Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 291/2025-T
Data da decisão: 2025-11-18  IVA  
Valor do pedido: € 295.515,57
Tema: Contribuição Financeira do Acordo APIFARMA - IVA - Redução do valor tributável.
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SUMÁRIO:

 

1. A contribuição devida ao SNS pelas empresas farmacêuticas aderentes ao Acordo APIFARMA tem como fonte um contrato administrativo e é distinta da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, não partilhando da natureza tributária desta última, ainda que ambas prossigam objectivos de sustentabilidade do sistema de saúde público. 

 

2. O cumprimento da obrigação de contribuição ao abrigo do Acordo APIFARMA implica a diminuição do valor a receber pela Requerente pela venda de medicamentos a entidades do SNS e apresenta nexo directo com essas operações.

 

3. A redução, formalizada por nota de crédito, dos valores a receber pela Requerente em relação à venda de medicamentos a entidades do SNS, no âmbito do Acordo APIFARMA, constitui uma redução do valor tributável das operações de comercialização dos medicamentos, para efeitos de IVA, atento o disposto nos artigos 16.º, n.º 6, alínea b) e 78.º, n.º 2 do Código do IVA, interpretados em consonância com as normas fonte constantes dos artigos 73.º, 79.º e 90.º da Directiva IVA.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros signatários, Alexandra Coelho Martins (Presidente) e Arlindo José Francisco e Martins Alfaro (Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam em proferir a seguinte decisão arbitral:

I - RELATÓRIO

 

A..., LDA., adiante designada por Requerente, com sede em .., na Rua ... n.º ..., ..., e número de identificação fiscal ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral contra a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, adiante designada por Requerida, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º, 15.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, impugnando a liquidação adicional de IVA e juros compensatórios n.º 2024..., relativa ao período de 2020/11, bem como as respectivas demonstrações de acerto de contas, no montante global de € 295.515,57.

 

A Requerente sustenta, em síntese, que as notas de crédito emitidas em Novembro de 2020, ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica, conhecido como Acordo APIFARMA, consubstanciam verdadeiras reduções de preço das vendas de medicamentos efectuadas às entidades do Serviço Nacional de Saúde, determinando, nos termos do artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA e dos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA, a obrigatoriedade de redução do valor tributável e a consequente regularização, a seu favor, do IVA anteriormente liquidado nessas operações.

 

A Requerida defende, em síntese, que os pagamentos efectuados ao abrigo do Acordo APIFARMA configuram uma contribuição financeira equiparável, nos seus efeitos materiais, à Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), prevista no artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, e que, por isso, se trata de uma operação fora do âmbito de incidência do IVA, não havendo lugar à redução do valor tributável nem à regularização do imposto.

 

1.     Tramitação processual

 

Do procedimento administrativo e das peças processuais juntas aos autos resulta que:

a) No âmbito da ordem de serviço externa n.º OI2023..., relativa ao exercício de 2020, os Serviços de Inspecção Tributária elaboraram relatório final do procedimento de inspecção tributária no qual, entre outras questões, concluíram pela indevida regularização, a favor da Requerente, do IVA contido em notas de crédito emitidas em 2020 ao abrigo do Acordo APIFARMA, no montante de € 257.042,32, propondo a correspondente liquidação adicional de imposto e juros compensatórios.

 

b) Com base nesse Relatório, foi emitida a liquidação adicional de IVA e juros compensatórios n.º 2024..., relativa ao período de Novembro de 2020, no montante global de € 295.515,57, conforme demonstrações de acerto de contas juntas aos autos.

 

c) A Requerente procedeu ao pagamento integral daquele montante em 20-12-2024.

 

d) Dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT, contados do termo do prazo de pagamento voluntário, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, dando assim origem ao presente processo.

 

e) O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, que notificou a AT.

 

f) O Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros que compõem o presente Tribunal Arbitral Colectivo, os quais aceitaram o encargo, não tendo as partes manifestado oposição.

 

g) A Requerida apresentou Resposta, na qual sustentou as correcções constantes do relatório final do procedimento de inspecção tributária e pugnou pela manutenção da liquidação impugnada.

 

h) Foi junto aos autos o processo administrativo, incluindo o relatório final do procedimento de inspecção tributária, a documentação relativa ao Acordo APIFARMA e respectivas declarações de adesão, as comunicações da APIFARMA à Requerente, a listagem das notas de crédito emitidas e dos movimentos de conta-corrente com os hospitais do SNS, bem como comprovativos de pagamento.

 

i) Realizou-se reunião do Tribunal Arbitral nos termos do artigo 18.º do RJAMT, na qual foram inquiridas as testemunhas indicadas pela Requerente.

 

j) As partes apresentaram alegações escritas, reiterando no essencial as posições anteriormente assumidas.

 

2.     Saneamento

 

O Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, porquanto o pedido se dirige à apreciação da legalidade de actos de liquidação de IVA e juros compensatórios, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAMT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas, em conformidade com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAMT.

