Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 566/2025-T
Data da decisão: 2025-11-17  IRC  
Valor do pedido: € 73.575,88
Tema: IRC- pagamentos a entidades situadas em países de fiscalidade privilegiada – aceitação como gasto.
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SUMÁRIO:

I.                                Estando em causa pagamentos a entidades situadas em países de fiscalidade privilegiada, cessa a “presunção de verdade” de que goza uma contabilidade organizada nos termos legais.

II.                             Nos termos da alínea r) do n.º 1 do artigo 23. °-A do CIRC, cabe ao sujeito passivo alegar e provar factos de onde se possa concluir que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., LDA., NIPC..., com sede na..., n.º ..., ..., ...-... Pombal, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

a)    O pedido

 

A Requerente peticiona a anulação da liquidação adicional, de IRC e de juros compensatórios, com o n.º 2024..., relativa a 2020, no montante a pagar de € 73.575,88.

Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada.

Pede, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

b)    O litígio

 

Entende a AT que não podem ser aceites como gasto fiscal os encargos suportados pela Requerente com o prestador de serviços B... (C...), no montante de € 302.780,97, contabilizados na conta 2211004. 

A AT justifica a não aceitação de tais gastos por entender que a Requerente não demonstrou que os mesmos concorreram para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, nem justificou que as importâncias pagas não têm um carácter anormal e não são de montante exagerado (alínea r) do n.º 1 do artigo 23°-A do CIRC)[1].

 

A Requerente sustenta a efetividade e necessidade de tais gastos.

 

c)     Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 09/06/2025.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 20/08/2025.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

A audição das testemunhas teve lugar em 28/10/2025. 

As partes apresentaram alegações, nas quais reiteraram as posições expressas nos articulados.

Em tais alegações, a Requerente deixou afirmado que a aplicação do regime previsto no artigo 63°-D da LGT a fornecedores residentes na Suíça violaria a CDT vigente entre Portugal e a Suíça. Violação que se evidenciaria nos seguintes aspetos: a vigência da convenção  teria como consequência a proibição de aplicação de normas do direito interno que não respeitem a referida Convenção; a vigência da referida convenção significa o reconhecimento, por parte de Portugal, de que a tributação dos sujeitos passivos residentes na Suíça está sujeita a regras, nomeadamente incidência e taxas, que são equiparáveis / similares às regras das empresas residentes em Portugal; havendo uma inversão do ónus da prova (agravando-se assim o regime aplicável aos fornecedores sediados na Suíça) iria subverter-se o espírito da própria Convenção.

 

 

 

d)    Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não foram alegadas exceções. Não existem questões que devam obstar ao conhecimento do mérito.

 

 

II- PROVA

 

II.1 -Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)     A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva de onde resultou a liquidação impugnada.

b)     Deduziu reclamação graciosa, que foi objeto de indeferimento, notificado em 10/03/2025.

c)     A Requerente tem como objeto social o fabrico e importação de componentes para automatização de linhas de produção, doseadores industriais e de equipamentos de precisão destinados à indústria de relojoaria. Realização de estudos técnicos.

d)     A maioria dos Clientes da Requerente são empresas suíças.

e)     O Sr. B... desloca-se regularmente à Suíça, onde exerce atividade profissional nesta área.

f)      Segundo um contrato, datado de 20/12/2019, junto aos autos, o Sr. B... exerce, no interesse da Requerente, a função de consultor técnico/comercial, comprometendo-se a angariar clientes para esta sob a contrapartida de € 145/hora e/ou 10% das encomendas recebidas. 

g)     No período em causa, a Requerente efetuou vendas a D... SA, sediada na Suíça.

h)     As vendas em causa nos presentes autos, que originaram o pagamento, pela Requerente, de comissões/honorários, surgem, documentalmente, como tendo sido feitas a (apenas) este Cliente.

i)      Os documentos (faturas) que suportam documentalmente os pagamentos feitos a B... aparecem como tendo sido emitidos por C..., designação que corresponderá ao “nome comercial” sob o qual o Sr. B... se apresenta.

j)      Nessas faturas surgem verbas correspondentes a comissões (relativas a vendas à D... SA) e honorários por serviços prestados (por B...) no quadro de tais vendas.

k)     Tais documentos (faturas), redigidas em português, não mencionam qualquer número de contribuinte, suíço ou português.

l)       Cada um desses documentos (faturas emitidas por C...) surge acompanhado de dois documentos, alegadamente cópias de faturas enviadas ao cliente D... SA, as quais sustentam o cálculo do valor da comissão a ser paga. 

m)    O montante global das transferências efetuadas pela Requente, em 2020, para contas do Sr. B... na Suíça, ascendeu a €302.780,97.

