SUMÁRIO:
A regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas pelas empresas aderentes ao Acordo celebrado entre a Representante da Indústria Farmacêutica e os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde, não só é legal como é imposta pelos princípios da neutralidade e da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e em obediência aos critérios estabelecidos no artigo 90º da Diretiva IVA e 78º do CIVA.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro-presidente), Dr. José Luis Ferreira e Drª. Sofia Quental (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I-RELATÓRIO
1-A..., LDA, com sede em ..., ..., ...-... Porto Salvo, titular do número de identificação fiscal ... (“Requerente”), vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e nos artigos 10.º, 15.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), deduzir PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL contra as liquidações adicionais de IVA e juros n.º 2024..., relativa ao período de 2021/02, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/04, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/05, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/07, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/10, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/11, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/12, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/01, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/03, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/04, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/05, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/06, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/09, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/10, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/11, e n.º 2024..., relativa ao período de 2022/12, e as respetivas demonstrações de acerto de contas, que apuraram um valor a pagar de € 692.246,95.
2- O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram tempestivamente notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 11-06-2025.
3-A Requerente sustenta o pedido argumentando, entre o mais:
a) Por via da adesão a um Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, a Requerente comprometeu-se a ser parte do esforço que visa assegurar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (“SNS”) e o acesso a medicamentos e, nesse sentido, assumiu a obrigação de fazer uma contribuição voluntária de montante proporcional à despesa que o SNS tem com os seus medicamentos;
b) A Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito a favor de entidades do SNS, através das quais a Requerente deixa de receber (e a entidade destinatária das notas de crédito deixa de pagar) a totalidade do preço refletido em faturas anteriormente emitidas às entidades do SNS pela venda de medicamentos, o que inequivocamente implica uma redução do valor tributável das operações tituladas por aquelas faturas;
c) Existe, portanto, um nexo inequívoco entre as notas de crédito emitidas pela Requerente e as vendas de medicamentos anteriormente efetuadas às entidades do SNS;
d) Em consequência, a Requerente regulariza, a seu favor, o IVA liquidado nas vendas daqueles medicamentos às entidades do SNS, em estrito cumprimento do disposto no artigo 78.º do Código do IVA e nos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA;
e) No entanto, os Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”), não obstante reconhecerem expressamente que as notas de crédito emitidas pela Requerente compensam as faturas anteriormente emitidas – e que, deste modo, as entidades do SNS beneficiárias das notas de crédito diminuem a sua dívida à Requerente –, acabam por concluir que não se verifica uma redução do valor tributável das operações anteriormente realizadas e, em consequência, rejeitam a regularização do IVA anteriormente liquidado;
f) Entendem, no fundo, os SIT que: (i) Os pagamentos efetuados no âmbito do Acordo a que a Requerente aderiu não constituem a contrapartida de uma transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como definidas para efeitos de IVA, estando em causa operações fora do âmbito de aplicação do imposto; (ii) (As notas de crédito emitidas para pagamento das contribuições voluntárias não se destinam a regularizar os valores anteriormente faturados, sendo antes um “acerto de contas” relativo ao pagamento de uma contribuição que é uma “obrigação tributária”; (iii) O pagamento da contribuição por meio de notas de crédito não corresponde a qualquer abatimento ou desconto sobre o valor das vendas, não se verificando a diminuição do valor tributável das operações antes realizadas;
g) Ora, esta posição dos SIT não só desconsidera, como também contraria grosseiramente aquela que é a interpretação dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA à luz jurisprudência do TJUE em casos idênticos ao sub judice – i.e., no contexto de mecanismos semelhantes vigentes noutros Estados-Membros, através dos quais empresas da indústria farmacêutica são chamadas a ser parte do esforço que visa assegurar o acesso a medicamentos e novas terapias, garantindo simultaneamente a sustentabilidade orçamental –, nomeadamente no processo BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA, C-462/16, no processo BOEHRINGER INGELHEIM RCV, C-717/19 e, mais recentemente, no processo NOVO NORDISK, C-248/23;
h) Atendendo quer ao princípio da neutralidade, quer ao princípio da igualdade de tratamento, consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, decidiu o TJUE nos referidos acórdãos que o artigo 90.º da Diretiva IVA se opõe a uma legislação nacional (e, por maioria de razão, a uma prática de uma autoridade nacional) que prive uma empresa farmacêutica da redução a posteriori do valor tributável do IVA quando, por força daqueles mecanismos, tenha ocorrido, de facto, depois de efetuada a operação, uma redução do preço;
i) Em todos os casos, entendeu o TJUE que, numa venda de medicamentos por parte de uma empresa farmacêutica a um organismo de saúde, há que considerar que o preço destes últimos foi reduzido depois de efetuada a operação, sempre que a empresa farmacêutica, por força da contribuição que efetua ao organismo de saúde, não receber parte da contrapartida contratada pela venda dos medicamentos, i.e., não receber a totalidade do preço dos medicamentos que forneceu, independentemente do modo como se concretiza a redução do preço;
j) No mesmo sentido vão as decisões do Tribunal Arbitral proferidas no âmbito do processo n.º 216/2023-T, de 21 de março de 2024, do processo n.º 644/2024-T, de 21 de janeiro de 2025, e do processo n.º 877/2024-T, de 17 de março de 2025, e do TAF de Sintra, no âmbito dos processos n.º 376/23.1BESNT, de 31 de dezembro de 2024, e n.º 749/23.0BESNT, de 15 de janeiro de 2025, que têm por objeto casos idênticos ao sub judice, em que empresas aderentes ao Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica regularizaram o IVA contido nas notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo;
k) A decisão do Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 216/2023-T, de 21 de março de 2024, foi proferido num caso idêntico que transitou em julgado sem recurso da AT, no âmbito do qual se afirmou expressamente que a jurisprudência do TJUE nos casos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16) e BOEHRINGER INGELHEIM RCV (C-717/19) “não poderá deixar de ser transponível ao presente caso”;
l) Também no processo n.º 644/2024-T, o Tribunal Arbitral entendeu que a interpretação dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, no sentido de dever ser garantido o direito à regularização do IVA constante de notas de crédito, é a única interpretação conforme com a jurisprudência europeia, nomeadamente, com os acórdãos do TJUE nos casos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), BOEHRINGER INGELHEIM RCV (C-717/19) e NOVO NORDISK (C-248/23) e a única que obedece ao princípio da neutralidade do imposto e ao princípio da igualdade de tratamento (cfr. p. 29 da decisão disponível no site do CAAD);
m) Tal como nos processos n.º 216/2023-T, n.º 644/2024-T, n.º 877/2024-T, n.º 376/23.1BESNT e n.º 749/23.0BESNT, atendendo à factualidade descrita e ao Direito aplicável in casu, impõe-se decidir que qualquer redução do preço após realização de uma operação tributável, independentemente da sua fonte, forma ou designação, implica necessariamente uma redução do valor tributável e, consequentemente, do IVA liquidado e entregue ao Estado;
n) Pelo que, tal como foi decidido nos processos n.º 216/2023-T, n.º 644/2024-T, n.º 877/2024-T, n.º 376/23.1BESNT e n.º 749/23.0BESNT, a única decisão do presente caso consonante com a Diretiva IVA e com o Código do IVA é no sentido do direito da Requerente à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas às entidades do SNS, na medida em que está em causa uma redução do preço recebido pelo sujeito passivo depois de realizada uma operação, que determina a redução do valor tributável da operação;
o) Esta é também a única interpretação conforme com os princípios da substância sobre a forma e da neutralidade do IVA e com as normas dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, para além de ser a única interpretação conforme com a jurisprudência do TJUE, maxime nos acórdãos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA, BOEHRINGER INGELHEIM RCV e NOVO NORDISK A/S;
p) A Título subsidiário a Requerente, caso não seja seguida a sua interpretação dos preceitos legais em conformidade com o Direito da União, suscita o pedido de reenvio embora acrescente que a jurisprudência do TJUE invocada proporciona uma orientação consistente e previsível para os tribunais nacionais, assegurando que as decisões sejam uniformes e que os direitos e obrigações decorrentes do direito da União sejam aplicados de forma uniforme, promovendo a confiança dos cidadãos e das empresas no sistema jurídico da UE, 295.º como aliás demonstra a interpretação clara dos Tribunais nacionais que a questão sub judice mereceu nos seguintes processos: • Tribunal Arbitral, no processo n.º 216/2023-T, de 21.02.2024; • Tribunal Arbitral, no processo n.º 644/2024-T, de 21.01.2025; • Tribunal Arbitral, no processo n.º 877/2024-T, de 17.03.2025; • TAF de Sintra, no processo n.º 376/23.1BESNT, de 31.12.2024; e • TAF de Sintra, no processo n.º 749/23.0BESNT, de 15.01.2025.