 

O pedido de pronúncia arbitral mostra-se tempestivo, por ter sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, contado do termo do prazo de pagamento voluntário da liquidação impugnada, circunstância que, aliás, não é controvertida nos autos.

 

Com as suas alegações escritas, a Requerente requereu a junção aos autos de cópia das decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.º 12/2025-T, n.º 149/2025-T e n.º 133/2025-T e da Circular n.º 20/2025/ACSS/INFARMED.

O Tribunal admite a junção dos referidos documentos, por supervenientes, ao abrigo do artigo 423.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi o artigo 29.º do RJAMT.

 

Não se descortinam nulidades processuais que obstem ao conhecimento do mérito, nem foram suscitadas excepções dilatórias de que cumpra conhecer.

 

 

II - FACTOS

 

1.     Factos provados

 

Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade que tem por objecto social a produção, importação, exportação, armazenagem, distribuição por grosso de dispositivos médicos e artigos eléctricos e electrónicos e, em geral, a comercialização de produtos farmacêuticos e meios de diagnóstico, desenvolvendo a sua actividade em Portugal. Este facto resulta da certidão do registo comercial junta pela Requerente, bem como do teor da petição inicial e do relatório final do procedimento de inspecção tributária, não tendo sido impugnado pela Requerida.

 

  1. Em sede de IVA, a Requerente é um sujeito passivo enquadrado no regime normal de periodicidade mensal, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA. Este enquadramento decorre da informação constante do RIT e do sistema da AT, sem controvérsia.

 

  1. A Requerente é empresa da indústria farmacêutica associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA). Tal facto resulta quer da informação constante do RIT, quer da consulta pública da lista de associados da APIFARMA.

 

  1. A Requerente é titular de autorizações de introdução no mercado de diversos medicamentos de uso humano e vende, em volume significativo, medicamentos a entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde, designadamente hospitais públicos, emitindo, por essas transmissões, facturas com IVA liquidado à taxa reduzida de 6 %, ao abrigo da verba 2.5 da Lista I anexa ao Código do IVA. Este facto resulta do RIT, da documentação contabilística e das declarações periódicas de IVA e não foi colocado em causa pela Requerida.

 

  1. Em 15-03-2016 foi celebrado um Acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde, e a Indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA, relativo ao triénio 2016-2018, doravante Acordo APIFARMA, que fixa objectivos de despesa pública com medicamentos e prevê uma contribuição financeira da indústria no valor de € 200.000.000,00, com possibilidade de acréscimo, bem como a obrigação, pelo Estado, de pagamento de dívidas vencidas às empresas aderentes. Este facto resulta do texto do Acordo junto ao processo administrativo e foi aceite por ambas as partes.

 

  1. O Acordo APIFARMA foi objecto de aditamento em 03-02-2017, mantendo, com pequenas adaptações, a disciplina anterior, e foi sucessivamente prorrogado, passando a aplicar-se, com as adaptações constantes das cláusulas únicas respectivas, aos anos de 2019 e 2020, mantendo o valor global da contribuição anual e remetendo, para efeitos de repartição da contribuição pelas empresas aderentes, para as percentagens da CEIF em vigor.

 

  1. Ao abrigo do artigo 5.º do regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, aprovado pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, as entidades que adiram, individualmente e sem reservas, ao acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica beneficiam de isenção da CEIF, isenção essa condicionada ao cumprimento das obrigações assumidas no Acordo.

 

  1. A Requerente aderiu ao Acordo APIFARMA, mediante declaração de adesão subscrita e junta ao processo administrativo, assumindo a obrigação de efectuar uma contribuição financeira anual proporcional à despesa do SNS com os seus medicamentos e de efectuar essa contribuição, designadamente, através da emissão de notas de crédito a favor das entidades do SNS, com compensação de facturas vencidas e não pagas, ou, em alternativa, por transferência bancária a favor da ACSS, I.P.

 

  1. Nos termos das comunicações anuais da APIFARMA, a Requerente foi informada, para o ano de 2020, do montante da sua contribuição ao abrigo do Acordo, calculada com base em dados fornecidos pelo INFARMED relativos à despesa pública com medicamentos, ascendendo esse montante a € 10.201.137,00, do qual € 5.875.668,15 foram concretizados, no que aqui releva, por emissão de notas de crédito a hospitais do SNS em 2020 e 2021, e o remanescente, incluindo acertos, em 2023, sendo abatidos custos de I&D e atendido o IVA à taxa de 6 %.

 

  1. Em execução do Acordo APIFARMA e da respectiva declaração de adesão para 2020, a Requerente optou, relativamente a parte da contribuição, pela emissão de notas de crédito a favor de hospitais do SNS, titulando reduções de montantes em dívida por fornecimentos de medicamentos, sendo essas notas de crédito compensadas com facturas mais antigas vencidas e não pagas, segundo uma lógica de first in first out.

 

  1. As notas de crédito emitidas em 2020 ao abrigo do Acordo APIFARMA contêm menção expressa a esse Acordo, ao período a que respeitam (Acordo 2020) e indicam, para cada hospital, um montante em euros com discriminação de base tributável e IVA à taxa reduzida de 6 %, sendo as respectivas bases e imposto inscritas, a negativo, nos campos 1 e 2 da declaração periódica de IVA de Novembro de 2020.

