Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 493/2025-T
Data da decisão: 2025-11-14  IVA  
Valor do pedido: € 99.303,36
Tema: IVA – sujeito passivo misto – direito a dedução – despesas de investimento em bens imóveis.
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SUMÁRIO:

 

I.   O direito da AT de liquidar o imposto pode ser exercido no mesmo prazo que o contribuinte tem para exercer o direito a dedução do imposto, não sendo aplicável o prazo geral de 4 anos previsto no artigo 45º nº 1 da Lei Geral Tributária;

II.  O IVA suportado nas despesas de investimento na construção de imóveis destinados ao exercício de atividades sujeitas e de atividades isentas está sujeito a regularização no prazo de 20 anos (ano do início da utilização e  19 anos seguintes), sendo feito anualmente o apuramento da eventual divergência entre o IVA deduzido e o que seria passível de o ser, em face da concreta afetação verificada;

III. Tal regularização não pode exceder 1/20 em cada exercício, estando vedada à AT a possibilidade de proceder à regularização, num único exercício, da totalidade do imposto deduzido.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (Presidente), Dr. Alberto Amorim Pereira (Adjunto e relator) e Prof. Doutor Júlio Tormenta (Adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem o seguinte:

 

 

 

I.           RELATÓRIO:

 

A..., titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., com sede na Rua ..., nº ..., ..., ...-... ..., (doravante designada por “Requerente”), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por “RJAT”), peticionando a anulação das liquidações de IVA e respetivas demonstrações de acertos de contas respeitantes aos exercícios de 2018 e 2019, bem como da consequente liquidação de juros compensatórios, devidamente identificadas no pedido de pronúncia arbitral, no montante total de € 99.303,36, bem como a condenação da Requerida a reembolsar a Requerente do montante pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese:

1.         A Requerente é uma Fundação, beneficiando do estatuto de utilidade pública e tendo como fim a promoção, o financiamento e a realização de atividades nas áreas da cultura, da educação, da saúde e da solidariedade que visem o desenvolvimento e a dignificação da pessoa humana;

2.         No âmbito da sua atividade, a Fundação iniciou em 2018 a construção do edifício do clube juvenil denominado “...”, tendo as obras de construção terminado em 2022;

3.         A Requerente suportou as despesas inerentes à construção do edifício “...”, tendo liquidado e deduzido a totalidade do IVA correspondente, por aplicação da regra da inversão prevista no artigo 2º nº 1 j) do CIVA;

4.         No ano de 2024 a Requerente foi objeto de uma inspeção tributária de âmbito geral, que incidiu sobre o exercício de 2022;

5.         No decurso da inspeção tributária, os serviços concluíram pela existência de irregularidades na dedução do IVA em relação à aquisição de bens e serviços de construção civil relativos à construção do edifício “...”, bem como em relação aos gastos comuns, pois que tal edifício se destina a atividades isentas de IVA (sede e prestação de serviços afetas ao Clube juvenil) e a atividades sujeitas a IVA (residência);

6.         De acordo com os serviços de inspeção tributária, a Requerente não poderia ter deduzido todo o imposto liquidado, devendo antes ter procedido à separação/afetação das aquisições que seriam contempladas para a atividade com direito a dedução de imposto (aquisições para a atividade sujeita) das restantes, que não conferem direito a dedução;

7.         Motivo pelo qual concluíram pela existência de IVA a corrigir no montante global de € 170.575,17, correspondente ao imposto deduzido relativo a atividades isentas, que não conferem direito a dedução;

8.         A Requerente é sujeito passivo de IRC, encontrando-se, para efeitos de IVA, registada no regime normal trimestral, como sujeito passivo misto com afetação real de todos os bens, desenvolvendo operações sujeitas a imposto e dele não isentas e operações isentas, sendo a atividade desenvolvida pelo “...” isenta de IVA;

9.         O facto tributário ocorreu nos exercícios de 2018 e 2019, pelo que em 2025 já havia caducado o direito à liquidação do respetivo imposto;