4- A Requerida argumenta, em síntese:
a) A questão que opõe a Requerente à AT, nos termos em que foi configurada pela mesma, reconduz-se à questão de saber se o pagamento daquela contribuição de base contratual (definida no ACORDO celebrado entre o Estado e a denominada Indústria Farmacêutica, ou seja, as entidades aderentes associadas da APIFARMA, com vista a garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS)), através da emissão de notas de crédito, concedia, ou não, à Requerente o direito de regularizar a seu favor (no campo 40 da declaração periódica) o IVA constante das referidas notas de crédito, na medida em que houve uma efetiva redução do preço inicialmente praticado e a pagar pelo SNS, com a consequente redução da base tributável e do imposto devido ao Estado;
b) A Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF) foi instituída pelo artigo 168.º da Lei do Orçamento do Estado para 2015 (Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro), cujo regime de liquidação e pagamento se encontra vertido na Portaria n.º 77 A/2015, de 16 de março, que aprovou o modelo de declaração da CEIF (Declaração Modelo 28) e as respetivas instruções de preenchimento;
c) A CEIF é devida pelas entidades que procedam à primeira alienação a título oneroso, em território nacional, de medicamentos de uso humano, sejam elas titulares de autorização ou registo de introdução no mercado, ou seus representantes, intermediários, distribuidores por grosso ou apenas comercializadores de medicamentos ao abrigo de autorização de utilização excecional, ou de autorização excecional;
d) A base tributável da contribuição é obtida a partir do total das vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre (n.º 1 do artigo 3.º), sujeita à taxa aplicável consoante o tipo de medicamento, oscilando entre 2,5% e 14,3%;.
e) São deduzidas ao valor do montante da contribuição as despesas de investigação e desenvolvimento (n.º 4 do artigo 3.º) desde que realizadas em território nacional e devidas e pagas a contribuintes portugueses e até ao limite da contribuição;
f) A Declaração Modelo 28 deve ser preenchida e enviada pelos sujeitos passivos não isentos da CEIF por transmissão eletrónica de dados (no Portal das Finanças) durante o mês seguinte ao trimestre a que respeita a liquidação da contribuição, considerando-se a Declaração apresentada na data da sua submissão;
g) Nos casos em que as empresas farmacêuticas vendam medicamentos a hospitais do SNS, a contribuição financeira pode ser paga mediante a emissão de notas de crédito, o que significa, na prática, que a empresa farmacêutica emite notas de crédito para encontro de contas com os valores em dívida aos hospitais, de modo a reduzir o montante devido pelos hospitais, pela aquisição de medicamentos às empresas farmacêuticas;
h) Considera a Requerente que a possibilidade de regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas às entidades do SNS por redução do valor tributável resulta de forma evidente não só dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, mas também da jurisprudência do TJUE nos processos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), BOEHRINGER INGELHEIM RCV (C-717/19) e, no acórdão NOVO NORDISK A/S (C-248/23), bem como, mais recentemente, do Tribunal Arbitral no processo n.º 216/2023-T e outra jurisprudência recente dos tribunais nacionais, mas sem razão;
i) Ainda que a Requerente atue no âmbito do designado Acordo celebrado e constante dos autos, estamos perante uma contribuição financeira (tal como vem qualificada na cláusula 3.ª do mesmo Acordo), a qual se encontra fora do âmbito de aplicação do IVA [cfr. artigo 1.º, n.º 1, alínea a) ‘a contrario’ do Código do IVA];
j) A propósito do conceito de prestação de serviços a título oneroso, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), já se pronunciou no sentido de que as operações tributáveis, no âmbito do sistema do IVA, pressupõem a existência de uma transação entre as partes com a estipulação de um preço ou contravalor, pelo que, quando a atividade de um prestador consiste em fornecer exclusivamente prestações sem contrapartida direta, não existe matéria coletável não estando, portanto, estas prestações sujeitas a IVA (‘vide’ Acórdão de 1 de abril de 1982, caso Hong Kong Trade, processo 89/81, n.ºs 9 e 10);
k) No presente caso, estamos perante uma atividade difusa, que aproveita a todo um sector a indústria farmacêutica, sendo impossível imputar ao produtor individual as vantagens que dela resultam. Também falta uma relação clara entre a contribuição devida pelos produtores e as vantagens que os serviços prestados pela ACSS, IP lhes possam trazer;
l) Nos termos do artigo 16.º, n.º 1 do Código do IVA, em regra, “(…) o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”. Por força da alínea b) do n.º 6 do mesmo artigo, do valor tributável são excluídos “[o]s descontos, abatimentos e bónus concedidos”;
m) Concluindo que “o artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que uma empresa farmacêutica não pode deduzir do valor tributável do IVA a parte do seu volume de negócios proveniente da venda de medicamentos subvencionados pelo organismo estatal do seguro de saúde que paga a esse organismo, em virtude de um contrato celebrado entre este último e essa empresa, com o fundamento de que os montantes pagos a esse título não foram determinados com base nas modalidades previamente fixadas por essa empresa no quadro da sua política comercial e que esses pagamentos não foram efetuados com fins promocionais.”;
n) No que respeita ao ACORDO, não estamos em presença de uma comparticipação no preço dos medicamentos, mas sim de uma verdadeira contribuição financeira genérica por um determinado setor de atividade, que tem por objetivo diminuir a despesa do Estado com medicamentos e, por essa via, permite-lhe assegurar a continuação da prestação dos serviços de saúde de que é responsável. A transferência bancária a favor da ACSS assim como as notas de crédito são meios alternativos de pagamento da contribuição do ACORDO, sendo determinante para o efeito, a existência ou não de dívidas vencidas e não pagas aos fornecedores de medicamentos;
o) A transferência bancária a favor da ACSS assim como as notas de crédito são meios alternativos de pagamento da contribuição do ACORDO, sendo determinante para o efeito, a existência ou não de dívidas vencidas e não pagas aos fornecedores de medicamentos;
p) Assim sendo, as notas de crédito cujo IVA é objeto de correção não se consubstanciam num desconto no preço dos medicamentos anteriormente faturados, mas sim no cumprimento de uma obrigação a que o contribuinte está sujeito;
q) Reitera-se no caso em apreço não se verifica qualquer nexo de causalidade entre a contribuição efetuada pela Requerente ao Estado e, o preço dos medicamentos anteriormente vendidos, individualmente considerados, pelo que as notas de crédito emitidas não são, assim, mais do que um recibo de quitação face aos montantes em dívida e por essa via objeto de pagamento, operando-se, no fundo, um “encontro de contas”;
r) Conclui-se que a Requerente se encontra isenta do pagamento da CEIF, mas o que tem de pagar é ainda uma contribuição financeira (obrigatória), que se encontra excluída do âmbito do IVA, pelo que o IVA foi indevidamente mencionado nas notas de crédito, não conferindo o direito à regularização de imposto, mostrando-se devidas as correções contestadas e respetivos atos tributários.
5- Por despacho, de 15 de outubro de 2025, o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Vd. arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT. Mais foram as partes notificadas para produzirem alegações escritas e designado o dia 11 de dezembro de 2025 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
6- Por despacho, de 15 de outubro de 2025, foi deferido o pedido da Requerente para a Requerida juntar aos autos a Circular n.º 20/2024/ACSS/INFARMED, de 18.07.2025, emitida pela Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (“ACSS, I.P.”) e pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (“INFARMED”), no prazo de cinco dias.
Em exercício de contraditório sobre a admissibilidade do pedido veio a Requerida tecer considerações sobre o sentido da referida Circular, em confronto com documentação junta com o Pedido que, além de ultrapassarem o objeto do contraditório, configuram mesmo fundamentação a posteriori ( em especial ver pontos 3 a 16 ) que por ser inovadora é ilegal e deve ter-se como não escrita. Tanto mais que a existência desta Circular não podia ser ignorada pela Requerida.