 

  1. Em particular, em Novembro de 2020, a Requerente emitiu notas de crédito, com o descritivo “No âmbito do Acordo de 2020”, num total de € 4.541.080,99, correspondentes a uma base tributável de € 4.284.038,67 e a IVA liquidado de € 257.042,32, montantes estes que foram deduzidos, a negativo, nos campos 1 e 2 da declaração periódica de IVA desse mês, regularizando a favor da Requerente o IVA anteriormente liquidado nas facturas de fornecimento de medicamentos às entidades do SNS.

 

  1. As notas de crédito referidas no facto anterior foram emitidas a favor de entidades do SNS que eram devedoras da Requerente por fornecimentos de medicamentos, tendo o respectivo valor sido imputado, em conta-corrente, a facturas mais antigas em aberto, reduzindo, na exacta medida do valor das notas de crédito, o montante em dívida de cada entidade e, consequentemente, a contrapartida que a Requerente receberia pelos medicamentos anteriormente fornecidos. Tal resulta das listagens de conta-corrente e dos documentos hospitalares anexos, bem como dos depoimentos testemunhais prestados, que o Tribunal considerou credíveis por se mostrarem coerentes e conformes aos documentos.

 

  1. Em consequência da emissão dessas notas de crédito, a Requerente deixou de receber, das entidades do SNS em causa, uma parte do preço dos medicamentos por si fornecidos, correspondente, em 2020, a € 4.284.038,67 de base e € 257.042,32 de IVA, que anteriormente tinha sido liquidado e entregue ao Estado. Este facto resulta das mesmas listagens de conta-corrente, das declarações periódicas de IVA e não é contrariada por qualquer elemento probatório.

 

  1. O Relatório de Inspecção concluiu que a Requerente regularizou indevidamente, a seu favor, o valor de € 257.042,32 de IVA relativo às notas de crédito emitidas no âmbito do Acordo APIFARMA, por entender que tais notas de crédito não consubstanciam descontos ou abatimentos do preço, mas antes o pagamento de uma contribuição financeira que se encontra fora do campo de incidência do IVA, propondo, por isso, a correcção daquele valor no campo 2 da declaração periódica de Novembro de 2020.

 

  1. Na sequência dessas correcções, foi emitida a liquidação adicional de IVA e juros n.º 2024..., relativa ao período de 2020/11, que apurou imposto adicional no montante de € 257.042,32 e juros compensatórios no montante de € 38.473,25, perfazendo o total de € 295.515,57.

 

  1. O montante de € 295.515,57, atrás referido, foi pago pela Requerente em 20-12-2024, conforme o documento junto pela Requerente sob o n.º 9.

 

  1. Durante o procedimento de inspecção tributária, foi ainda identificada a falta de liquidação de IVA em certas importações, no montante de € 18.141,95, tendo a Requerente desencadeado procedimento de regularização voluntária, entregando declarações de substituição e liquidando aquele imposto, com direito à dedução simultânea, pelo que, quanto a essa matéria, se considera regularizada a situação tributária, não sendo objecto do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. O objecto do presente pedido de pronúncia arbitral circunscreve-se, assim, à legalidade da liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios na parte que resulta da não aceitação, pela AT, da regularização, a favor da Requerente, do IVA contido nas notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo APIFARMA, no montante de € 257.042,32.

 

  1. O prazo para pagamento voluntário da liquidação impugnada terminou em 24-12-2024 - Documento n.º 8, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 24-03-2025 - Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

  1. O Tribunal foi constituído em 03-06-2025 - Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

 

 

2.     Factos não provados

 

Não se consideram provados quaisquer outros factos alegados pelas partes que contrariem ou ponham em causa os factos acima elencados, designadamente não resultou demonstrado que as notas de crédito emitidas pela Requerente no âmbito do Acordo APIFARMA não tivessem sido imputadas a facturas concretas de fornecimento de medicamentos às entidades do SNS, nem que não tivessem determinado uma efectiva redução das quantias a pagar por essas entidades à Requerente.

 

 

3.     Motivação da decisão da matéria de facto

 

A convicção do Tribunal formou-se com base na análise crítica e conjugada do processo administrativo, do relatório final do procedimento de inspecção tributária, dos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

 

Cada um dos factos provados foi ancorado em elementos documentais específicos, expressamente indicados na respectiva enunciação, que o Tribunal considerou fidedignos e coerentes entre si, não tendo sido produzida prova em sentido contrário.

 

A natureza e enquadramento da Requerente (factos 1 a 4) resultam do RIT, da certidão comercial e das declarações de IVA; a existência, conteúdo e vigência do Acordo APIFARMA e respectivos aditamentos (factos 5 a 7) decorrem dos textos contratuais juntos pela Requerida e pela Requerente; a adesão da Requerente ao Acordo e a forma de concretização da contribuição (factos 8 a 14) derivam das declarações de adesão, das comunicações da APIFARMA, da listagem de notas de crédito, dos movimentos de conta-corrente e das declarações das testemunhas, sendo tudo isto confirmado pela própria fundamentação constante do RIT.

