Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1195/2024-T
Data da decisão: 2025-11-18  IRS  
Valor do pedido: € 18.015,27
Tema: IRS – Transparência fiscal. Dedução à coleta de benefícios fiscais
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SUMÁRIO

 

         A dedução à coleta de benefícios elegíveis no âmbito do sistema de incentivos fiscais em sede de SIFIDE II, quando haja lugar à imputação da matéria tributável aos sócios de sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal, rege-se pelo limite estabelecido no art. 78.º, n.º 7, do CIRS.

    

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 21 de janeiro de 2025, decide o seguinte:

 

I.              RELATÓRIO

 

           1. Em 7 de novembro de 2024, A... e B..., titulares, respetivamente, dos NIF’s ... e ..., casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua ..., n.º ..., ...-... PORTO, sujeitos passivos fiscais da área do Serviço de Finanças de Porto – ..., ao abrigo do disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), 3.º, n.º 1, 10.º, n.º 1, al. a), e n.º 2 do Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributaria (RJAT), requereram a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e apresentaram um pedido de pronúncia arbitral para a declaração de ilegalidade e consequente decisão de anulação e/ou reforma da liquidação de IRS relativa a rendimentos do ano de 2019, identificada como liquidação n.º 2023..., que apura um “Valor a pagar” de € 11 238,49, efetuada em 2023-11-29.

           Os requerentes pretendem que essa liquidação n.º 2023 ... seja corrigida/reformada pela tomada em conta do direito a um crédito de imposto de € 18 015,27, referente ao incentivo fiscal do SIFIDE II, este lhes devendo ser atribuído nos termos do art. 90.º, n.º 5, do CIRC, dando-se assim por prejudicadas as liquidações anteriores.

           Solicitam ainda os Requerentes o pagamento dos devidos juros indemnizatórios perante a ilegalidade da liquidação impugnada.

 

          2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD, em 11 de novembro de 2024, e em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada, nessa data, à Autoridade Tributária (AT), ora Requerida.

 

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do art. 6.º, n.º 1, e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 2 de janeiro de 2025, designou o árbitro signatário, que comunicou, no prazo legalmente estipulado, a aceitação do respetivo encargo.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 21 de janeiro de 2025, com base no disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta.

 

6. Em 3 de março de 2025, a Requerida apresentou a resposta, assim como juntou o processo administrativo.

 

 

II.           SANEAMENTO

 

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 21 de janeiro de 2025, em conformidade com o preceituado na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

8. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

9. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

         10. Cumpre, então, apreciar e decidir.

 

III.        DOS FACTOS

 

11. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, fixa-se como segue:

 

A)  Factos Provados

 

           12. Os requerentes são A... e B..., titulares, respetivamente, dos NIF’s ... e..., casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua ..., n.º..., ...-... PORTO, sujeitos passivos fiscais da área do Serviço de Finanças de Porto – ... .

 

           13. Foi-lhes dirigida uma liquidação de IRS n.º 2023..., que apurou um “Valor a pagar” de € 11 238,49, efetuada em 2023-11-29.

 

           14. O Requerente marido é sócio da “C...”, SROC, Lda., titular do NIPC..., sociedade de revisores oficiais de contas, sujeita ao regime de transparência fiscal prevista no art. 6.º do CIRC e no art. 20.º do CIRS. 

           

           15. O capital social desta sociedade profissional é totalmente detido pelas seguintes pessoas: D..., titular do NIF...; A..., titular do NIF ..., o ora Requerente marido;  E..., titular do NIF...; e F..., titular do NIF... .

 

           16. Numa primeira fase, os Requerentes reagiram contra as liquidação n.º 2020... e liquidação n.º 2020..., por as entenderem ilegais.

 

           17. Essa reclamação graciosa foi autuada como Processo n.º ...2020... e mereceu um despacho de deferimento parcial, notificado ao Requente marido através da Via – CTT, por ofício de 28-02-2022. 

 

           18. Na sequência desse deferimento parcial, foi emitida a liquidação n.º 2023..., de 29-11-2023, com valor a pagar de 11.283,49€. 

 

           19. Depois disso, os Requerentes impugnaram aquela liquidação de IRS de 2019, dando origem ao processo SICAT com o n.º ...2024..., de 29-04-2024.

 

           20. Como essa reclamação não foi tempestivamente decidida, ocorreu o indeferimento tácito da mesma, que consubstancia o presente pedido de pronúncia arbitral.  

 

B)  Factos não provados

 

21. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C)  Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

22. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. 

 

23. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].

 

24. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos.