7- As partes emitiram alegações. A Requerente reiterou a defesa consignada no Pedido arbitral
Por sua vez a Requerida veio sustentar o seguinte: “(…) Por sua vez, a Requerente entende que os valores constantes das notas de crédito constituem verdadeiros descontos e, alteram o valor de operações antes facturadas, determinando a correcção do valor de imposto inicialmente liquidado naquelas operações.
“6- Nesta medida, cabe à Requerente, nos termos do previsto no art.º 74.º da LGT fazer prova dos factos constitutivos do direito à regularização de que se arroga.
“7. Pelo que, salvo melhor opinião, necessariamente está em causa nos presentes autos, aferir se a Requerente faz prova desses factos.
“8. Assim, mesmo que se entenda que estamos perante verdadeiros descontos comerciais, o que não se concede, a procedência da acção depende necessariamente de que seja feita prova de que: • Foram efectuadas operações que foram facturadas com um determinado valor; • Mais tarde vieram a ser concedidos descontos sobre essas operações e, • Foram emitidas notas de crédito que corrigiram as facturas inicialmente emitidas, pelo valor total, alterando o seu valor tributável.
A Requerida sustenta este entendimento na Circular juta aos autos a pedido da Requerente onde se pode ler: “B. Orientações para a indústria farmacêutica/fornecedores aquando da emissão das notas de crédito 1. A indústria farmacêutica deve identificar de forma clara o âmbito a que se refere a nota de crédito emitida, nomeadamente: a) Nota de crédito emitida no âmbito do Acordo APIFARMA: O valor da nota de crédito deverá ser emitido às Instituições do SNS em proporção do valor total de vendas da empresa às respetivas unidades do SNS. Adicionalmente, a nota de crédito deverá em descritivo desagregar o valor a imputar por medicamento.”
Conclui a Requerida que “uma simples leitura do Doc. 8 junto com o PPA, que contém as notas de crédito em apreço, permite sem mais, concluir pela não verificação daquela identificação (do medicamento e fornecimento a que respeita) e, assim, pela não verificação dos requisitos necessários à regularização de imposto. Ou seja, que a Requerente “não prova quais as facturas que viram o seu valor tributável alterado e que, assim, lhe conferem o direito à regularização de parte do imposto nelas liquidado.”
Em suma, alega a Requerida que as questões em apreço, são duas.
Questão um: Trata-se de uma contribuição financeira (tese da Requerida) ou de um desconto (tese da Requerente).
Questão 2 (apenas se se concluir que se trata de um desconto): A Requerente prova os factos constitutivos do direito de que se arroga? Nomeadamente, mas sem excluir, as notas de crédito alteraram o valor tributável de que operações ou facturas em concreto? De que medicamento? Fornecido quando? Em que factura?”
II- SANEAMENTO
1-As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, sendo beneficiárias de legitimidade processual (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
2-A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.
3-Em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), o Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
4-O processo não enferma de nulidades.
5-A cumulação de pedidos é legal.
6- Questão prévia
Como vimos, nas contra-alegações veio a Requerida, a propósito da junção aos autos da Circular n.º 20/2024/ACSS/INFARMED, de 18.07.2025, alegar que as questões em apreço a decidir são duas:
“Questão um: Trata-se de uma contribuição financeira (tese da Requerida) ou de um desconto (tese da Requerente).
Questão 2 (apenas se se concluir que se trata de um desconto): A Requerente prova os factos constitutivos do direito de que se arroga? Nomeadamente, mas sem excluir, as notas de crédito alteraram o valor tributável de que operações ou facturas em concreto? De que medicamento? Fornecido quando? Em que factura?”
Para a Requerida a Requerente não apresenta prova dos requisitos consignados no ponto B da Circular em causa.
Vejamos .
A referida Circular data de 18.07.2025 e, por conseguintes, tem data muito posterior à dos atos de liquidação contestados nos autos referentes a 2021 e 2022. O que significa, desde logo, que tal Circular não pode ser aplicada com efeitos retroativos (pois à luz da nossa ordem jurídica só o legislador tem competência para o efeito).
Esta questão, como já tivemos oportunidade de afirmar, no despacho de 15.10.2025, trata-se de matéria inovadora, que não consta nem foi abordada nos autos, quer pelos Relatórios de inspeção, quer pela Requerida na Contestação. O que sempre consubstanciaria, repete-se, fundamentação a posteriori e, por conseguinte, ilegal.
Com efeito, no caso dos autos o que se discute é unicamente a questão referenciada:
“Questão um: Trata-se de uma contribuição financeira (tese da Requerida) ou de um desconto (tese da Requerente).
Para a Requerente está em causa a questão de saber se tem direito à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas às entidades do SNS, na medida em que está em causa uma redução do preço recebido pelo sujeito passivo depois de realizada uma operação, que determina a redução do valor tributável da operação.
Alegando em sua defesa que “Esta é também a única interpretação conforme com o princípio da substância sobre a forma, com o princípio da neutralidade do IVA e com as normas dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, para além de ser a única interpretação conforme com a jurisprudência do TJUE, maxime nos acórdãos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA, C-462/16, BOEHRINGER INGELHEIM RCV, C-717/19, e NOVO NORDISK A/S, C-248/23.”
Por sua vez, para a Requerida não se encontram reunidos os critérios previstos no artigo 78.º do CIVA, uma vez que a contribuição financeira não constitui contrapartida de uma prestação de serviço ou transmissão de bens, não consubstanciando tais notas de crédito qualquer regularização de vendas anteriormente faturadas, mas antes um acerto na conta corrente do cliente relativo ao pagamento de uma contribuição a que o sujeito passivo está sujeito e não isento, sendo a emissão das notas de crédito a mera forma que a Requerente escolheu para cumprir com a obrigação tributária, nos termos previstos no Acordo.
Sendo esta a única questão a decidir a Requerente solicitou a junção aos autos da referida Circular, na medida em que corrobora a sua posição de direito quanto ao facto de “as notas de crédito configurarem “verdadeiros descontos comerciais “ .
Por conseguinte, a Requerida pretende nesta fase processual alargar o objeto do processo a matéria de facto, cujo ónus de prova defende que cabia à Requerente e que foi omitido.
Para além do que já foi dito, quanto à ilegalidade da alegação da Requerida, segundo o disposto no artigo 573.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
Ora, a alegação superveniente da Requerida não encontra fundamento em nenhuma das situações previstas pela lei.
Termos em que se mantém o objeto do processo tal como delineado pelas partes restrito à “Questão um: Trata-se de uma contribuição financeira (tese da Requerida) ou de um desconto (tese da Requerente).
Cumpre apreciar e decidir.