 

A quantificação das notas de crédito e das correcções efectuadas (factos 12 a 16) está detalhada no RIT e nas demonstrações de acerto de contas; o pagamento da liquidação (facto 17) resulta do documento junto pela Requerente sob o n.º 9; a delimitação do objecto do litígio (factos 18 e 19) resulta do teor do pedido de pronúncia arbitral e da própria fundamentação da Requerente e da Requerida; por fim, os factos 20 a 22 resultam directamente do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

 

III - DIREITO

 

1.     Questões a decidir

 

A questão central a decidir consiste em saber se o pagamento da contribuição financeira devida pela Requerente ao abrigo do Acordo APIFARMA, concretizado, no que aqui releva, através da emissão de notas de crédito a favor de entidades do SNS suas devedoras, que reduzem os montantes em dívida por fornecimentos de medicamentos e cujo valor é repercutido na declaração periódica de IVA mediante a redução, a favor da Requerente, do valor tributável e do imposto anteriormente liquidado, consubstancia ou não uma redução do valor tributável, para efeitos dos artigos 16.º, n.º 6, alínea b), e 78.º, n.º 2, do Código do IVA, interpretados em conformidade com os artigos 73.º, 79.º e 90.º da Directiva IVA.

 

Em função da resposta a essa questão principal, importará apreciar:

 

a) Se a liquidação adicional de IVA e juros sindicada enferma de ilegalidade, por violação do direito interno e da Directiva IVA, bem como dos princípios da neutralidade, da igualdade de tratamento e da prevalência da substância sobre a forma;

b) Se existe fundamento para condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre as quantias indevidamente pagas pela Requerente;

c) A repartição de custas e a fixação do valor do processo.

 

2.     Enquadramento normativo

 

2.1. Direito nacional

 

Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA, estão sujeitas a imposto as transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal.

 

O artigo 16.º, n.º 1, do Código do IVA estabelece que o valor tributável das transmissões de bens é constituído pelo valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.

 

Dispõe o artigo 16.º, n.º 6, alínea b), que não se incluem no valor tributável “os descontos e bónus concedidos ao adquirente e ao destinatário dos bens ou serviços e que sejam directamente relacionados com a operação em causa”.

 

O artigo 78.º, n.º 2, do Código do IVA prevê que, “em caso de anulação, resolução ou rescisão do contrato, de recusa total ou parcial ou de redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é, também, reduzido em conformidade, devendo o imposto ser regularizado”.

 

Nos termos do artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, foi aprovado o regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), que, no seu artigo 1.º, cria uma contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica incidindo, em síntese, sobre o volume de vendas de determinados medicamentos.

 

O artigo 5.º do regime da CEIF prevê a possibilidade de celebração de um acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS, fixando objectivos de despesa pública com medicamentos e estabelecendo, no seu n.º 2, que ficam isentas da CEIF as entidades que adiram, sem reservas, a esse acordo, mediante declaração do INFARMED.

 

2.2. Direito da União Europeia

 

A Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (Directiva IVA), estabelece, no artigo 73.º, que “nas transmissões de bens e nas prestações de serviços [...] o valor tributável é constituído por tudo aquilo que constitua a contrapartida obtida ou a obter pelo fornecedor ou prestador, da parte do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”.

 

O artigo 79.º, alínea b), da Directiva IVA determina que não se incluem no valor tributável os descontos de preço efectuados quando a operação é realizada.

 

O artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA estabelece que, “em caso de anulação, rescisão, resolução ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros”.

 

Segundo a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça da União Europeia, estes preceitos concretizam o princípio da contraprestação efectiva, corolário do princípio da neutralidade do IVA, segundo o qual a base de incidência do imposto deve corresponder ao valor efectivamente recebido pelo sujeito passivo e não pode abranger quantias que este, em definitivo, não venha a receber.

 

O Tribunal de Justiça estabeleceu, desde o acórdão Elida Gibbs (processo C-317/94, de 24 de Outubro de 1996),[1] que o princípio da neutralidade do IVA impõe que a matéria colectável seja reduzida quando o fabricante, não estando contratualmente vinculado ao consumidor final, mas sendo o primeiro elo da cadeia de operações, lhe concede descontos pós-venda, por intermédio de retalhistas ou grossistas.

 

Nesse acórdão, o Tribunal considerou que “a administração fiscal não pode, em definitivo, cobrar um montante superior ao que foi pago pelo consumidor final” (n.º 24) e que, para garantir a neutralidade, “a matéria colectável aplicável ao fabricante enquanto sujeito passivo deve ser constituída pelo montante correspondente ao preço a que vendeu as mercadorias aos grossistas ou aos retalhistas, diminuído do valor dos cupões” (n.º 29).