10.      Para apuramento das áreas do edifício afetas ao clube (atividade isenta) e afetas à residência (atividade sujeita) e determinação do respetivo pro rata de afetação, os serviços de inspeção tributária recorreram às plantas da construção do edifício onde foram identificadas as áreas que se destinam ao uso para desenvolvimento de operações sujeitas e as áreas afetas a operações isentas;

11.      As referidas plantas continham as áreas de afetação determinadas à data de 2024, razão pela qual o pro rata determinado pelos serviços de inspeção tributária apenas poderia ser aplicado a esse exercício e não aos exercícios anteriores ou posteriores;

12.      Nos exercícios de 2018 e 2019 a Requerente deduziu o IVA de acordo com a afetação prevista para esse período;

13.      O artigo 24º nº 4 do CIVA não permite a regularização das deduções do imposto num único exercício;

14.      As liquidações impugnadas são assim ilegais, por vício de violação de lei.

 

A Requerente juntou 70 documentos e não arrolou testemunhas.

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa os signatários, não tendo as partes, notificadas de tal designação, manifestado vontade de a recusar, nos termos do disposto nos artigos 11º nº 1 a) e c) do RJAT e dos artigos 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

 

O tribunal arbitral coletivo foi constituído em 29 de julho de 2025.

 

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese:

 

1.         O prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no artigo 45º nº 1 da Lei Geral Tributária não é aplicável in casu, atento o disposto no número 3 do mesmo preceito;

2.         Em causa nos autos está o exercício do direito à dedução do IVA e consequente recuperação do reporte acumulado em sucessivos exercícios, pelo que a verificação dos pressupostos do direito à dedução de IVA tem de ser feita no momento em que a situação é detetada e sujeita a inspeção ou no momento em que o reembolso é pedido;

3.         Não sendo aplicáveis, nesta hipótese, as razões de segurança jurídica que estão subjacentes ao regime de caducidade do direito à liquidação;

4.         Não se verificando, assim, qualquer caducidade do direito à liquidação;

5.         Os serviços de inspeção tributária procederam à correção do IVA indevidamente deduzido através do método da afetação real dos bens e serviços e não com base no pro rata;

6.         Pelo que as liquidações impugnadas não padecem de qualquer vício, devendo, em consequência, manter-se na ordem jurídica;

7.         Não se verificando qualquer erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no artigo 43º da Lei Geral Tributária, não tem a Requerente direito ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios.

 

A Requerida juntou o processo administrativo, não juntou documentos, nem arrolou testemunhas.

 

Por despacho notificado às partes em 06/10/2025, foi dispensada a realização da reunião arbitral, bem como a apresentação de alegações, tendo o processo prosseguido para prolação de decisão.

 

II.         SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

III.        QUESTÕES A DECIDIR:

Atentas as posições das partes, sumariamente elencadas, verifica-se serem as seguintes as questões a decidir:

a)    Caducidade do direito à liquidação;

b)    Ilegalidade das liquidações impugnadas, por vício de violação de lei.

 

 

IV.       MATÉRIA DE FACTO:

a.         Factos provados:

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:

1.    A Requerente é uma Fundação, beneficiando do estatuto de utilidade pública e tendo como fim a promoção, o financiamento e a realização de atividades nas áreas da cultura, da educação, da saúde e da solidariedade que visem o desenvolvimento e a dignificação da pessoa humana

2.    A Requerente é sujeito passivo de IRC, encontrando-se, para efeitos de IVA, registada no regime normal trimestral, como sujeito passivo misto, desenvolvendo operações sujeitas a imposto e dele não isentas e operações isentas;

3.    No âmbito da sua atividade, a Requerente iniciou em 2018 a construção do edifício do clube juvenil denominado “...”, tendo as obras de construção terminado em 2022;