III-FUNDAMENTOS
III-1 – Matéria de facto
§ 1.º Dão-se como provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade cujo objeto social consiste na produção, importação, exportação, armazenagem, distribuição e comercialização de medicamentos de uso humano, para uso hospitalar e ambulatório, medicamentos genéricos, medicamentos imunológicos e medicamentos experimentais para ensaios clínicos; produtos químicos, produtos cosméticos e de higiene corporal; produtos de saúde, nomeadamente dispositivos médicos ativos e não ativos; de todas as classes e dispositivos para diagnóstico “in vitro” (cfr. informação disponível em https://publicacoes.mj.pt/Pesquisa.aspx);
b) A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal de entrega de declarações periódicas de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA;
c) A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, a APIFARMA (cfr. informação disponível neste link);
d) Enquanto titular da autorização de introdução no mercado de diversos produtos farmacêuticos, a Requerente vende estes produtos a entidades do SNS e pelo fornecimento de produtos farmacêuticos (mormente medicamentos) às entidades do SNS, a Requerente emite faturas com IVA à taxa reduzida de 6%, nos termos da verba 2.5 da Lista I, anexa ao Código do IVA;
e) No âmbito da sua atividade, e à semelhança do que sucedeu com a grande maioria das empresas da indústria farmacêutica, a Requerente aderiu ao Acordo celebrado em 2016 entre o Estado e a Indústria Farmacêutica (cf. declarações de adesão ao Acordo APIFARMA, que se juntam como documento n.º 5);
f) Este Acordo referente ao triénio 2016-2018 (“Acordo APIFARMA”), foi aditado em 2017, através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2017, na proporção da sua responsabilidade pelo aumento da despesa pública, e com limites máximos expressamente previstos (cfr. Acordo APIFARMA, que se junta como documento n.º 6);
g) O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P. (cfr. documento n.º 6 acima junto);
h) Em fevereiro de 2017, foi assinado um aditamento ao Acordo APIFARMA (“Aditamento ao Acordo APIFARMA”) que, apesar de ter introduzido algumas alterações relativamente aos prazos e medidas para controlo da despesa pública, manteve, no essencial, inalteradas as disposições previstas naquele Acordo;
i) O Acordo APIFARMA, celebrado no dia 15 de março de 2016 e revisto em 2017, foi prorrogado desde 2019 até aos dias de hoje, mantendo-se em vigor;
j) As contribuições decorrentes do Acordo APIFARMA podem ser realizadas: (i) através da emissão de notas de crédito às entidades do SNS – estas notas de crédito compensam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades (no pressuposto de existirem faturas vencidas e não pagas); ou (ii) através de transferência bancária a favor da ACSS, I.P., um instituto público tutelado pelo Ministério da Saúde (cfr. cláusula 3.º do Acordo APIFARMA e das declarações de adesão ao mesmo, acima juntos como documento n.º 5 e documento n.º 6);
k) O cálculo do montante destas contribuições é definido por uma fórmula fornecida pela APIFARMA que corresponde à aplicação de uma percentagem ao valor da despesa pública com medicamentos, com base em indicadores fornecidos pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (“INFARMED”) relativamente a compras de medicamentos efetuadas por hospitais e em ambulatório (cfr. cláusula 3.º do Acordo APIFARMA e das declarações de adesão ao mesmo acima juntos como documento n.º 5 e documento n.º 6 e comunicações da APIFARMA que se juntam como documento n.º 7);
l) Esta fórmula determina que cada empresa associada e aderente ao Acordo APIFARMA deve contribuir com um montante proporcional à despesa que o SNS teve com os seus medicamentos, seja através do consumo hospitalar destes medicamentos ou da comparticipação dos mesmos aos pacientes (cfr. documento n.º 5 e documento n.º 6 acima juntos);
m) Ao montante apurado são depois aplicadas as taxas (percentagens) previstas no Regime da CEIF (cfr. documento n.º 5 e documento n.º 6 acima juntos);
n) Os valores apurados são comunicados, numa base trimestral, às entidades associadas da APIFARMA, sendo efetuados quatro pagamentos trimestrais durante o ano e um pagamento de acerto no final (cfr. documento n.º 5 e documento n.º 6 acima juntos).
o) Os atos de liquidação ora contestados foram promovidos pela AT na sequência dos procedimentos de inspeção tributária (PIT), externos e de âmbito parcial, n.ºs OI2024... (para o ano de 2022) e OI2024... (para o ano de 2021), que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
p) Da fundamentação do RIT consta o seguinte: “Resumidamente, as correções em sede de IVA referentes aos exercícios de 2021 e 2022 tiveram as seguintes motivações: “V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades Correção ao Imposto - IVA 1. Os factos- Da análise das operações tributáveis realizadas pela A..., Lda. […] constatou-se que cerca de 95,6% [no ano de 2022; e 92,90%, no ano de 2021] das operações ativas são tributadas à taxa reduzida de imposto, nomeadamente ao abrigo da alínea a) do ponto 2.5 da Lista I anexa ao Código do IVA (produtos farmacêuticos e similares e respetivas substâncias ativas);
q) “Quanto às operações passivas, as mesmas consubstanciam-se principalmente na aquisição de produtos farmacêuticos à taxa reduzida, sendo uma parcela mais reduzida referente a outros bens e serviços sobre os quais incide a taxa normal de IVA.
r) “O IVA inscrito no campo 40 da Declaração Periódica de IVA dos meses de janeiro, março, abril, maio, junho, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2022 [e dos meses de fevereiro, abril, maio, julho, outubro, novembro e dezembro de 2021] têm por base as notas de crédito por si emitidas, com o descritivo “No âmbito do acordo de […]”.
s) “As mesmas são relativas a comparticipações/contribuições resultantes da adesão da A..., como associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), aos Acordos assinados entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica;
t) “No âmbito desse Acordo, a A... emitiu, a título de contribuição financeira, notas de crédito […] (com IVA incluído), e regularizou a seu favor, nas declarações periódicas de IVA referentes aos [respetivos] meses, o imposto que mencionou nas mesmas […]. […];
u) “2-O Acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica celebrado em 15 de março de 2016, à semelhança do que se verifica desde 2012 (data do primeiro Acordo) foi assinado um Acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA, com o intuito de atingir os objetivos orçamentais de despesa pública com medicamentos em ambulatório, incluindo subsistemas, e hospitalar do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com vista a garantir a sustentabilidade do SNS […] e no qual é determinado o valor da contribuição financeira a cargo das empresas aderentes (200 milhões de euros) assim como as datas das dívidas vencidas e não pagas que o Ministério da Saúde se compromete a liquidar em cada exercício.
v) “As empresas da Indústria Farmacêutica aderentes ao Acordo aceitam, por essa via, colaborar no esforço de sustentabilidade da despesa pública em medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição na parte que exceder os objetivos de despesa pública com medicamentos. Em contrapartida, o Ministério da Saúde compromete-se, entre outras medidas de simplificação administrativa no mercado dos medicamentos, a pagar a dívida contabilizada e vencida das empresas aderentes;
w) “Em 3 de fevereiro de 2017, é assinado um Aditamento ao Acordo de 15 de março de 2016 […], no qual se mantiveram todos os termos e condições já assumidas no Acordo precedente, procedendo apenas a atualizações e adaptações desses mesmos termos;
x) “Para os exercícios de 2017 e seguintes, manteve-se o valor global de contribuição num mínimo de 200 milhões de euros, estipulando-se que as taxas aplicáveis aos valores de despesa pública em medicamentos, para efeitos do apuramento anual de contribuição, eram as taxas previstas no Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (entretanto renovada pelo artigo 141.º da Lei n.º 42/2016 (OE 2017) e pelo artigo 281.º da Lei n.º 114/2017 (OE 2018));
y) “O Acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica para o exercício de 2021 foi assinado em 30 de junho de 2021, estipulando a sua cláusula única que o Acordo é aplicado para o ano de 2021 nos mesmos termos e condições que vigoraram nos anos anteriores, sendo a adesão por parte das empresas da indústria farmacêutica realizada nos termos da Cláusula 4ª do Acordo de 2016 […];
z) “Ou seja, para concretizar o Acordo referido, em anexo ao mesmo, as empresas aderentes (entre as quais se inclui a A..., como associada da APIFARMA e na qualidade de titular de introdução no mercado e empresa responsável pela comercialização de medicamentos registados no INFARMED), juntam uma declaração de adesão na qual é definida a forma de apuramento e repartição da contribuição da indústria farmacêutica no mercado ambulatório e hospitalar. O apuramento do valor anual da contribuição cabe ao INFARMED, sendo comunicado pela APIFARMA aos seus associados que aderiram ao Acordo […];
aa) “Para efeitos desse apuramento, é definido no ponto 7 da cláusula 3.ª do Acordo suprarreferido […], o seguinte: “Caso o valor da despesa pública com medicamentos previsto na cláusula anterior, seja ultrapassado, (…) as empresas aderentes ao presente Acordo procederão ao pagamento do montante que exceder o objetivo máximo definido durante o primeiro trimestre de 2017. (…), as empresas associadas da APIFARMA e aderentes ao Acordo apenas serão responsáveis pela parte que lhes for imputável no aumento da despesa pública com medicamentos no SNS de acordo com a proporção da respetiva quota de mercado, até ao limite que resultaria da aplicação da Lei n.º 159-C/2015, de 30 de dezembro (Prorrogação de receitas previstas no Orçamento do Estado para 2015).”;