 

Nos acórdãos Boehringer Ingelheim Pharma (processo C-462/16)[2] e Boehringer Ingelheim RCV (processo C-717/19),[3] o Tribunal de Justiça decidiu, em síntese, que quando uma empresa farmacêutica, após a venda de medicamentos a um preço determinado, é obrigada, por força de um regime legal, a conceder descontos a organismos de seguro de saúde, que reduzem retroactivamente a contraprestação que efectivamente recebe dessas vendas, se verifica uma redução do preço, para efeitos do artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA, impondo-se a correspondente redução do valor tributável e a regularização do imposto.

 

No acórdão Novo Nordisk A/S (processo C-248/23),[4] o Tribunal de Justiça reiterou que o artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA se aplica igualmente a contribuições financeiras pagas por empresas farmacêuticas a organismos públicos de seguro de saúde, quando essas contribuições determinam que as empresas não recebam, em definitivo, parte da contraprestação acordada pelas vendas de medicamentos, concluindo que a legislação nacional que impeça a redução do valor tributável nessas circunstâncias é incompatível com o direito da União.

 

3.     Apreciação jurídica

 

3.1. Natureza da obrigação decorrente do Acordo APIFARMA e relação com a CEIF

 

A Requerida sustenta que a contribuição paga pela Requerente ao abrigo do Acordo APIFARMA é, na substância, um tributo - contribuição financeira - equiparável à CEIF, entendendo que a emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS constituiria apenas um modo alternativo de pagamento dessa contribuição, equivalente, em efeitos, ao pagamento directo por transferência bancária à ACSS, I.P., pelo que se estaria perante uma operação fora do âmbito de incidência do IVA.

 

Todavia, como já foi amplamente analisado em decisões arbitrais anteriores - designadamente nos processos n.º 644/2024-T, 1217/2024-T, 1080/2024-T, 12/2025-T, 149/2025-T, 133/2025-T e 307/2025-T -, o regime da CEIF e o regime decorrente do Acordo APIFARMA configuram realidades distintas, quer quanto à natureza jurídica, quer quanto ao modo de constituição da obrigação e à sua base de incidência.

 

Com efeito, a CEIF é uma contribuição financeira criada por lei, de fonte pública unilateral, cuja incidência objectiva recai sobre o volume de vendas de certos medicamentos, sendo liquidada pelos sujeitos passivos através de declaração (Modelo 28) e paga por referência ao trimestre a que respeita, tendo a sua receita consignada ao SNS.

 

Já a obrigação que recai sobre as empresas aderentes ao Acordo APIFARMA nasce de um contrato administrativo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, radicando numa adesão voluntária das empresas, não se reconduzindo a uma obrigação tributária preexistente, mas antes a uma obrigação contratual de contribuir para a sustentabilidade do SNS mediante uma contribuição financeira proporcional à despesa pública com medicamentos, cuja concretização pode assumir diversas modalidades - emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS e/ou pagamento por transferência bancária à ACSS, I.P.

 

Além disso, o próprio legislador, ao prever, no artigo 5.º do regime da CEIF, uma isenção para as entidades aderentes ao Acordo, reconheceu que, quando uma empresa adere ao Acordo APIFARMA, a obrigação de pagar a CEIF deixa de se constituir, por força daquela isenção, sendo a contribuição contratual prevista no Acordo um mecanismo alternativo ao tributo, não constituindo assim uma mera modalidade do seu pagamento.

 

Como se salientou, designadamente, na decisão arbitral proferida no processo n.º 1080/2024-T,[5] “a contribuição financeira prestada pela Requerente, ao abrigo do Acordo APIFARMA, não tem natureza tributária e não constitui um mero modo diverso de pagamento da CEIF”. 

 

Acresce que a autonomia entre os dois regimes resulta ainda da própria arquitectura normativa do artigo 5.º do regime da CEIF.

 

Ao prever uma isenção da CEIF para as entidades aderentes ao Acordo, o legislador reconheceu implicitamente que estamos perante institutos distintos: a isenção pressupõe a existência de um facto tributário que deixa de se concretizar por força da adesão a um mecanismo alternativo.

 

Se o Acordo tivesse natureza de mera forma de pagamento da CEIF, seria juridicamente incongruente prever uma isenção desta condicionada àquele.

 

Acresce que o próprio Acordo prevê duas modalidades de cumprimento da contribuição - emissão de notas de crédito ou transferência bancária para a ACSS - o que demonstra que a forma técnica de execução não altera a substância da obrigação.

 

Em ambas as modalidades verifica-se o mesmo efeito económico: a empresa deixa de receber parte do valor dos medicamentos fornecidos ao SNS.

 

Na primeira modalidade, através de redução directa dos créditos sobre os hospitais; na segunda, através de pagamento de quantia calculada em função das vendas.

 

O elemento comum reside na diminuição efectiva da contrapartida, sendo irrelevante, para efeitos de IVA, a modalidade escolhida para concretizar essa diminuição.

 

Deste modo, não procede a equiparação, defendida pela Requerida, entre a contribuição contratual do Acordo APIFARMA e a CEIF, nem se pode qualificar a emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS como simples acto de pagamento de um tributo fora do âmbito de incidência do IVA.