4.    Tal edifício destinou-se à instalação da sede da Requerente, bem como à prestação de serviços, quer afetos ao clube juvenil, quer afetos a residência;

5.    A Requerente suportou as despesas inerentes à construção do edifício “...”, tendo liquidado e deduzido, nos exercícios correspondentes à respetiva liquidação (2018 a 2022), a totalidade do IVA liquidado, por aplicação da regra da inversão prevista no artigo 2º nº 1 j) do CIVA;

6.    No ano de 2024 a Requerente foi objeto de uma inspeção tributária de âmbito geral, que incidiu sobre o exercício de 2022, destinada à verificação do cumprimento das correspondentes obrigações tributárias e complementada pela necessidade de controlo de sujeitos passivos com reporte de IVA, sem pedido de reembolso associado;

7.    No decurso da inspeção tributária, os serviços concluíram pela existência de irregularidades na dedução do IVA nos exercícios de 2018 a 2022, em relação à aquisição de bens e serviços de construção civil relativos à construção do edifício “...”;

8.    De acordo com os serviços de inspeção tributária, a Requerente não poderia ter deduzido, em cada um dos referidos exercícios, todo o imposto liquidado, devendo antes ter procedido à separação/afetação das aquisições que seriam destinadas à atividade com direito a dedução de imposto (aquisições para a atividade sujeita) das restantes, que não conferem direito à dedução;

9.    Motivo pelo qual concluíram pela existência de IVA a corrigir no montante global de € 170.575,17, correspondente ao imposto deduzido relativo a atividades isentas, que não conferem direito à dedução;

10. No decurso da inspeção tributária, a Requerente apresentou pedido para a regularização parcial das correções propostas relativamente aos exercícios de 2020 a 2022, tendo procedido à regularização voluntária do valor de € 73.844,31; 

11. Para efeito do cálculo do imposto em falta, os serviços de inspeção tributária tomaram em consideração as áreas do edifício concretamente afetas a cada uma das atividades (sujeitas e não isentas e isentas);

12. Considerando as plantas da construção do edifício apresentadas pela Requerente em 2024, concluíram os serviços de inspeção tributária que, dos 2000,30 m2 do edifício, 677,86 m2 são afetos ao desenvolvimento de atividades isentas, sendo o remanescente afeto a atividades sujeitas e não isentas;

13. Em consequência das correções efetuadas, foram emitidas, em 2025, as liquidações adicionais de IVA e liquidações de juros compensatórios em causa nos presentes autos, respeitantes aos exercícios de 2018 e 2019;

14. As liquidações impugnadas foram pagas pela Requerente dentro do prazo de pagamento voluntário, que terminou em 25/02/2025 e 26/02/2025;

15. O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral foi apresentado em 21/05/2025.

 

b.         Factos não provados:

Com interesse para os autos, não resultou qualquer facto não provado.

 

c.         Fundamentação da matéria de facto:

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pelas partes, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.

 

V.         O DIREITO:

Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.

 

a.    Da caducidade do direito à liquidação:

De acordo com a Requerente, não poderia a Requerida liquidar, em 2025, imposto respeitante aos exercícios de 2018 e 2019, por já haver, à data, caducado o respetivo direito.

Para tanto defende, em síntese, que, atento o disposto no artigo 45º nºs 1 e 4 da Lei Geral Tributária, o direito de liquidação apenas poderia ser exercido pela Requerida no prazo de 4 anos, contados do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto.

Sendo que, conforme resulta do disposto no artigo 7º do CIVA, o imposto tornou-se exigível no momento da realização das prestações de serviços subjacentes.

Em sentido inverso, defende a Requerida que, in casu, é aplicável o disposto no artigo 45º nº 3 da Lei Geral Tributária, não se verificando, em consequência, qualquer caducidade do direito à liquidação do imposto.

Entendimento este com o qual desde já adiantamos concordar.

Vejamos:

O princípio da neutralidade do IVA impõe que, em regra, o imposto seja suportado pelo consumidor final. 