bb) “Ora a Lei n.º 159-C/2015, de 30 de dezembro menciona no seu artigo 2.º que “A contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, cujo regime foi estabelecido pelo artigo 168.º da Lei n.º 182-B/2014, de 31 de dezembro, mantém-se em vigor durante o ano de 2016. Essa remissão para o Regime de Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF) é mais clara no Anexo ao Acordo para 2021 (anexo 10), assinado em 8 de julho de 2021 pela A... . Isso constata-se pela leitura do ponto 3. do capítulo II – Repartição da contribuição da indústria Farmacêutica - mercado ambulatório e hospitalar – do respetivo Anexo onde se refere o seguinte: “3. A repartição da contribuição devida pela Indústria Farmacêutica por cada empresa titular de autorização de introdução no mercado de medicamentos ou empresa representante local ou responsável pela comercialização de medicamentos em Portugal, conforme definido pela APIFARMA, far-se-á nos seguintes termos: 3.1. A contribuição de cada empresa, associada e aderente, será calculada pela aplicação de percentagens sobre a despesa pública com medicamentos. 3.2. As percentagens a aplicar são as constantes no Regime de Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, aprovadas pelo artigo 411.º, da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro. (sublinhado nosso);
cc) “De forma a operacionalizar o estipulado no acordo, as empresas emitem notas de crédito a favor das entidades do SNS, correspondentes ao valor devido, apurado e proporcional ao valor por si faturado às mesmas, no período respetivo. As notas de crédito são de imediato compensadas, por liquidação das faturas mais antigas, vencidas e não pagas. É este o objetivo da emissão das mesmas – reduzir a dívida do SNS para com as entidades aderentes, desobrigando em simultâneo estas entidades do pagamento da CEIF (ou da contribuição estipulada no acordo). Caso para alguma entidade não existam faturas vencidas e não pagas, o valor correspondente à contribuição é pago por transferência bancária;
dd) “3-Reflexos financeiros do Acordo na A... . Nos termos previstos pelos Acordos celebrados entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica (representada pela APIFARMA) e respetivos Anexos de adesão dos anos de 2019, 2020 e 2021 [e do ano de 2022] […], foi replicado o modelo de acordo executado nos anos anteriores, comunicando a APIFARMA a cada empresa aderente, o montante da contribuição calculada com base nos valores de encargos do SNS veiculados pelo INFARMED;
ee) “Nas comunicações da APIFARMA para a A... designadas por “Contribuição no âmbito do Acordo Governo – APIFARMA 2019”, “Contribuição no âmbito do Acordo Governo – APIFARMA 2020” e “Contribuição no âmbito do Acordo Governo – APIFARMA 2021” [e ““Contribuição no âmbito do Acordo Governo – APIFARMA 2022”] […], pode ler-se o seguinte: “Deverá, a partir da data desta comunicação, e com a maior brevidade possível, efetuar o pagamento, podendo proceder ao mesmo por duas formas: a) Emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS, as quais devem ser identificadas inequivocamente quanto ao âmbito, com a frase “No âmbito do Acordo de [ano em questão]”. b) Pagamento em numerário à ACSS, I.P., por transferência bancária (…).” Nos Acordos e conforme se encontra estipulado nos Anexos de adesão, foi determinado que o pagamento, cujo total corresponde ao valor da comparticipação calculada pela APIFARMA, se materializasse através da emissão de notas de crédito aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, com o descritivo “No âmbito do Acordo de 2019”, “No âmbito do Acordo de 2020” [,] “No âmbito do Acordo de 2021” [ e “No âmbito do Acordo de 2022”]. Todavia, o reflexo desta contribuição financeira no campo 40 das Declarações periódicas de IVA da A..., encontra-se influenciado não só pelos valores comunicados pela APIFARMA de 2021 [e 2022], mas também pelos valores respeitantes aos anos de 2019 e 2020 (conforme descritivo apresentado nas notas de crédito) […]”. […]. […]; “4.3Comparação entre a CEIF e o valor resultante da adesão ao Acordo. O princípio da igualdade concretiza-se na proibição do legislador adotar um tratamento desigual para um grupo de destinatários da norma em relação a outro grupo de destinatários, não obstante a inexistência de qualquer diferença justificativa do tratamento desigual [CAAD - Processo n.º 706/2018-T]; “Como se expôs anteriormente, a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF) criada em 2015 e os Acordos estabelecidos entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica desde 2012, têm ambos como objetivo garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS), baixando a despesa pública em medicamentos;
ff) “Quanto à fórmula de cálculo do valor da contribuição verificamos que, depois da introdução da CEIF em 2015, os Acordos e Declarações de adesão foram revistos no sentido de acomodar os critérios de apuramento previstos na CEIF, até porque o regime da Contribuição tem uma norma que isenta do seu pagamento as empresas sujeitas e aderentes aos Acordos (artigo 5.º Acordo para a sustentabilidade do SNS). […] [No que concerne] à forma de repartição e apuramento da contribuição pelos aderentes [o ponto 3.2 do Anexo ao Aditamento ao Contrato] é inequívoco quanto à remissão para o Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica: “As percentagens a aplicar são as constantes no Regime de Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, aprovadas pelo artigo 168.º, da Lei n.º 82 B/2014, de 31 de dezembro, aplicado para o ano de 2022 pela Lei n.º 99/2021, de 31 de dezembro [artigo 411.º, da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro”, para o ano de 2021].” ”. “Conclusão semelhante se encontra presente no Parecer n.º 32/2015-C da PGR de 22 de novembro de 2016, onde se confirma que “quer a contribuição prevista no Acordo celebrado em 21 de novembro de 2014, entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a Indústria Farmacêutica, por intermédio da APIFARMA, quer a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, cujo regime foi estabelecido pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014 de 31 de dezembro, (…), são determinadas em função do volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica e, sendo o valor da despesa pública com medicamentos previsto naquele Acordo ultrapassado, as empresas aderentes apenas serão responsáveis pela parte que lhes for imputável no aumento verificado”;
gg) “Como vimos anteriormente, o princípio de igualdade subjacente à aplicação das contribuições financeiras manifesta-se pelo princípio da equivalência, muito embora nos casos em que as mesmas assentam em bases ad valorem, se verifique uma aproximação ao princípio da capacidade contributiva presente nos impostos;
hh) “Este princípio aplicado ao caso da contribuição financeira que incide sobre a indústria farmacêutica implica uma tendência para a existência de uma correlação entre o que cada empresa paga ao SNS a título de contribuição e o custo que provoca na comunidade (despesa em medicamentos) ou na medida do benefício que a comunidade lhe proporciona (receita decorrente da sua faturação ao SNS);
ii) “Portanto, as duas contribuições prosseguem os mesmos objetivos, são apuradas de forma idêntica e contribuem, embora de uma forma não direta, para a melhoria da situação económica e financeira das empresas a ela sujeitas (pela existência de contrapartidas como sejam o saneamento das dívidas dos hospitais, diminuição das barreiras administrativas na política do medicamento…). Assim sendo é espectável e indispensável que ambas as contribuições sejam equivalentes nos resultados obtidos e respeitem o princípio da igualdade dos tributos;
jj) “Se os objetivos, assim como a forma de apuramento, se apresentam como sendo idênticos, então o seu efeito financeiro também tem de ser rigorosamente idêntico, não podendo o contribuinte através da sua operacionalização obter qualquer vantagem. Isso implicaria que o princípio de equivalência entre as duas contribuições não se concretizasse. Para efeitos de pagamento, o mecanismo utilizado no Acordo é o seguinte: • No caso do montante das faturas vencidas e não pagas ser superior ao montante apurado da contribuição, as notas de crédito são emitidas a favor das entidades do SNS proporcionalmente ao valor faturado pelas empresas da indústria farmacêutica, sendo que essas notas de crédito são compensadas por liquidação das faturas mais antigas vencidas e não pagas; • No caso de não existirem faturas vencidas e não pagas, o valor correspondente à contribuição deverá ser efetivamente pago através de transferência bancária para a ACSS, I.P.;
kk) “Conclusão interlocutória: Com este mecanismo, e consoante as duas situações distintas que podem ocorrer, o SNS diminui a sua dívida para com os fornecedores de medicamentos, quer seja por via das notas de crédito que regularizam as dívidas mais antigas, quer seja pela realização de uma receita adicional que lhe servirá de meios financeiros, provavelmente, para proceder a pagamentos atuais ou futuros relacionados com despesas de medicamentos;
ll) “Mas o que constatamos é que o mecanismo utilizado pela empresa A... origina um tratamento fiscal desigual face às empresas que pagam CEIF;
mm) “A A..., na qualidade de aderente ao Acordo estabelecido entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica, procede à emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS, com regularização do IVA, como se fosse um abatimento ao valor das suas vendas, recuperando parte do IVA anteriormente liquidado. Com a utilização deste mecanismo, a A... reverte a seu favor, sob a forma de crédito de imposto, uma parte do valor da contribuição (correspondente ao valor do IVA) que deveria entregar ao Estado;
nn) “A A... efetuou a seguinte contabilização (incorreta) com reflexos em contas de IVA regularizações e em contas de acréscimos de rendimentos […]: • Débito da conta “24340010 – IVA - Regularizações” pelo montante do IVA regularizado a seu favor, mencionado nas notas de crédito; • Débito da conta “27224027 - Contribuição Farmacêutica (Manual)” pelo valor base das notas de crédito; Crédito da conta “21110101 - Clientes C/C” pelo valor total das notas de crédito. Ora, uma vez que a A... detém créditos vencidos e não pagos sobre os hospitais do SNS (seus clientes) e aderiu ao acordo amplamente mencionado e explicado neste relatório, o procedimento contabilístico deveria ter sido o seguinte: • Débito da conta “688800 – Outros gastos e perdas – Outros” • Crédito da conta “211… – Clientes C/C” Pela totalidade do valor da nota de crédito, a qual não deve ter qualquer referência a Imposto sobre o Valor Acrescentado. Na eventualidade de a A... não ter créditos sobre os seus clientes (hospitais do SNS), o lançamento contabilístico, poderia, por exemplo, ser o seguinte: • Aquando da estimativa do valor da sua comparticipação: Débito da conta “688800 – Outros gastos e perdas – Outros” Crédito da conta “248 – Estado e Outros entes públicos – Outras contribuições” • Aquando do pagamento do valor da sua comparticipação: Débito da conta “248 – Estado e Outros entes públicos – Outras contribuições” Crédito da conta “12 – Depósitos à ordem” […]”.