 

3.2. Redução do preço e valor tributável em sede de IVA

 

A questão decisiva é, pois, a de saber se a emissão das notas de crédito pela Requerente, no âmbito do Acordo APIFARMA, determinou ou não uma redução do preço dos medicamentos anteriormente fornecidos às entidades do SNS, com a consequente redução do valor tributável em IVA, na acepção do artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA e do artigo 90.º, n.º 1 da Directiva IVA.

 

Ora, dos factos provados resultou que:

 

i)               as notas de crédito são emitidas a favor de entidades do SNS que adquiriram medicamentos à Requerente; 

ii)             essas notas de crédito são imputadas, em conta-corrente, a facturas concretas, seguindo a regra da antiguidade;

iii)            o seu valor é deduzido às quantias em dívida pelas entidades do SNS, reduzindo o montante que estas efectivamente pagam pelos medicamentos fornecidos;

iv)            a Requerente, em consequência, deixa de receber parte da contraprestação inicialmente facturada;

v)              nas notas de crédito é discriminado IVA à taxa de 6 %, o qual é regularizado na declaração periódica.

 

Assim, a emissão das notas de crédito não se limita a operar um “encontro de contas” abstracto ou um mero pagamento de uma obrigação financeira autónoma, antes actua directamente sobre a relação bilateral de fornecimento de medicamentos, reduzindo, ex post, o preço que as entidades do SNS pagam por esses medicamentos e a contraprestação que a Requerente deles recebe.

 

É precisamente esta situação - em que, depois de efectuada a operação, o sujeito passivo não recebe, em definitivo, parte do preço acordado - que o artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA e o artigo 90.º, n.º 1 da Directiva IVA visam contemplar, impondo que o valor tributável seja reduzido em conformidade, com a consequente regularização do imposto.

 

Dos factos provados resulta demonstrado o nexo directo entre as notas de crédito emitidas e as operações de fornecimento de medicamentos ao SNS.

 

Com efeito: 

(i)             o valor da contribuição anual da Requerente é determinado em função da despesa do SNS com os seus medicamentos; 

(ii)            as notas de crédito são emitidas às mesmas entidades hospitalares que adquiriram os medicamentos; 

(iii)          essas notas são imputadas a facturas concretas de fornecimento, seguindo critério cronológico; 

(iv)          o valor creditado reduz directamente as quantias em dívida por esses fornecimentos.

 

Esta sequência factual não é susceptível de ser compatibilizada com a tese de que as notas de crédito constituem mero instrumento de pagamento de uma obrigação autónoma.

 

Antes demonstra que a Requerente renunciou, em execução do Acordo, a parte da contrapartida inicialmente facturada, numa lógica de redução - retroactiva - do preço das transmissões efectuadas, subsumindo-se assim ao conceito de "redução do preço depois de efectuada a operação", previsto no artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA.

 

A jurisprudência do TJUE é inequívoca ao afirmar que “quando uma parte da contraprestação não é recebida pelo sujeito passivo devido a um desconto que este concede ao adquirente, há uma redução de preço, para efeitos do artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA, devendo o valor tributável ser reduzido nessa medida” (v., por exemplo, acórdão Boehringer Ingelheim Pharma, processo C-462/16, nrs. 41-42).

 

Este princípio foi, de resto, estabelecido de forma pioneira no acórdão Elida Gibbs, anteriormente mencionado, no qual o TJUE decidiu que, quando um fabricante concede descontos pós-venda a consumidores finais através de intermediários, a matéria colectável deve ser reduzida, ainda que o fabricante não esteja contratualmente vinculado ao consumidor final. Como salientou o Tribunal, "num caso como o do processo principal, o fabricante […] recebe, no final da operação, um montante que corresponde ao preço de venda dos seus artigos […] diminuído do valor desses cupões. Não é, por isso, conforme com a directiva que a matéria colectável […] seja mais elevada do que o montante por este recebido a final" (n.º 28).

 

O Tribunal concluiu que "a matéria colectável aplicável ao fabricante enquanto sujeito passivo deve ser constituída pelo montante correspondente ao preço a que vendeu as mercadorias aos grossistas ou aos retalhistas, diminuído do valor dos cupões" (n.º 29).[6]

 

No acórdão Novo Nordisk A/S, o Tribunal de Justiça foi ainda mais claro ao decidir que este regime se aplica mesmo quando a obrigação de pagar uma contribuição tenha fonte legal e o pagamento seja efectuado a um organismo público de seguro de saúde, desde que, em resultado dessa contribuição, a empresa farmacêutica não receba, em definitivo, parte da contrapartida contratada pela venda de medicamentos.

 

Se assim é relativamente a contribuições obrigatórias de fonte legal, com maior razão terá de ser assim relativamente a contribuições de base contratual, como as decorrentes do Acordo APIFARMA, nas quais a relação entre a contribuição e as vendas de medicamentos é ainda mais directa, dado que o valor da contribuição de cada empresa é proporcional à despesa do SNS com os seus medicamentos e é concretizado, em larga medida, por via de notas de crédito imputadas a facturas específicas.