n)     Os SIT solicitaram à Requerente que apresentasse prova de que B... era residente na Suíça e que lá cumpria com as suas obrigações fiscais, não tendo obtido resposta.

o)     A sócia única e gerente da Requerente, em 2020, era cônjuge de B... .

p)     Em 2020,  B..., NIF ..., encontrava-se registado no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes como residente em Portugal, com residência em ..., na Figueira da Foz, o mesmo domicílio do seu cônjuge.

q)     Em 2020, entregaram uma declaração conjunta de IRS, mencionando serem ambos residentes em Portugal. 

r)      A AT liquidou adicionalmente IRS, correspondente ao imposto que deveria ter sido retido na fonte pela Requerente em razão dos pagamentos, acima mencionados, alegadamente efetuados a um não residente (a B...), o qual a Requerente pagou.

 

Estes factos resultam dos documentos e outras informações juntos aos autos e não originaram qualquer divergência entre as partes quanto à sua materialidade.

A primeira testemunha (atualmente, sócio da Requerente) limitou-se a “repisar” o constante do requerimento inicial.

A segunda testemunha (contabilista certificado) prestou depoimento incidindo essencialmente sobre o cumprimento dos normativos contabilísticos e fiscais, o qual foi, em alguns pontos, incoerente. 

 

 

 

                        II.2 – Factos não provados

 

Não foram alegados ou apurados factos, relevantes para a decisão da causa, que hajam sido dados por não provados.

Diferente é a questão (uma questão de direito) de saber se a Requerente alegou e, consequentemente, provou factos relativamente aos quais tinha o ónus legal de o fazer.

 

III- O DIREITO

1- Comecemos pelo constante das alegações da Requerente, acima sintetizado, no sentido de que a vigência da CDT Portugal- Suíça implicaria a impossibilidade de aplicação do disposto no artº 63º-D às operações económicas entre residentes nos dois países.

Estas alegações não têm fundamento jurídico: a função primordial das CDT´s é proceder à repartição do direito à tributação entre os países contratantes e prever mecanismos de eliminação da dupla tributação internacional no caso de o direito à tributação ser atribuído, cumulativamente, a ambos os estados contratantes. Está totalmente fora do escopo das convenções qualquer interferência em normas tributárias do direito interno dos estados contratantes (salvo no necessário para eliminar a dupla tributação internacional) e, muito menos, em normas de direito adjetivo como sejam as relativas à distribuição do ónus da prova, como é o caso da alínea r) do n.º 1 do artigo 23. °-A do CIRC.

É errónea a afirmação da Requerente de que a celebração de uma CDT com determinado país ou território significa o reconhecimento de que este não tem fiscalidade privilegiada. São, aliás, numerosos os casos em que Portugal tem CDT’s em vigor com países ou territórios vulgarmente tidos como sendo “paraísos fiscais”. Repetimos: o objetivo das CDT´s é eliminar a dupla tributação internacional, o que tanto pode acontecer quer os estados contratantes possam ou não ser havidos como tendo fiscalidade privilegiada.

 

A questão da qualificação da Suíça como país de fiscalidade privilegiada foi expressamente abordada no RIT. Citamos: No caso da Suíça, não constando da lista aprovado por portaria pelo Ministério das Finanças, é considerado um país com regime fiscal claramente mais favorável, por força do disposto no n.º 5 do artigo 63.º D da LGT[2], na medida em que a taxa equivalente ao IRC é de 8,5%, que representa cerca de 40% da taxa de IRC em Portugal, conforme documento que se anexa (Anexo 5 – Comparação internacional da carga fiscal – Taxas de impostos em diferentes países da OCDE). 

Facto que a Requerente não põe em causa.

Resta acentuar a relevância, neste contexto, das relações especiais existentes entre a Requerente e (marido da, ao tempo, sócia única e gerente da Requerente), dado o constante da al. b) da norma.

Improcede, pois, tal argumentário.

 

 

2 - Coincidamos com a Requerida na seguinte consideração:

A discordância das partes assenta no entendimento que a Requerente tem acerca dos elementos de prova que seriam necessários carrear para demonstrar os requisitos legais previstos no art.º 23.º-A, n.º 1, al. r) e n.º 7 do CIRC. 50.º Com efeito, a Requerente entende que a simples apresentação das faturas, quer aquelas por si emitidas, quer as que foram emitidas pelo destinatário das importâncias transferidas, é suficiente para comprovar que as importâncias pagas ou devidas correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.