oo) “ Neste conspecto, concluíram os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) que havia IVA indevidamente regularizado, nos períodos de fevereiro, abril, maio, julho, outubro, novembro e dezembro de 2021 e janeiro, março, abril, maio, junho, setembro, outubro, novembro e 11 Dezembro de 2022, pelo que procederam às respetivas correções aritméticas, que deram lugar às liquidações impugnadas e respetivos juros;
pp) Veja-se, a título de exemplo, que, no Relatório de Inspeção de 2021, como os SIT fundamentaram as correções efetuadas com base seguintes argumentos: (i) “(…) a contribuição resultante dos Acordos assume a natureza jurídica de uma contribuição financeira” (cfr. p. 13); (ii) “Como está bem claro no Acordo a forma de pagamento não consubstancia qualquer desconto relativamente a vendas efetuadas anteriormente. Os efeitos obtidos pelo Estado são equivalentes em termos de resultado final (quer sejam emitidas notas de crédito quer haja pagamentos efetivos): no primeiro caso, diminui o saldo da dívida do SNS em medicamentos; no segundo caso, o montante em dinheiro recebido permitirá fazer face aos compromissos financeiros do SNS, ou seja, com grande probabilidade, solver dívidas dos fornecedores de medicamentos. Em ambos os casos, o objetivo de melhorar a sustentabilidade financeira e orçamental do SNS é atingido, assim como se espera também que o impacto económico e financeiro nas empresas aderentes seja equivalente. Se assim não fosse, ou seja, se o resultado económico não fosse igual para ambos os casos (…), violar-se-iam os princípios da equivalência e da igualdade subjacentes ao pagamento da contribuição a favor do Estado, entre aderentes ao Acordo consoante esses tivessem créditos vencidos ou não ao SNS” (cfr. p. 17); (iii) “Para que essa desigualdade não aconteça, a nota de crédito deve funcionar apenas e tão só como um documento de quitação dos créditos não pagos e vencidos, e não como um documento de desconto do valor da faturação anteriormente emitida. Em concreto, o que se verifica é uma liquidação das faturas mais antigas em dívida e não uma retificação do valor tributável das mesmas, ou seja, o pagamento da contribuição por parte A... concretiza-se através do não recebimento dos valores faturados mais antigos, vencidos e não pagos” (cfr. p. 17); (iv)“(…) através da emissão das notas de crédito, a A... apenas liquida uma parte dos créditos em dívida por parte do SNS em montante igual ao valor da contribuição que teria de entregar ao Estado (caso não estivesse no Acordo). Ora esta situação não se enquadra nas situações previstas no n.º 7 do artigo 29.º do CIVA em conjugação com n.º 2 do artigo 78.º do mesmo diploma, pois, em termos práticos, a operação de pagamento da contribuição não se consubstancia num abatimento ou desconto sobre o valor das suas vendas uma vez que não se verifica uma diminuição do valor tributável das operações 21 ativas anteriormente realizadas conforme previsto no artigo 16.º do CIVA” (cfr. pp. 17 e 18); (v) “A emissão destas notas de crédito traduz o pagamento da contribuição financeira a que a A... está obrigada e como tal nunca poderão dar lugar à regularização de IVA, por parte do fornecedor, pois não tem enquadramento nas situações previstas no artigo 78.º ou em qualquer outro artigo do Código do IVA. A situação em que o credor prescinde do recebimento da contraprestação, em substituição de um não pagamento, não é uma situação em que tenha havido uma alteração do valor tributável da operação que ocorreu anteriormente, tal como se verificaria se estivéssemos perante um desconto ou devolução dos produtos anteriormente faturados. Também não se trata de um caso de incobrabilidade do valor faturado por um dos processos referidos no n.º 7 do artigo 78.º ou no n.º 4 do artigo 78.º-A, ambos do CIVA” (cfr. p. 18); (vi) “(…) a contribuição financeira/entrega de meio monetários pelos aderentes ao Acordo à entidade pública que centraliza as operações financeiras do SNS, a ACSS, não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA, tratando-se, por conseguinte, de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto” (cfr. p. 20); “(vii) Os movimentos contabilísticos, já referidos no ponto anterior, efetuados pela A..., permitiram que esta empresa efetuasse sob a forma de IVA, a recuperação do valor a que está obrigada a entregar ao Estado em termos de CEIF (leia-se no caso em concreto: contribuição estipulada no Acordo)” (cfr. p. 20).
qq) Em 17.01.2025, a Requerente pagou a totalidade dos € 440.822,84 (cfr. documento n.º 14 que se junta);
rr) Porém, por não poder concordar com as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, e respetivas demonstrações de acerto de contas, relativas aos períodos de 2021 e 2022, a Requerente deduz o presente pedido de pronúncia arbitral.
§2.º Fatos dados como não provados
Não se considera a existência de outros factos não provados com relevância para a decisão.
§3.º Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal não tem de se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. Artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (conforme artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes, no teor dos documentos juntos aos autos, por elas não contestados, incluindo o processo instrutor.
III-2-MATÉRIA DE DIREITO
§1.º Da ilegalidade das liquidações impugnadas
As partes convergem quanto à questão essencial a decidir.
Refere a Requerente que essa questão gira em torno de saber se “As notas de crédito emitidas pela Requerente ao abrigo do Acordo APIFARMA, com vista a compensar as faturas anteriormente emitidas às entidades do SNS pela venda de medicamentos, configuram efetivas reduções do preço inicialmente praticado e, nessa medida, implicam uma regularização, a favor da Requerente, do IVA que incidiu sobre o valor tributável das operações efetuadas (ponto 94 do Pedido Arbitral).
No mesmo sentido pode ler-se no ponto 7 da Resposta: “Assim, a questão que opõe a Requerente à AT, nos termos em que foi configurada pela mesma, reconduz-se à questão de saber se o pagamento daquela contribuição de base contratual (definida no ACORDO celebrado entre o Estado e a denominada Indústria Farmacêutica, ou seja, as entidades aderentes associadas da APIFARMA, com vista a garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS)), através da emissão de notas de crédito, concedia, ou não, à Requerente o direito de regularizar a seu favor (no campo 40 da declaração periódica) o IVA constante das referidas notas de crédito, na medida em que houve uma efetiva redução do preço inicialmente praticado e a pagar pelo SNS, com a consequente redução da base tributável e do imposto devido ao Estado.