Para obter tal desiderato, prevê-se a possibilidade de dedução do imposto suportado a montante nas operações tributáveis efetuadas.

O direito à dedução nasce, como resulta do disposto no artigo 22º nº 1 do CIVA “no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º” e pode ser exercido, sem prejuízo de disposições especiais, “até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente.” – cfr. artigo 98º nº 2 do CIVA.

Verificando-se que a dedução de imposto a que haja lugar supera o montante devido pelas operações tributáveis no período correspondente, o excesso apurado a favor do sujeito passivo será deduzido nos períodos de imposto seguintes (22º nº 4 do CIVA). 

Se passarem 12 meses relativos ao período em que se iniciou o excesso, persistindo um crédito a favor do contribuinte, este poderá solicitar o seu reembolso ou efetuar o seu reporte para períodos seguintes (22º nº 5 do CIVA).

No caso dos autos, existindo disposição expressa, não se aplica o prazo geral de caducidade do direito à dedução previsto no artigo 98º nº 2 do CIVA, sendo antes aplicável o disposto no artigo 24º nº 4 do IVA, que prevê o regime do IVA suportado nas despesas de investimento na construção de imóveis por sujeitos passivos, aplicado em atividades sujeitas e não sujeitas.

Assim, o contribuinte pode exercer o direito à dedução no ano do início da ocupação/utilização e nos 19 anos seguintes, sendo, durante este período, feito o apuramento anual da eventual divergência entre o IVA deduzido e o que seria possível deduzir.

Donde decorre que, podendo o contribuinte exercer o direito a dedução no prazo de 20 anos (ano do início da utilização e 19 anos seguintes), o direito da Requerida liquidar o imposto pode ser exercido no mesmo prazo, atento o disposto no artigo 45º nº 3 da LGT.

Note-se que, no caso dos autos, e atento o prazo alargado que a Requerente tem para deduzir o imposto suportado nas despesas de investimento na construção de imóveis, não se justifica, pelas razões de segurança jurídica subjacentes ao regime da caducidade do direito de liquidação, que o prazo para a Requerida liquidar o imposto seja reduzido ao prazo geral de caducidade de 4 anos, previsto no artigo 45º nº 1 da LGT.

Como se refere no Acórdão do STA nº 0303/07, de 12-07-2007, disponível in www.dgsi.pt, que, embora reportado a uma situação de pedido de reembolso, tem inteira aplicação nos autos, “a Administração Tributária não está limitada pelo prazo de caducidade do direito à liquidação, podendo efectuar correcções às declarações dos contribuintes relativas ao período em relação ao qual é pedido o reembolso, mesmo que anteriores àquele prazo de caducidade.

Isto porque, conforme muito bem se explica no citado aresto, “o prazo de caducidade do direito liquidação, atualmente previsto no art. 45.º da LGT, reporta-se a atos de liquidação de tributos, que são atos que declaram uma obrigação tributária”, sendo “apenas em relação a estes atos de liquidação, em sentido estrito, que provocam uma modificação na situação tributária do contribuinte, definindo a existência de uma obrigação (que através desse ato se torna certa, líquida e exigível, inclusivamente por via coerciva no caso de não cumprimento voluntário), que se justifica, por evidentes razões de segurança jurídica, que se limite o período de tempo em que tais atos podem ser praticados. Não é esse, porém, o caso dos atos que recusam o reembolso de IVA, pois deles não resulta para os contribuintes qualquer obrigação que não tivessem anteriormente.”

Concluindo-se, assim, “não haver suporte legal para aplicar o prazo de caducidade do direito de liquidação aos atos que apreciam pedidos de reembolso de IVA, por não serem atos que declaram uma obrigação tributária do contribuinte em relação à Administração Tributária, não se trata de uma situação idêntica, que justifique a aplicação analógica do referido art. 45º.” 

