procedimento de reembolso (cuja “reabertura” deriva da anulação do ato tributário de liquidação de IVA).

Esta questão não pode ser conhecida e apreciada por este Tribunal Arbitral, por não se incluir nas pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação (ou em pretensões meramente acessórias ou dependentes desta), atenta a delimitação da competência material desta jurisdição constante do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, podendo ser sindicada nos Tribunais Tributários sob a forma processual de ação administrativa.

Solução idêntica é aplicável ao pedido de restituição da quantia não reembolsada, que implica, de igual modo, uma decisão do pedido de reembolso pela Requerida e não flui diretamente da anulação da liquidação de IVA (embora esta, naturalmente, tenha consequências inevitáveis nessa decisão).”  

 

Aderindo-se in totum a tal entendimento, não poderão deixar de se relegar para a fase de execução da presente decisão as questões relativas ao pedido de restituição da quantia não reembolsada e aos respetivos juros indemnizatórios não obstante, em face do juízo de ilegalidade quanto à liquidação adicional arbitralmente impugnada que da presente decisão dimana, não poder deixar de precipitar um eventual acerto relativo ao quantum, a apurar em sede de execução, e o inerente direito a juros indemnizatórios.    

 

V.           Decisão:

 

Nestes termos e com a fundamentação que se deixa supra explanada, decide este tribunal arbitral:

a)    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente, declarar ilegal e anular, por vício de violação de lei, consubstanciado em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, a liquidação adicional de IVA de 202309T, com o n.º 2024...;

b)    Não conhecer dos pedidos dependentes relativos à restituição da quantia não reembolsada e a juros indemnizatórios, cuja sede própria é a da execução da presente decisão pela Requerida; 

c)     Condenar a Requerida nas custas pelo decaimento sofrido nestes autos. 

 

VI. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º A n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 44.712,00 (quarenta e quatro mil setecentos e doze euros), valor atribuído pela Requerente, não impugnado pela Requerida.

 

VII. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 2.142,00 (dois mil quatrocentos e doze euros), a cargo da Requerida

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de novembro de 2025.

 

 

O Árbitro, 

                                                      

(Luís Sequeira)

 

 

 



[1] Disponíveis em www.dgsi.pt

[2] Cfr. Xavier Basto, Lisboa 1991, A Tributação do Consumo e a sua coordenação internacional, p.41.

[3] Disponíveis em www.curia.europa.eu

[4] Disponível em www.dgsi.pt

[5] Disponível em www.dgsi.pt