Entende a Requerente que as regularizações, a seu favor, do IVA contido nas notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo APIFARMA foram corretamente efetuadas. Como resulta da factualidade descrita, estas notas de crédito foram emitidas pelo montante correspondente à contribuição da Requerente ao abrigo do mencionado Acordo APIFARMA e dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, mas também da jurisprudência do TJUE nos acórdãos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), BOEHRINGER INGELHEIM RCV (C-717/19) e NOVO NORDISK A/S, C-248/23, do Tribunal Arbitral no âmbito dos processos n.º 216/2023-T, n.º 644/2024-T e n.º 877/2024-T, e do TAF de Sintra, nos processos n.º 376/23.1BESNT e n.º 749/23.0BESNT.
Em sentido oposto os SIT consideraram que a emissão de notas de crédito ao abrigo do Acordo APIFARMA não consubstancia uma verdadeira redução do preço em dívida pelas entidades do SNS relativamente aos medicamentos adquiridos por estas à Requerente – a qual, a existir determinaria a verificação de uma redução do valor tributável das operações anteriormente realizadas – e, em consequência, rejeitam a regularização do IVA anteriormente liquidado.
Vejamos.
Assim recortada a questão verifica-se que a mesma já foi apreciada na Decisão arbitral proferida no processo n.º 877/2024-T, seguindo, aliás, a jurisprudência vazada na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 216/2023-T, que se reitera, por se concordar com a mesma.
O Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, introduzido pela Lei
n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015, foi prorrogado para o exercício de 2019, pelo artigo 312º da Lei 71/2018 de 31/12 que aprovou o Orçamento de Estado para 2019
O artigo 5.º deste regime tem o seguinte teor:
“Artigo 5.º
Acordo para sustentabilidade do SNS
1 - Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.
2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.
4 - O texto do acordo previsto no n.º 1 deve ser publicitado no sítio na internet do INFARMED
- Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P”.
Antes da instituição deste Regime, pelo menos desde 2012, que o Estado e a APIFARMA, esta em representação da Indústria Farmacêutica, vinham a estabelecer protocolos de colaboração que permitam garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e o acesso dos cidadãos aos medicamentos.
Quer no regime do CEIF quer no regime dos Acordos está previsto o pagamento de um determinado montante pelas empresas da Indústria Farmacêutica, designado “ contribuição”. Embora esta aparente semelhança o Regime criado pela Lei do Orçamento de Estado para 2015 e que veio sendo prorrogado, como já se viu para 2019, criou aqui uma autêntica obrigação tributária exigível, em caso de incumprimento, coercivamente.
Enquanto os Acordos não passam de meros contratos administrativos nos quais as empresas da indústria farmacêutica se vinculam, mediante uma declaração de vontade expressa, voluntária e individual se comprometem a colaborar com o Estado para atingir os objetivos orçamentais de despesa pública com medicamentos, mediante certo pagamento, em contrapartida da expectativa de verem as dividas hospitalares incorridas pelas entidades do SNS com a aquisição de medicamentos às empresas aderentes, pagas.
Por aqui é possível inferir que os dois regimes são substantivamente distintos, não podendo o pagamento realizado ao abrigo dos Acordos ser equiparado ao pagamento de um tributo de natureza tributária. Como já se viu é o próprio regime da CEIF que expressamente prevê uma norma de isenção, no seu artigo 5.º, n.º 2, aplicável às entidades que aderentes ao regime dos Acordos individualmente e sem reservas, o que afasta indubitavelmente a aplicação do regime do CEIF às empresas aderentes aos Acordos administrativos de contribuição.
Para o Tribunal é claro que o legislador ao criar a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, não pretendeu que a mesma substituísse a Contribuição feita através dos Acordos administrativos em vigor, são dois regimes com o mesmo fim, mas de natureza e implicações diferentes e se legislador quisesse que fosse diferente tê-lo-ia dito, o que não fez.
Desta forma é patente que as empresas aderentes ao Acordo acabam por contribuir para a sustentabilidade do SNS, através do pagamento de um determinado montante e a Contribuição Extraordinária e a “contribuição” prevista no Acordo têm necessariamente natureza e regimes distintos, sendo a primeira uma verdadeira contribuição financeira e a segunda um pagamento voluntário, realizado ao abrigo de um contrato administrativo, com regras próprias, o que não pode ser desconsiderado, nada impedindo que o montante das “contribuições” seja diferente, termos em que o Tribunal não concorda com o entendimento preconizado pelos Serviços Inspetivos da Requerida, antes acompanha o decidido no Processo n.º216/2023 do CAAD, como se segue :
“…Conforme aludido, as entidades aderentes ao regime dos Acordo Administrativos do biénio 2016-2018 e prorrogado para 2019, vincularam-se a colaborar no controlo da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma “contribuição”, realizado através da emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento, por transferência bancária, à ACSS, I.P..
No cenário em que as entidades aderentes optam por cumprir com a sua obrigação ao abrigo dos aludidos Acordos, mediante a emissão de notas de crédito, como sucedeu, in casu, com a Requerente, há uma efetiva diminuição do valor tributável da operação e uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos fármacos. Ainda que tal diminuição decorra da circunstância dos sujeitos passivos estarem contratualmente vinculados ao pagamento de um montante intitulado de “contribuição”, o certo é que substantivamente estamos perante uma efetiva redução do valor a ser pago pelas entidades do SNS, o que não pode deixar de ter relevância em sede de IVA.
O IVA, enquanto imposto geral sobre o consumo, caracteriza-se fundamentalmente por ser um imposto indireto de matriz comunitária plurifásico, que incide sobre todas as fases do processo produtivo, através do método subtrativo indireto, que consiste na liquidação e dedução do imposto em cada uma das fases do circuito económico, quando as transações se processam entre sujeitos passivos do imposto com direito à dedução (cf. sobre esta matéria, XAVIER DE BASTO, A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional, Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, CCTF n.º 164, Lisboa 1991, páginas 39 a 73 e CLOTILDE CELORICO PALMA, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, páginas 19 a 34).
A técnica do método subtrativo indireto visa a prossecução de vários objetivos, entre os quais, a tributação em cada uma das fases do circuito económico, repartindo o encargo fiscal pelos sujeitos passivos e assegurando a neutralidade do imposto. O princípio da neutralidade do IVA permite assim que o imposto não interfira nas opções estratégicas dos vários agentes económicos na cadeia de produção, tributando atos de consumo e não a atividade económica.
O mecanismo do direito à dedução do IVA é, portanto, uma característica essencial do funcionamento do IVA, assumindo um papel fundamental na garantia na neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal.
A matriz comunitária do imposto, impõe, por outro lado, que todos os Estados membros tenham de seguir o sistema comum do IVA, consagrado na Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (doravante, “Diretiva IVA”), ficando a sua margem de atuação diretamente sujeita aos limites das regras do Direito da União. Como refere, e bem, CLOTILDE CELORICO PALMA, “Por este motivo, a correcta aplicação deste tributo implica o conhecimento não só da legislação, doutrina e jurisprudência nacionais, como igualmente da legislação, doutrina e jurisprudência da União Europeia” (cf. Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da APIFARMA ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, de 28 de Julho de 2023).
Ora, de acordo com o artigo 2.º da Diretiva IVA e com o artigo 1.º, n.º 1, do Código do IVA, estão sujeitas a IVA as seguintes operações:
a) As transmissões de bens e as prestações de serviços, efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;
b) As operações intracomunitárias;
c) As importações de bens.
Para efeitos de IVA, é qualificada como transmissão de bens, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IVA, que segue o disposto no artigo 14.º, n.º 1 da Diretiva IVA, a “Transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.”
Partindo do artigo 9.º da Diretiva IVA, nos termos do artigo 2.º do Código do IVA, consideram- se sujeitos passivos do imposto, as pessoas singulares ou coletivas que:
a) Exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e das profissões livres, de modo independente e habitual;
b) De modo independente, pratiquem uma só operação, enquadrável numa das referidas atividades, sejam ou não estas exercidas no território nacional;
c) Pratiquem uma só operação sujeita a IRS ou IRC;
d) Realizem importações de bens;
e) Mencionem indevidamente IVA;
f) Efetuem operações intracomunitárias.