 

IV.         DO DIREITO

 

A)  Consideração do benefício SIFIDE II no âmbito das deduções do art. 78.º do CIRS em razão de se tratar de sociedade profissional vinculadas à transparência fiscal

 

         25. O thema decidendum diz respeito a saber se a dedução à coleta de despesas elegíveis no âmbito do sistema de incentivos fiscais em sede de SIFIDE II se encontra sujeita ao limite estabelecido na al. c) do n.º 7 do art. 78.º do CIRS – quando haja lugar à imputação da matéria coletável no rendimento tributável dos sócios das sociedades profissionais no âmbito do regime de transparência fiscal –, ou se se encontra, inversamente, sujeita ao limite do n.º 5 do art. 90.º do Código do IRC.

         São duas soluções tributárias muito diversas na amplitude do benefício fiscal que, na prática, o contribuinte pode obter, considerando os apertados limites fixados no art. 78.º do CIRS, que não se aplicam no regime do aludido art. 90.º do CIRC.

 

         26. A posição dos Requerentes é no sentido da aplicação do art. 90.º do CIRC, dizendo que “Todas as liquidações de IRS referidas enfermam de erro por desconsideração (nuns casos na totalidade e noutro quase na totalidade) do direito dos Requerentes a deduzir à coleta o valor de € 18 015,27, decorrente do incentivo fiscal relativo ao SIFDE II, correspondente à parte que, quanto ao ano de 2019, cabe ao Requerente marido por imputação, nos termos do art. 90.º/n.º 5 do Código do IRC, do incentivo atribuído originalmente à sociedade de transparência fiscal “ C...”, SROC, Lda., pessoa coletiva n.º...”.

 

         27. Consideram ainda os Requerentes que, mesmo havendo um regime de transparência fiscal, devia fixar-se uma distinção, aplicando-se na dedução à coleta que aquele benefício permite o regime do art. 90.º do CIRC, tendo em conta a lógica societária em cujo ambiente os rendimentos e os benefícios haviam sido sedeados.   

 

         28. Já a Requerida entende que o contrário, referindo que o benefício fiscal em questão deve sujeitar-se ao regime do CIRS, em atenção ao regime da transparência fiscal aplicável. 

         Diz a Requerida que “…o SIFIDE II (…) é deduzido à coleta por forçada alínea k) do n.º 1 do art.º 78º do CIRS, mas fica sujeito à limitação referida, pelo que, por força da referida limitação, e da necessidade de respeitar a ordem estabelecida no nº 1 do art.º 78.º do CIRS, independentemente do valor apurado do total de despesas com deduções à coleta, existem limites globais de dedução consoante o escalão de IRS em que estiver incluído o sujeito passivo, ou seja, existe um teto global que depende do rendimento coletável e do número de filhos do agregado familiar”. 

 

         29. Ainda acrescenta a Requerida que “…as alegações do requerente A... NIF... não podem proceder, desde logo, porque a al. k) do n.º 1 do art. 78º do CIRS, não faz qualquer distinção sobre a forma de manifestação dos benefícios fiscais elegíveis para dedução à coleta, ou seja, dos benefícios fiscais previstos no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) e demais legislação complementar, pelo que, onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir (cfr. art.º 9º do CC), e, se fosse essa a intenção do legislador, este tê-lo-ia feito em termos precisos”.

 

         30. O Tribunal Arbitral entende que a Requerida tem razão, pelo que o benefício em sede de SIFIDE II, havendo um regime de sociedade sujeita a transparência fiscal, deve ser considerado relevante nos termos do CIRS, em atenção o momento relevante, que é posterior ao da fixação da matéria coletável, e esse momento é, tecnicamente, o da dedução à coleta, que bem se dissocia da daquele outro momento. 

         Importa ponderar que a relevância da “transmutação” que o regime da transparência fiscal opera surge no quadro da liquidação, “passando” do IRC para o IRS, sendo certo que a dedução à coleta só pode existir depois de definida a matéria coletável e feita a liquidação do imposto. 

 

         31. Assim é, desde logo, porque o regime da transparência fiscal, não obstante ter origem em pessoas coletivas, torna os rendimentos como relevantes em sede de IRC e em momento anterior ao do apuramento de eventuais deduções à coleta. 

         Havendo o regime da transparência fiscal, nos termos do art. 6.º do CIRC, tudo funciona como se os correspondentes rendimentos tivessem sido recebidos a título de IRS, tal apenas ocorrendo em circunstâncias limitadas, nas quais o legislador entendeu haver uma equiparação dos rendimentos que, sendo em princípio de IRC, passam a ser atendíveis em termos de IRS.   

