Sumário
A anulação administrativa do ato tributário de IRS impugnado na ação arbitral implica a destruição dos respetivos efeitos jurídicos constitutivos com eficácia retroativa, retirando à lide arbitral o seu objeto. Ocorre, assim, uma situação de impossibilidade superveniente da lide, por não poder anular-se juridicamente o que não existe, com a consequente extinção da instância arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Clotilde Celorico Palma e Sónia Martins Reis, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15 de julho de 2025, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., doravante “Requerente”, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., n.º ... Andar, ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º1, alínea a) e 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugados com os artigos 102.º e 99.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade, e consequente anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2024..., apresentada contra a liquidação de IRS com o n.º 2024..., a demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2024... e a demonstração de acerto de contas n.º 2024..., todos referentes ao período de tributação de 2019 e, em consequência, serem parcialmente anuladas as referidas liquidações, por errónea quantificação dos factos tributários, sendo a AT condenada no reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor, perfazendo o valor total de € 266.517,70.
Neste âmbito, juntou aos autos os seguintes documentos:
a) ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2024... referente ao ano de 2019;
b) ato de demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2024... referente ao ano de 2019;
c) ato de demonstração de acerto de contas n.º 2024..., referente ao ano de 2019.
Como causa de pedir, a Requerente contesta que tenha auferido uma mais-valia relativa a valores mobiliários no montante de € 894.548,59, apurada pela AT na sequência do processo de inspeção tributária referente ao exercício de 2019, argumentando que o apuramento da referida mais-valia está em total desconformidade com as normas constantes do Código do IRS.
A Requerente refere que da análise do relatório de inspeção ao ano de 2019 verifica-se que a AT, em sede de inspeção tributária e, perante a análise aos elementos comunicados pelo Banco Pictet, considerou como valor de aquisição o montante de “0”, pelo que a mais-valia apurada corresponde, inteiramente, ao valor de realização.
A Requerente vem arguir que a posição assumida pela AT em sede inspetiva não só se afigura altamente penalizadora para a Requerente, como não tem aderência à realidade e é manifestamente ilegal, na medida em que não atendeu à parte final da alínea a) do artigo 48.º do Código do IRS, que estabelece que, na falta da documentação do custo da aquisição dos valores mobiliários, deverá atender-se ao “da menor cotação verificada nos dois anos anteriores à data da alienação, se outro menos elevado não for declarado”.
A Requerente acrescentou ainda que, em face da documentação junta ao processo de reclamação graciosa, era por demais evidente que o custo de aquisição dos referidos ativos jamais poderia corresponder a “0”, porquanto, subsistindo dúvidas quanto ao valor da aquisição dos ativos (com o correspondente muito relevante impacto ao nível da mais-valia a apurar), a AT deveria ter anulado parcialmente as correções efetuadas em sede de reclamação graciosa, nos termos do princípio in dubio contra fiscum, previsto no artigo 100.º do CPPT.
Continuou a Requerente argumentando que, ao sujeitar a tributação o montante total de € 894.548,59, o qual corresponde ao valor da realização, sem atender a qualquer montante referente ao valor de aquisição, é gerada uma injustiça fiscal aberrante e violadora dos direitos fundamentais dos contribuintes, porquanto tal montante não consubstancia qualquer tipo de rendimento na esfera jurídica da Requerente, estando em clara contradição com o princípio constitucional da capacidade contributiva, a que alude o n.º 1 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa.
Concluiu, por fim, a Requerente que, tendo a AT erroneamente apurado (i) o imposto em falta no montante de € 254.186,24 - ao invés do montante de € 18.781,24 -, e (ii) os juros compensatórios devidos - de € 33.594,43, ao invés de € 2.482,21 -, verificou-se que a liquidação de IRS contestada deveria ser parcialmente anulada, por errónea quantificação dos factos tributários, o que se invocou nos termos da alínea a) do artigo 99.º do CPPT, aplicável por força da alínea a) do artigo 29.º do RJAT e, sendo anulado parcialmente o ato de liquidação de imposto objeto do presente pedido, deve o montante indevidamente pago ser restituído à Requerente, acrescido de juros indemnizatórios à taxa máxima legal em vigor, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, contados desde a data em que ocorreu o respetivo pagamento até ao seu integral reembolso.
Em 5 de maio de 2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado em 5 de maio foi aceite e, de seguida, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos doRJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 15 de julho de 2025.
Em 17 de julho de 2025, o Tribunal Arbitral proferiu despacho de notificação da Requerida para apresentação de resposta no prazo de 30 dias.
Por requerimento de 8 de agosto de 2025, a Requerida veio aos autos comunicar a revogação total dos atos contestados, maxime, dos atos de liquidação de IRS respeitantes ao ano de 2019, com o consequente reembolso das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios.
Em 11 de agosto de 2025, o Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar, querendo, sobre a inutilidade superveniente da lide arbitral.