 

Na realidade, estando em causa transferências bancárias efetuadas para a Suíça, um país considerado como tendo fiscalidade privilegiada, desaparece o normal valor probatório da documentação contabilística (no caso, para mais, documentos produzidos pelos diretos envolvidos – orçamentos e faturas), passando a incidir sobre o sujeito passivo o ónus de provar a realidade das operações que originaram tais pagamentos, bem como não terem as mesmas caráter anormal ou um montante exagerado.

 

Começando pelo fim, diremos que não foram alegados ou apurados quaisquer factos demonstrativos de que as comissões pagas pela Requerente a B... (10% do valor das vendas) correspondam aos valores normais de mercado. E há aqui uma “dupla suspeita” legal: não só estão em causa transferências com destino a um país de fiscalidade privilegiada, como estão em causa pagamentos a uma entidade especialmente relacionada (B... é marido da, então, sócia única da Requerente).

Esta omissão probatória, só por si, condenaria ao fracasso o peticionado pela Requerente.

 

Mais:

A normalidade das operações que, alegadamente, deram origem aos pagamentos em causa, também não ficou provada. Não se discute o interesse empresarial de, em muitos casos, se ter que recorrer a um agente para se conseguir “abrir portas” em determinado mercado; nem que B... tenha conhecimentos e contactos no mercado suíço da relojoaria.

O que não ficou esclarecido (e cumpriria à Requerente esclarecer) foi a necessidade de intervenção de B... na angariação do cliente D... SA (aparentemente, só deste cliente), quando a Requerente afirma que 98% das suas vendas são no mercado suíço. Ou seja, haveria que esclarecer como a Requerente conseguiu mais clientes nesse mercado (sem recurso a agentes? Através de outros agentes?)

Facilmente se podem exemplificar factos que cumpriria à Requerente provar: apresentar os pedidos originais formulados pelos clientes finais suíços (mesmo sendo este apenas a  D... SA) ; apresentar provas das concretas  vendas de mercadorias a este cliente, (as que deram origem ao pagamento de comissões), nomeadamente comprovativos alfandegários das respetivas remessas de  mercadorias; apresentar provas dos  projetos e outros trabalhos alegadamente elaborados por B..., que seriam a razão de ser do pagamento de honorários.

 

Pelo contrário, a prova produzida (ou não produzida) é suscetível de justificar (mais) dúvidas fundamentadas sobre as operações em causa. Sirvam alguns exemplos:

- é algo “estranho” que uma empresa de que era sócia única e gerente a mulher de B...  tenha contratado este para atuar como seu agente.

segundo o contrato junto autos, B... passou a ser agente da Requerida, no mercado suíço, desde 2020. Mas, segundo as testemunhas, o recebimento de comissões é anterior.

não foi feita prova de que B... fosse residente fiscal na Suíça.

Os documentos juntos aos autos antes provam que, pelo menos oficialmente, a sua residência fiscal era em Portugal

-  é “estranho” que a Requerente, uma sociedade sujeita ao regime de contabilidade organizada, pague faturas emitidas por uma entidade que sabe inexistir (é a própria Requerente quem afirma que C... mais não é que o “nome comercial” de B...).

 

Em resumo, é seguro afirmar que a Requerente não fez qualquer prova (para além da junção de documentos particulares da autoria dos intervenientes) de que os pagamentos em causa correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado, tal como exige alínea r) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.

Mais ainda, a prova produzida parece indiciar estarmos perante um esquema de evasão fiscal, assente nas relações conjugais dos intervenientes.

 

IV- DECISÃO

 

Acordam os árbitros em:

a)    Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação da liquidação impugnada.

b)    Consequentemente, julgar improcedentes os demais pedidos, daquele dependentes.

 

Valor: € 73.575,88

 

Custas, no montante de € 2.448,00, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento.

 

 

17 de novembro de 2025

 

 

Os árbitros

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

José Nunes Barata

 

 

 

Jesuíno Alcântara Martins 

 

 



[1] O qual reza: As importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal a que se referem os n.os 1 ou 5 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, ou cujo pagamento seja efetuado em contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado

[2] Artigo 63º-D da LGT:
(…)

5 - São, igualmente, considerados países ou jurisdições com regime claramente mais favorável aqueles que, ainda que não constem da lista referida no n.º 1 deste artigo, não disponham de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC ou, existindo, a taxa aplicável seja inferior a 60 % da taxa de imposto prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, sempre que, cumulativamente: 

a) Seja feita remissão expressa nos códigos e leis tributárias para este número do presente artigo.

b) Existam relações especiais, nos termos das alíneas a) a g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, entre as pessoas ou entidades envolvidas nas operações subjacentes às normas referidas na alínea anterior. 

(…)