Assim, tendo as liquidações impugnadas, respeitantes aos exercícios de 2018 e 2019, sido emitidas em 2025, em consequência das correções efetuadas pelos serviços de inspeção tributária, conforme resulta da matéria de facto provada (ponto 13), não se verifica a caducidade do direito à liquidação do imposto por parte da Requerida.

Improcede, assim, a exceção de caducidade do direito à liquidação invocada pela Requerente.

 

b.    Da ilegalidade das liquidações impugnadas:

A Requerente defende, em síntese, que, destinando-se o “...” ao desenvolvimento de atividades isentas e de atividades sujeitas e não isentas, o IVA por si suportado na aquisição dos serviços de construção civil inerentes à sua construção pode ser deduzido com base na afetação real que a Requerente faça, em cada momento, das instalações a atividades isentas e a atividades sujeitas.

Podendo tal dedução ocorrer no ano da ocupação/utilização do edifício e nos 19 anos seguintes, por via da aplicação do disposto no artigo 24º nº 4 do CIVA e tendo por base a concreta afetação que a Requerente faça do edifício ao longo desse período.

Não podendo, assim, a Autoridade Tributária ficcionar que, em 2024, a situação física e funcional do imóvel era a mesma que existia nos anos de 2018 e 2019, anos em que foram efetuadas as deduções em causa nos autos, corrigindo, assim, num só ano, todo o IVA deduzido.

Donde conclui pela ilegalidade das liquidações efetuadas.

Em sentido inverso, defende a Requerida que as correções foram efetuadas com base no método da afetação real dos bens e serviços utilizados nas operações ativas realizadas e não com base no pro rata, ao contrário do que a Requerente alega, não sendo, por isso, aplicável aos autos o disposto no artigo 24º nº 4 do CIVA.

Concluindo assim pela legalidade das liquidações efetuadas.

Cumpre apreciar:

Tal como resulta dos factos provados – cfr. pontos 3 e 4 – o edifício do..., construído pela Requerente entre 2018 e 2022, destinou-se, por um lado, à instalação da sede da Requerente e, por outro lado, à prestação de serviços, quer afetos ao clube juvenil, quer afetos a residência.

Decorre do disposto no artigo 1º nº 1 a) do CIVA que estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal,  sendo consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituam transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens – cfr. artigo 4º nº 1 do CIVA.

Pese embora este princípio geral de tributação, a lei prevê a isenção de imposto de determinadas operações, em função da atividade concretamente desenvolvida pelos sujeitos passivos.

Assim, no que aqui interessa, dispõem os números 7 e 8 do artigo 9º do CIVA que se encontram isentas de imposto:

7) As prestações de serviços e as transmissões de bens estreitamente conexas, efetuadas no exercício da sua atividade habitual por creches, jardins-de-infância, centros de atividade de tempos livres, estabelecimentos para crianças e jovens desprovidos de meio familiar normal, lares residenciais, casas de trabalho, estabelecimentos para crianças e jovens deficientes, centros de reabilitação de inválidos, lares de idosos, centros de dia e centros de convívio para idosos, colónias de férias, albergues de juventude ou outros equipamentos sociais pertencentes a pessoas coletivas de direito público ou instituições particulares de solidariedade social ou cuja utilidade social seja, em qualquer caso, reconhecida pelas autoridades competentes, ainda que os serviços sejam prestados fora das suas instalações; 

8) As prestações de serviços efetuadas por organismos sem finalidade lucrativa que explorem estabelecimentos ou instalações destinados à prática de atividades artísticas, desportivas, recreativas e de educação física a pessoas que pratiquem essas atividades.” 

 

Assim, dúvidas não restam que, no edifício do ..., a Requerente exerce atividades sujeitas a IVA (prestação de serviços afetos a residência) e atividades isentas de imposto (sede e prestações de serviços afetos ao clube juvenil).

A Requerente é, pois, um sujeito passivo misto, que realiza operações ativas sujeitas a imposto e operações ativas isentas de imposto.