Em 26 de agosto de 2025 e, na sequência do despacho arbitral de 11 de agosto de 2025, a Requerente informou que, àquela data ainda não tinha sido notificada de qualquer decisão de revogação dos atos tributários contestados, mas que “5. (…) partindo do pressuposto que a pretensão da Requerente foi totalmente atendida, ou seja, que a revogação ora comunicada ao Tribunal Arbitral incide sobre (i) a totalidade do montante contestado (€ 266.517,70) – correspondente à correção constante do Quadro 2 do ponto V. do relatório de inspeção tributária junto com o pedido arbitral como Documento 6, onde foi (indevidamente) apurada uma mais-valia de € 894.548,59, ao invés de uma mais-valia de € 53.814,69 (acrescida de juros) –; (ii) com o consequente reembolso do montante indevidamente pago, no citado montante de € 266.517,70 e, bem assim, (iii) com o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido (06.02.2024) até à emissão da nota de crédito”, não tem qualquer objeção à declaração da inutilidade superveniente da lide arbitral, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).
Em 3 de setembro de 2025, veio a Requerente, tendo sido notificada do despacho de 1 de setembro de 2025, no âmbito do qual a AT foi notificada para juntar aos presentes autos o despacho de revogação do ato tributário contestado do IRS do ano de 2019, requerer a junção aos presentes autos do despacho de revogação, o qual foi notificado à Requerente através do Ofício n.º ..., de 28 de agosto de 2025, recebido em 29 de agosto de 2025.
Em 4 de setembro de 2025, foram a AT e a Requerente notificadas da admissão do referido despacho de revogação.
Em 20 de outubro de 2025, veio a Requerente solicitar se estaria em falta alguma informação no processo que obstasse à prolação da referida decisão arbitral.
II. Fundamentação
1. Anulação Administrativa do Ato Tributário Impugnado - Impossibilidade Superveniente da Lide
Os atos tributários sindicados, que constituem o objeto desta ação, foram anulados administrativamente.
Nestas circunstâncias, o pedido de anulação da liquidação adicional de IRS e de juros, relativas ao ano de 2019, ficou sem objeto, pois, com a anulação administrativa, os efeitos jurídicos de tais atos foram destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o preceituado
no artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, de 4 de novembro de 2013, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”.
Importa ter em conta que o conceito de “revogação” até à entrada em vigor do novo CPA, em 8 de abril de 2015, na sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, abrangia quer a revogação anulatória comfundamento em ilegalidade, quer a revogação por razões de oportunidade e mérito.
Com o novo CPA, o conceito de revogação administrativa ficou restrito a esta segunda modalidade. Conforme prevê o atual artigo 165.º do CPA, sob a epígrafe “Revogação e anulação administrativas”, a revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade (n.º 1), e a anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade (n.º 2). É neste último segmento que se insere o ato da Sub-Diretora Geral da AT - Área de Gestão Tributária dos Impostos Sobre o Rendimento (IR) que proferiu despacho de revogação dos atos contestados, maxime, atos de liquidação de IRS respeitantes ao ano de 2019, com o consequente reembolso das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios, em discussão nos autos.
Deste modo, a revogação a que se reporta o artigo 79.º da LGT corresponde ao que hoje, à luz do CPA, se denomina de “anulação administrativa”, cujo regime consta dos artigos 163.º “Atos anuláveis e regime da anulabilidade” (anteriores artigos 135.º e 136.º); 166.º “Atos insuscetíveis de revogação ou anulação administrativas” (anterior artigo 139.º) e 168.º “Condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa” (cujo n.º 2 corresponde ao anterior artigo 141.º), todos do CPA.
À face do exposto, conclui-se que a anulação administrativa dos atos tributários controvertidos comunicada pela Requerida ao processo, em 8 de agosto de 2025, dá satisfação à pretensão anulatória deduzida nesta ação, no valor de €266.517,70, retirando à lide arbitral o seu objeto.
Termos em que se julga extinta a instância processual, ao abrigo do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
2. Responsabilidade para Efeitos de Custas
De acordo com o regime geral em matéria de custas, a impossibilidade ou inutilidade da lide é imputável àRequerida, que anulou os atos tributários ilegais após a apresentação do
pedido de pronúncia arbitral pela Requerente, tendo a respetiva comunicação aos autos ocorrido após o decurso do prazode 30 dias previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, solução que se extrai do cotejo dos artigos 4.º, n.º 5 do RCPAT, 12.º, n.º 2 do RJAT, e 527.º e 536.º, n.º 3 do CPC, neste último caso por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Assim, vai a Requerida condenada nas custas do processo.
III. Decisão
À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
(a) Julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide;
(b) Condenar a Requerida nas custas do processo, por ter dado azo à ação.
IV. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de
266.517,70, não impugnado pela Requerida
v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) doCPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
V. Custas
Custas no montante de
4.896,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, 527.º, n.ºs 1 e 2 e 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneae) do RJAT, a cargo da Requerida, uma vez que a inutilidade da lide lhe é imputável, tendo dado causa à ação.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de novembro de 2025
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Clotilde Celorico Palma
Sónia Martins Reis, relatora