SUMÁRIO:
Ocorre inutilidade superveniente da lide e consequente extinção da instância se a Requerente obteve a plena satisfação do pedido em virtude da revogação pela AT, após a constituição do Tribunal Arbitral, do acto de liquidação contestado.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, António de Barros Lima Guerreiro e André Festas da Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem o seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., com o número de identificação fiscal ..., residente em ... .., França, (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, alínea c), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) e juros compensatórios n.º 2025..., datada de 17 de Janeiro de 2025, referente ao ano de 2021, no valor global de € 161.129,33.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 12 de Março de 2025 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”).
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 2 de Maio de 2025, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou que, o acto de liquidação de IRS em questão padece do vício de falta de fundamentação, por não ter sido alegado qualquer facto, muito menos de natureza jurídica, que sustentasse tal liquidação. Adicionalmente, refere a Requerente que não foi notificada para exercer o seu direito de audiência prévia face à pretensão da Requerida, sendo que inexistem razões que justificassem a dispensa dessa audição. Como tal, conclui a Requerente que essas ausências da prática de actos essenciais à perfeição dos actos tributários, conduzem a que aquela liquidação de IRS seja nula.
Adicionalmente, tendo presente a jurisprudência arbitral (decisão de 23.12.2022, no processo n.º 247/20222) e judicial (acórdão de 15.06.2016, no processo n.º 01833/13), há que concluir que a alienação de um quinhão hereditário não é susceptível de ser tributável em sede de IRS, por não se enquadrar no âmbito do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, enquanto rendimento da categoria “G”, sendo por isso o acto de liquidação de IRS impugnado ilegal, bem como a liquidação de juros compensatórios daí decorrente.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 20 de Maio de 2025.
6. Em 21 de Maio de 2025, foi proferido despacho arbitral a notificar a Requerida para apresentar resposta e juntar aos autos cópia do processo administrativo, nos termos do artigo 17.º, do RJAT.
7. Em 20 de Junho de 2025, a Requerida apresentou requerimento a informar os autos que, por despacho da Subdirectora-geral, datado de 17.06.2025, foi revogado o acto tributário de liquidação n.º 2025 ... cuja ilegalidade foi suscitada pela Requerente.
8. Em 23 de Junho de 2025, foi proferido despacho arbitral no qual se notificava a Requerente para se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, sobre o teor daquele requerimento, informando se tinha interesse na manutenção da instância ou, pelo contrário, se nada tem a opor à sua extinção por inutilidade superveniente da lide.
9. Em 23 de Junho de 2025, a Requerente informou que não tinha interesse na prossecução do processo arbitral, e que, face à revogação da liquidação que originou a presente impugnação, verifica-se a inutilidade superveniente da lide, considerando todo o procedimento exclusivamente imputável à Requerida devendo a mesma ser condenada no pagamento das custas.
II. SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.
11. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
12. O processo não enferma de nulidades.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
13. Ao Tribunal Arbitral compete seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
14. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos abaixo elencados.
§2 – Factos provados
15. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente reside em França desde 1986;
b) A Requerente procedeu à venda de um quinhão hereditário pertencente à herança indivisa aberta por óbito de sua avó, através de escritura pública outorgada em 28 de Julho de 2021, no Cartório Notarial de Lisboa;
c) Através de notificação datada de 24 de Outubro de 2024, com o assunto “Falta de entrega da declaração de IRS, Modelo 3, de 2021”, a Requerida informou a Requerente de que “Foi detetado que não entregou a declaração de IRS, Modelo 3, para o ano acima indicado, prevista no artigo 57.º do Código do IRS”, informando-a ainda de que dispunha de 30 dias para proceder à entrega da referida declaração em falta, sob pena de a Requerida proceder “à emissão de liquidação oficiosa”;
d) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IRS n.º 2025..., referente ao período de tributação de 2021, emitido pela Requerida, do qual resultou o montante total a pagar de € 161.129,33, sendo € 146.342,71, referentes a IRS, e € 14.786,62, referentes a juros compensatórios;
e) Em 12 de Março de 2025, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo;
f) Em 14 de Março de 2025, foi enviado pelo CAAD um e-mail automático à Requerida a informar da entrada do pedido de constituição de Tribunal Arbitral e do número do processo que lhe foi atribuído, tendo a notificação sido confirmada por ... às 10h48m do dia 17 de Março de 2025;
g) Em 20 de Maio de 2025, foi constituído o Tribunal Arbitral;
h) Por despacho de 17 de Junho de 2025, da Subdirectora-Geral Helena Pegado Martins, foi anulado o acto de liquidação contestado pela Requerente, ou seja, foi revogado o acto de liquidação de IRS n.º 2025..., do qual resultava um montante total a pagar de € 161.129,33, sendo € 146.342,71, referentes a IRS, e € 14.786,62, referentes a juros compensatórios contestado pela Requerente;
i) Em 23 de Junho de 2025, a Requerente apresentou requerimento a informar que “face à revogação da liquidação que originou a presente impugnação, verifica-se a inutilidade superveniente da lide. Uma vez que todo o procedimento é exclusivamente imputável à requerida deverá a mesma ser condenada no pagamento de custas”.
§3 – Factos não provados
16. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que se tenham considerados como não provados.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
17. O acto de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios objecto de contestação pela Requerente foi objecto de revogação pela Requerida após a constituição do Tribunal Arbitral. Em resultado da referida revogação, veio a Requerente informar que se verifica a inutilidade superveniente da lide.
18. Por conseguinte, inexiste nesta fase objecto processual sobre o qual deva pronunciar‑se o Tribunal Arbitral, de tal modo que carece de sentido útil a manutenção da instância. De resto, são as partes que, em resultado da revogação do acto contestado, estão de acordo quanto à extinção da instância arbitral.
19. Relativamente a esta temática, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, em 30 de Julho de 2014, no acórdão proferido no processo n.º 0875/14, nos seguintes termos: “A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”.
20. Em idêntico sentido, referem Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Redinha, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 555, que “(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio”.
21. Em face do exposto, julga-se procedente a inutilidade superveniente da lide, por ter já obtido o Requerente a plena satisfação dos efeitos pretendidos com o seu pedido, determinando-se consequentemente a extinção da instância nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
a) Julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e, em consequência, absolver da mesma a Requerida;
b) Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 161.129,33 (cento e sessenta e um mil, cento e vinte e nove euros e trinta e três cêntimos).
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.672,00 (três mil e seiscentos e setenta e dois euros), a suportar pela Requerida, já que foi esta que deu causa à presente acção, porque apenas comunicou a revogação do acto de liquidação após a constituição do Tribunal Arbitral, em conformidade com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de novembro de 2025
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente e relatora)
António de Barros Lima Guerreiro
André Festas da Silva