Pelo que dúvidas não subsistem de que tanto a Requerente como as entidades do SNS a quem esta emite faturas são sujeitos passivos de IVA e que a venda de medicamentos pela primeira, a estas segundas, configura uma operação tributável em sede de IVA.
De acordo com a teoria das prestações recíprocas, os montantes pagos devem configurar a contrapartida da transmissão de um bem ou da prestação de um serviço, individualizáveis, em relação aos quais se possa considerar as importâncias entregues como a respetiva contraprestação ou sinalagma, verificando-se assim o elemento objetivo que compõe o âmbito da incidência do IVA.
Em respeito ao caso concreto, e nas palavras de CLOTILDE CELORICO PALMA, a que aderimos: “No caso em apreço estamos perante transmissões de bens – fármacos - perfeitamente individualizáveis, quer ao nível da prestação quer ao nível dos seus beneficiários directos (utentes), sendo a respectiva contrapartida o preço pago descontado dos valores acordados relativos às notas de crédito emitidas. É esta a realidade material em causa, não interessando para o efeito, contrariamente ao pretendido pela AT, que esteja em causa o pagamento de uma Contribuição, independentemente da natureza que esta assuma e do mecanismo adoptado para o efeito.” (cf. Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da B..., ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, de 28 de Julho de 2023).
Veja-se que o artigo 73.º da Diretiva IVA estabelece que “nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.º a 77.º, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações.”. No mesmo sentido, dispõe o artigo 16.º, n.º 1 do Código do IVA: “o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”. Como ensina SÉRGIO VASQUES, “significa isto que o valor tributável de cada operação corresponde por princípio a toda a contrapartida convencionado entre as partes” (cf. O Imposto Sobre Valor Acrescentado, Almedina, 2015, página 282).
Esclarece ainda o artigo 79.º da Diretiva IVA que “o valor tributável não inclui os seguintes elementos: a) As reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado; b) Os abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário, no momento em que a operação se realiza; c) As quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso das despesas efectuadas em nome e por conta destes últimos, e que sejam registadas na sua contabilidade em contas de passagem.”. Também o n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA exclui do valor tributável os descontos, abatimentos e bónus concedidos.
Sobre esta matéria, salienta SÉRGIO VASQUES “toda a redução de preço de que o adquirente beneficie deve ser expurgada do valor tributável, deva-se essa redução do preço à realização de pagamento antecipado ou a qualquer outro motivo.” (cf. ob. cit., pág. 287).
Nos termos do disposto no artigo 90.º da Directiva IVA: “1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”. Por sua vez, o artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA refere que “Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável”.
Assim, qualquer redução do preço facultada ao adquirente no momento em que se realiza uma operação tributável, independentemente da sua forma ou designação, deve ter reflexo no valor tributável e, consequentemente, no imposto a liquidar ao Estado.
Continua o mesmo autor, “se a redução do preço é feita até ao momento em que se realiza a operação, expurga-se a redução do valor tributável nos termos do artigo 79.º; já se a redução se produz em momento posterior, e qualquer que seja a razão para o efeito, manda o artigo 90.º que se reduza o valor em conformidade” (cf. ob. cit., pág. 287, com sublinhado nosso).
No presente caso, é cristalino que a redução de preço ocorre em momento posterior à operação.
Consequentemente, aplicando a regra própria do IVA que determina que “a matéria colectável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contrapartida efectivamente paga pelo consumidor final”, quando ocorra uma vicissitude de que resulte a redução do preço recebido pelo sujeito passivo depois de realizada uma operação, como se verifica no presente caso, deve reduzir-se o seu valor tributável, ainda que essa vicissitude não envolva a contraparte na operação.
Efetivamente, in casu, as associadas da B... aderentes ao Acordo não dispõem da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago, após dedução dos montantes pagos no contexto do Acordo. Por obediência ao princípio de prevalência da substância sobre a forma, consagrado, nomeadamente, como cânone de interpretação e aplicação das normas tributárias, no artigo 11.º, n.º 3 da LGT, impõe-se que se dê primazia à verdade material e à substância económica dos factos. Razão pela qual, é forçoso concluir pelo direito da Requerente à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas.
Conforme entende CLOTILDE CELORICO PALMA, “o que temos na situação controvertida é, inequivocamente, uma redução do valor tributável da operação de venda de fármacos levada
a cabo pelas entidades associadas da B... aderentes ao Acordo que deve ser objecto de regularização, em conformidade com as regras da Directiva IVA, assim se repondo a neutralidade deste impostos assegurando-se o princípio da contraprestação efectiva. Não nos interessa atender à forma sob a qual se processa tal operação (…) mas sim à substância dos factos e, na substância, o que material e inequivocamente temos é uma redução do valor tributável da operação, que, enquanto tal, pode e deve ser objecto de regularização.”.
Assim, à luz do princípio da substância sobre a forma, do principio da neutralidade próprio do regime do IVA e das regras inerentes ao mesmo, nomeadamente, as normas dos artigos 73.º e
90.º da Diretiva IVA, a posição da Autoridade Requerida de querer fazer prevalecer o facto de estar em causa uma Contribuição, invocando não estar em causa uma contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo
1.º do CIVA e, por conseguinte, estarmos perante uma operação fora do âmbito de aplicação
do imposto, não é correta, não merecendo, atento o exposto, acolhimento.
Ademais, a interpretação das normas aplicáveis no sentido de que à Requerida deve ser garantido o direito a proceder com a regularização do IVA constante das notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo é a única interpretação conforme com a jurisprudência comunitária, nomeadamente, com os acórdãos do TJUE nos casos BOEHRINGER INGELHEIM (C-717/19) e BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), cuja jurisprudência não poderá deixar de ser transponível ao presente caso, cumprindo-se assim o princípio do primado do direito europeu.
Veja-se que a citada jurisprudência do TJUE é clara no sentido de que o artigo 90.º da Directiva
IVA se opõe a uma legislação nacional que prive uma empresa farmacêutica da possibilidade de reduzir a posteriori o seu valor tributável do IVA quando, por força daqueles mecanismos (desconto, no caso C-717/19, e retificação à posteriori de preço, no caso C-462/16), tenha havido de facto, tal como no presente caso, uma redução do preço depois de efetuada a operação. Assim, qualquer redução do preço ocorrida após a realização de uma operação tributável deve dar lugar à redução do respetivo valor, não permitindo o princípio da neutralidade o princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que o sujeito passivo seja obrigado a pagar imposto sobre preço superior ao que é efetivamente exigido do adquirente, independentemente do mecanismo ou da razão pela qual a redução do preço se efetive, seja esta de fonte legal ou contratual….”
Nesta perspetiva e tendo presente a legislação referida, a doutrina, jurisprudência arbitral e comunitária, o Tribunal julga o presente pedido de pronúncia arbitral totalmente procedente, com todas as consequências legais daí advindas.
Nesta sequência indefere-se o pedido de reenvio por existir jurisprudência clara sobre o assunto.
§2.º- Dos juros indemnizatórios
A Requerente peticiona ainda a restituição do imposto pago indevidamente acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, sendo certo que a jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.
Desta disciplina deriva o dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT que deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
Termos em que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, que são devidos, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, calculados sobre o valor pago indevidamente, contados desde a data em que foi efetuado o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
IV- DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Anular as liquidações adicionais de IVA e juros n.º 2024..., relativa ao período de 2021/02, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/04, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/05, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/07, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/10, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/11, n.º 2024..., relativa ao período de 2021/12, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/01, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/03, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/04, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/05, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/06, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/09, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/10, n.º 2024..., relativa ao período de 2022/11, e n.º 2024..., relativa ao período de 2022/12, e as respetivas demonstrações de acerto de contas, que apuraram um valor a pagar de € 692.246,95;
b) Condenar a Requerida, para além da devolução do imposto indevidamente pago, a pagar à Requerente juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais;
c) Condenar a Requerida ao pagamento das custas processuais.
V- VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 692.246,95 (seiscentos e noventa e dois mil, duzentos e quarenta e sete euros e noventa e três cêntimos).
VI- CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 10 098,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de novembro de 2025.
Os Árbitros,
Fernanda Maçãs- árbitro presidente .
José Luis Ferreira- árbitro vogal
Sofia Quental- árbitro vogal