Por outro lado, resulta igualmente dos factos provados – cfr. ponto 5 – que a Requerente liquidou e deduziu, nos exercícios correspondentes à respetiva liquidação, a totalidade do IVA liquidado, respeitante aos serviços de construção civil por si suportados com vista à construção do edifício do ... .

É certo que a Requerente tem direito a deduzir o IVA que tenha liquidado, por aplicação da regra da inversão prevista no artigo 2º nº 1 j) do CIVA, sendo o direito à dedução do IVA suportado a montante nas operações tributáveis efetuadas corolário do princípio da neutralidade do IVA, que impõe que o imposto seja suportado pelo consumidor final.

O direito à dedução e a forma da sua efetivação encontram-se previstas nos artigos 19º a 26º do CIVA.

No caso de sujeitos passivos mistos, que efetuam operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada nos termos previstos no artigo 23º do CIVA, que determina que, nesta hipótese, a dedução do imposto deve ser efetuada, sempre que possível, pela afetação real dos bens e serviços utilizados nas operações realizadas.

Estabelecendo o 23º nº 1 b) do CIVA que, tratando-se de bens ou serviços utilizados para a realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica,  parte das quais não conferem direito à dedução, o imposto dedutível deve ser determinado mediante a utilização de uma percentagem de dedução determinada de acordo com o nº 4 do mesmo preceito, sem prejuízo de o sujeito passivo poder optar pela afetação real nos termos do nº 2.

Assim, uma vez que os serviços de construção civil adquiridos pela Requerente o foram para a construção do edifício do ..., onde a Requerente exerce atividades que conferem direito a dedução e atividades que não conferem direito a dedução, deveria a Requerente, como bem defende a Requerida, ter procedido à separação/afetação das aquisições que seriam destinadas à atividade com dedução de imposto (aquisições para a atividade sujeita) das restantes, que não conferem direito à dedução (aquisições para a atividade não sujeita).

No caso dos autos, a percentagem de afetação dos bens e serviços e do correspondente imposto dedutível foi calculada pela Requerida tendo por base as áreas do edifício concretamente afetas a cada uma das atividades sujeitas e não sujeitas – cfr. ponto 11 da matéria de facto provada –, não havendo qualquer impedimento à aplicação deste método objetivo, escolhido pela Requerida de entre vários critérios possíveis.

Para o efeito, a Requerida teve em consideração as plantas apresentadas pela Requerente em 2024, concluindo que, dos 2000,30 m2 do edifício, 677,86 m2 eram afetos ao desenvolvimento de atividades isentas, sendo o remanescente afeto a atividades sujeitas e não isentas - cfr. ponto 12 da matéria de facto provada.

Donde concluiu que, do total do imposto deduzido pela Requerida, 33,89% (677,86 / 2000,30), corresponde a imposto não dedutível, efetuando, em consequência, as correspondentes correções.

Isto porque, conforme resulta do disposto no nº 6 do artigo 23º do CIVA, a percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efetuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objetivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afetação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efetuadas.

No que diz respeito à regularização das deduções efetuadas, dispõe o número 4 do artigo 24º do CIVA que, no caso de sujeitos passivos que determinem o direito à dedução nos termos do n.º 2 do artigo 23.º, a regularização das deduções relativas aos bens referidos nos números 1 e 2 tem lugar quando a diferença entre a afetação real do bem no ano do início da sua utilização e em cada um dos 4 ou 19 anos civis posteriores, respectivamente, representar uma alteração do IVA dedutível, para mais ou para menos, igual ou superior a € 250,00, sendo aplicável o método de cálculo previsto no número anterior, com as devidas adaptações.

Do referido preceito resulta, pois, que o IVA suportado nas despesas de investimento na construção de imóveis destinados ao exercício de atividades sujeitas e de atividades isentas está sujeito a regularização no prazo de 20 anos (ano do início da utilização do bem e 19 anos seguintes), sendo feito anualmente o apuramento da eventual divergência entre o IVA efetivamente deduzido e o que seria passível de ser deduzido em cada um desses anos, em face da concreta afetação verificada.