 

Neste contexto, a interpretação propugnada pela Requerida - no sentido de que, quando a Requerente opta por emitir notas de crédito aos hospitais do SNS, essas notas não configuram descontos ou abatimentos do preço, antes se limitando a operar um pagamento da contribuição financeira - contraria frontalmente a realidade económica subjacente, a literalidade dos documentos emitidos, a disciplina do artigo 78.º do Código do IVA e a jurisprudência do TJUE.

 

A interpretação sustentada pela Requerida conduziria, de resto, a consequências incompatíveis com o princípio da neutralidade do IVA, princípio estruturante do sistema comum deste imposto. 

 

Na verdade, a admitir-se a recusa da redução do valor tributável, o imposto deixaria de incidir sobre a contrapartida efectivamente recebida, passando a constituir um encargo definitivo para o operador económico, o que contraria frontalmente a jurisprudência consolidada do TJUE, segundo a qual o IVA não pode onerar o sujeito passivo fornecedor.

 

3.3. A Circular 20/2025/ACSS/INFARMED e coerência do sistema

 

A Circular Normativa Conjunta n.º 20/2025/ACSS/INFARMED reveste particular relevância interpretativa.[7]

 

Nela, os próprios organismos públicos que gerem a despesa hospitalar com medicamentos e a comparticipação estatal (ACSS e INFARMED) qualificam expressamente as notas de crédito emitidas no âmbito do Acordo APIFARMA como “descontos comerciais” que devem ser imputados aos medicamentos a que respeitam, alterando o seu valor, e estabelecem que “a nota de crédito é emitida obrigatoriamente com IVA”.

 

Tal entendimento é perfeitamente coerente com a qualificação jurídico-tributária aqui adoptada: se as notas de crédito representam descontos comerciais que reduzem o preço dos medicamentos para os hospitais do SNS, impõe-se que reduzam, na mesma medida, o valor tributável do IVA, sob pena de o sistema se tornar internamente inconsistente, fazendo incidir IVA sobre um preço superior ao efectivamente pago pelos hospitais e recebido pela Requerente.

 

De resto, como foi sublinhado na jurisprudência arbitral recente, a solução defendida pela Requerida conduziria a uma flagrante violação do princípio da neutralidade do IVA, na medida em que as empresas farmacêuticas aderentes ao Acordo APIFARMA seriam tributadas, em definitivo, por um montante de IVA superior ao que corresponde à contraprestação efectivamente recebida pelos fornecimentos, ao passo que empresas em situações comparáveis, noutros Estados-Membros, beneficiam, por força da jurisprudência do TJUE, da redução do valor tributável em circunstâncias análogas.[8]

 

 

 

 

 

3.4. Princípio da uniformidade; jurisprudência consolidada

 

O artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil impõe ao julgador o dever de ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, sendo que a aplicação da referida norma reveste particular relevância quando está em causa a aplicação de direito da União Europeia com jurisprudência consolidada do TJUE, devendo os tribunais nacionais assegurar a aplicação uniforme do direito comunitário no território nacional.

 

A isto acresce que, no presente domínio, existe já um corpo significativo e coerente de jurisprudência arbitral que decidiu, em sentido favorável às empresas farmacêuticas, a questão da regularização do IVA em situações em tudo comparáveis à dos presentes autos.

 

Com efeito, as decisões arbitrais do CAAD proferidas nos processos n.º 216/2023-T,[9] 644/2024-T,[10] 1217/2024-T,[11]  877/2024-T,[12] 948/2024-T,[13] 944/2024-T,[14] 1080/2024-T,[15] 12/2025-T,[16] 149/2025-T,[17] 133/2025-T,[18] e 307/2025-T,[19] concluíram, de forma reiterada, que a emissão de notas de crédito no âmbito do Acordo APIFARMA reduz o preço dos medicamentos e o valor tributável do IVA, legitimando a regularização do imposto a favor das empresas.

Não se vislumbra qualquer particularidade do presente caso que justifique afastar essa jurisprudência, antes se constata que a situação de facto e de direito é, em substância, idêntica, variando apenas a identidade da empresa e o período de tributação.

 

Também por isso não se justifica formular novo pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, uma vez que a interpretação dos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA em situações como a dos autos é clara e já foi firmemente fixada nos acórdãos Boehringer e Novo Nordisk, não subsistindo qualquer dúvida razoável sobre a interpretação a adoptar.

 

Com efeito, o reenvio prejudicial apenas se justificaria se houvesse dúvida interpretativa relevante, o que não se verifica, atento o critério estabelecido no acórdão Cilfit (processo C-283/81).[20], [21]

 

4.     Consequências para a liquidação impugnada

 

Do que antecede, resulta que a Requerente tinha o direito - e o dever - de reduzir o valor tributável do IVA nas operações de fornecimento de medicamentos às entidades do SNS na medida em que, em execução do Acordo APIFARMA, deixou de receber, em definitivo, parte da contraprestação inicialmente acordada, concretizando essa redução através da emissão de notas de crédito que imputou a facturas concretas e cuja base e imposto regularizou, a seu favor, na declaração periódica de Novembro de 2020.