 

         32. Por outro lado, como refere a Requerida, não há qualquer destrinça entre a lógica dos rendimentos oferecidos como IRS ou IRC do ponto de vista do benefício fiscal em causa.

         É também de mencionar que tal distinguo até foi feito para outros benefícios fiscais, mas não para este, pelo que aquela indistinção não foi fortuita, mas intencional ou, pelo menos, tacitamente consciente por parte do legislador tributário. 

 

         33. Assim sendo, não é de uma interpretação “literal” que se trata, mas antes de uma interpretação comum, que neste caso é uma “interpretação declarativa”: a letra do enunciado linguístico corresponde exatamente com o seu espírito, havendo entre eles uma harmonia plena. 

         Ora, essa é a orientação geral hermenêutica que se colhe do Código Civil, dela não se desviando a LGT, que para a mesma remete: “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis” (art. 11.º, n.º 1, da LGT).

 

         34. Este mesmo entendimento já foi assumido no âmbito da jurisprudência do CAAD, considerando a decisão arbitral de 22/12/2022, atinente ao processo nº 432/2021-T, no qual se concluiu o seguinte, estando em causa o mesmo benefício fiscal, mas aplicado a uma sociedade de advogados, embora com total paralelismo de regime, nos termos do n.º 63 do seu texto: “…a dedução à coleta de despesas de investigação e de desenvolvimento elegíveis no âmbito do sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial (SIFIDE II), quando haja lugar à imputação da matéria tributável aos sócios de sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal, rege-se pelo limite estabelecido no art.º 78.º, n.º 7, do CIRS”.

 

35. O Tribunal Arbitral concorda o sentido daquela decisão, com a qual concorda e para cujos fundamentos remete, transcrevendo-se o seu n.º 62 do seu texto: “Com efeito, crê o presente Tribunal ser esta a interpretação mais consentânea com a intenção do legislador de neutralidade fiscal e respeito pelo princípio da igualdade e a que menos provoca situação de discriminação negativa, conforme aponta Sofia Ricardo Borges, na declaração de voto: « A interpretação que vimos de expor, e que é a que nos é dado ter, é a única que, a nosso ver, acautela o objetivo sagrado, neste contexto, da neutralidade fiscal. Senão pensemos. Os Advogados (pense-se nesta classe de profissionais, como é no caso) em prática da sua atividade através de uma sociedade (TF) veriam aberta a porta à “anulação” dos seus rendimentos em IRS (e do dos seus cônjuges/agregado familiar), rendimentos, recorde-se, oriundos de diversas fontes, e aliás sem qualquer limite à invocada dedução no entendimento por que pugnam (e ao arrepio do que aliás sucede no próprio IRC), por via da aplicação de poupanças/capitais no capital de fundos de investimento (cfr. al. f) do art.º 37.º do CFI. Enquanto que aos Advogados em prática individual (e seus agregados familiares) tanto fica vedado. (E nem se diga que a falta de neutralidade resultará, assim, para os sócios Pessoas Colectivas das sociedades de TF... desde logo porque a TF poderá em determinadas circunstâncias ser, pelos mesmos, afastada.)»

 

 

B)  Juros indemnizatórios

 

36. Os Requerentes pedem ainda a condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “…é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, tal implicando o pagamento de juros indemnizatórios segundo os arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT. 

 

37. Considerando-se válida a liquidação em crise, não há lugar à atribuição de juros indemnizatórios em favor dos Requerentes. 

 

 

V.            DECISÃO

 

38. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

a)  Absolver a Requerida do pedido, mantendo-se válido na ordem jurídica o ato de liquidação impugnado, e sem a atribuição de quaisquer juros indemnizatórios em favor dos Requerentes;  

b)  Condenar os Requerentes no pagamento das custas.

 

VI.         VALOR DO PROCESSO

 

           39. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e art. 3.º, n.º 2, do RCPAT, fixa-se ao processo o valor de € 18 015,27 (dezoito mil e quinze euros e vinte e sete cêntimos), correspondente ao valor de imposto que o Requerente computa como tendo sido indevidamente pago, que é o valor do pedido de pronúncia arbitral, o qual não foi objeto de contestação.

 

VII.      CUSTAS

 

40. Custas a cargo dos Requerentes, de acordo com o art. 12.º, n.º 2, do RJAT, do art. 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 1.224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), em virtude de a sua pretensão não ter logrado obter vencimento na decisão arbitral.

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de novembro de 2025.

 

O Árbitro

 

Jorge Bacelar Gouveia

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art. 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. A redação da presente decisão rege-se pelo Acordo Ortográfico de 1990 em vigor.