Conforme resulta do disposto no artigo 24º nº 3 c) do CIVA, aplicável ex vi parte final do nº 4 do artigo 24º do CIVA, se, em cada um desses 20 anos, se verificar divergência superior a € 250,00, só é feita a regularização de 1/20.

Tendo em conta o regime exposto, não se vislumbra que ao sujeito passivo esteja vedado deduzir o IVA todo durante a fase de construção, dependendo a necessidade de regularização da afetação que vier a ser dada no ano do início da utilização e nos 19 anos seguintes.

Assim, não se vislumbra que o IVA deduzido pela Requerida o tenha sido indevidamente, já que o sujeito passivo pode fazer a dedução de acordo com a afetação que tenciona vir a fazer à atividade isenta. Poderá eventualmente verificar-se necessidade de regularização no ano do inicio da utilização ou nos 19 anos posteriores, em função do que vier a ser concretamente verificado quanto à afetação. Mas tal não impede, insiste-se, o contribuinte de deduzir o imposto de acordo com a afetação que pretende vir a fazer.

No caso dos autos, verifica-se que a Requerida não cumpriu o disposto no artigo 24º nº 4 do CIVA, pois que não fez o cálculo anual segundo o preceituado no n.º 3 do mesmo preceito, tendo antes considerado indevida a dedução de IVA na proporção da ocupação/afetação a atividade isenta verificada em 2022 (ano do início da utilização) e, de uma só vez, liquidando adicionalmente todo o IVA deduzido e não apenas os 1/20 que deveriam ser regularizados em cada um dos exercícios de 2022, 2023 e 2024.

Insiste-se que o contribuinte não tem forçosamente de manter as percentagens de  ocupação nos termos que estavam em 2022, 2023 e 2024 e, inclusivamente, poderia e poderá afetar posteriormente toda a construção ou a maior percentagem dela à atividade tributada e, nesse caso, em cada um dos anos posteriores será menor ou poderá mesmo não haver nada a regularizar.

Donde resulta que as liquidações impugnadas são ilegais, por violação da lei, ilegalidade essa que se impõe declarar.

Em face de tudo quanto ficou exposto, resulta manifesta a procedência do pedido de pronúncia arbitral no que diz respeito ao pedido de declaração de ilegalidade das liquidações impugnadas.

A Requerente peticiona ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, por se ter verificado erro imputável aos serviços, ao que a Requerida se opõe.

 

Sobre os juros indemnizatórios, dispõe o artigo 43º nº 1 da LGT:

 

“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

No caso ora em apreciação, o erro que afeta as liquidações impugnadas é imputável à AT, que liquidou o imposto sem qualquer suporte factual ou legal, pelo que dúvidas não existem de que tem a Requerente direito ao recebimento dos juros indemnizatórios, calculados desde a data do pagamento do imposto e juros compensatórios, até à data do processamento da correspondente nota de crédito.

 

VI.       DECISÃO:

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:

i.       Julgar improcedente a caducidade do direito à liquidação do imposto;

ii.     Declarar a ilegalidade das liquidações impugnadas, por vício de violação de lei;

iii.    Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente do valor por esta indevidamente pago, no montante de € 99.303,36, acrescido de juros indemnizatórios, calculados às taxas legais, desde a data do pagamento do imposto e juros compensatórios, até ao processamento da respetiva nota de crédito.

 

VII.     VALOR DO PROCESSO

Fixa-se à causa o valor de € 99.303,36, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII.    CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida, por ser a parte vencida.

 

Lisboa, 14 de novembro de 2025

 

 

Os Árbitros,

 

Jorge Lopes de Sousa

(Árbitro Presidente)

 

Alberto Amorim Pereira 

(Árbitro adjunto e Relator)

 

Júlio Tormenta

(Árbitro adjunto)