 

A correcção efectuada pela AT, ao desconsiderar essa regularização e ao repor no campo 2 da declaração periódica o valor de € 257.042,32 de IVA como devido, enferma, assim, de erro sobre os pressupostos de direito, violando o artigo 78.º, n.º 2, do Código do IVA e o artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA, bem como os princípios da neutralidade e da igualdade de tratamento.

Sendo a impugnada liquidação adicional de IVA inteiramente fundada nessa correcção, a sua ilegalidade é determinadora da invalidade da liquidação na parte relativa ao imposto e, reflexamente, dos juros compensatórios que sobre esse montante incidiram.

 

Nada mais subsistindo na liquidação que não decorra dessa correcção - uma vez que as questões relativas ao IVA nas importações foram objecto de regularização voluntária autónoma, não reflectida na liquidação em crise -, impõe-se a anulação integral do acto de liquidação adicional de IVA e juros.

 

5.     Juros indemnizatórios

 

Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se verifique erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Verificada a ilegalidade da liquidação adicional impugnada e tendo a Requerente efectuado o seu pagamento, encontra-se preenchido o pressuposto objectivo do direito a juros indemnizatórios.

 

O erro é imputável à Requerida, na medida em que resulta de uma errada interpretação e aplicação da lei fiscal nacional e da Directiva IVA, não havendo qualquer actuação da Requerente que justifique a deslocação dessa imputação.

 

Em consequência, deve a Requerida reconstituir plenamente a situação que existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado, reembolsando à Requerente a quantia de € 295.515,57 indevidamente paga e pagando juros indemnizatórios sobre o montante do imposto indevido (€ 257.042,32), contados desde a data do pagamento (20-12-2024) até à data do seu efectivo reembolso, à taxa legal em vigor em cada momento, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

IV - CONCLUSÕES

 

À luz dos factos apurados e do direito aplicável, bem como da jurisprudência consolidada, conclui-se que:

 

a) A contribuição financeira devida pela Requerente ao abrigo do Acordo APIFARMA não tem natureza tributária, não constitui mero modo de pagamento da CEIF e é concretizada, no que releva para os autos, através da emissão de notas de crédito que reduzem o preço dos medicamentos fornecidos às entidades do SNS;

 

b) Essas notas de crédito determinam que a Requerente não receba, em definitivo, parte da contraprestação inicialmente acordada pelas vendas de medicamentos, configurando, por isso, uma redução do preço após a realização das operações, na acepção do artigo 78.º, n.º 2, do Código do IVA e do artigo 90.º, n.º 1, da Directiva IVA;

 

c) A Requerente tinha direito a reduzir o valor tributável dessas operações e a regularizar, a seu favor, o IVA correspondente às notas de crédito emitidas, não podendo a AT recusar essa regularização sem violar o princípio da neutralidade do imposto e a jurisprudência do TJUE;

 

d) A liquidação adicional de IVA ora impugnada enferma de ilegalidade por erro sobre os pressupostos de direito, devendo ser anulada na íntegra;

 

e) A Requerente tem direito ao reembolso do montante pago com base nessa liquidação e aos correspondentes juros indemnizatórios.

 

 

V - DECISÃO

 

Pelo exposto, o Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

 

  1. Anular a liquidação adicional de IVA e juros compensatórios n.º 2024 ..., relativa ao período de 2020/11, bem como as correspondentes demonstrações de acerto de contas;

 

  1. Condenar a Requerida a reconstituir plenamente a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado, designadamente:

 

b)     Restituindo à Requerente a quantia de € 295.515,57 indevidamente paga;

 

c)     Pagando à Requerente juros indemnizatórios sobre o montante de IVA indevidamente liquidado (€ 257.042,32), contados a partir de 20-12-2024 até ao integral reembolso, à taxa legal em vigor em cada momento.

 

 

VI - VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se ao processo o valor de € 295.515,57, correspondente ao montante global da liquidação de IVA e juros cuja anulação é peticionada, nos termos dos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

 

 

VII - CUSTAS

 

Nos termos do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa, sendo o valor do processo de € 295.515,57, a taxa de arbitragem é fixada em € 5.202,00, a cargo da Requerida, em razão do seu integral decaimento.

 

 

Lisboa, 18 de Novembro de 2025.

 

Notifique.

 

Os Árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins (Presidente)

 

 

Arlindo José Francisco (Adjunto)

 

 

Martins Alfaro (Adjunto)

 

 

 



[6] Assim demostrando que este princípio se encontra firmado jurisprudencialmente há quase 30 anos.

[8] Cfr. Decisão Arbitral de 24-09-2025, CAAD, processo n.º 149/2025-T.
Disponível em: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?id=9818&listPage=5

[21] Na jurisprudência arbitral, cfr. por todos a anteriormente mencionada Decisão Arbitral, processo n.º 149/2025-T.