Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 385/2025-T
Data da decisão: 2025-11-12  IRC  
Valor do pedido: € 108.506,81
Tema: OIC não Residentes – Retenções na Fonte – discriminação e violação da livre circulação de capitais – arts. 22.º, n.ºs 1 a 3 e 10 do EBF e 63.º do TFUE.
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SUMÁRIO.

I. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.

II. A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível como direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).

III- Desde o Tratado de Maastricht, todas as restrições à circulação de capitais e pagamentos foram suprimidas, tanto entre Estados Membros como com países terceiros.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIPC ..., com sede em..., ... ..., Liechtenstein, na sua qualidade de entidade gestora de D..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I-               RELATÓRIO

 

a)     O Pedido

 

O Requerente pede a anulação de liquidações de IRC (retenções na fonte) operadas pelos seus substitutos tributários, nos anos de 2020 a 2023, no montante total de EUR 108.506,81.

Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que apresentou.

Pede ainda a condenação da Requerida o pagamento de juros indemnizatórios. 

 

b)    O litígio

 

A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art.º. 22 do EBF.

O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.

A Requerida defende a posição contrária à da Requerente, entendendo, nomeadamente, que os regimes fiscais em IRC aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e aos OIC constituídos noutros países (não residentes) não são diretamente comparáveis.

 

c)     Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 17/04/2025.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 26/06/2025.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA. O Requerente respondeu às exceções, juntando mais documentos.

Foi dispensada, sem oposição, a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e a produção de alegações.

 

d)    Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

A seguir se apreciará das exceções alegadas pela Requerida. Não existem outras questões que devam obstar ao conhecimento do mérito.

 

 

 

            Das Exceções

 

A invocação destas exceções pela AT é recorrente (aparece em muitos processos em que é idêntica a questão substantiva a ser decidida), o que não se compreende dado que tais alegações são sistematicamente indeferidas pelos tribunais. 

 

(i)             Sob a epígrafe Inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte

diz, em resumo, a Requerida que se verifica- a exceção dilatória de inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte uma vez que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado para além do prazo de dois anos, e, por conseguinte, a impugnação judicial não foi precedida de impugnação administrativa necessária, conforme impunha o artigo 132.º, n.º 3, do CPPT). 

A Requerida, invocando uma “interpretação conforme a unidade do sistema jurídico”, entende que a possibilidade de o particular poder desencadear o mecanismo de revisão oficiosa não pode inutilizar a exigência legal de impugnação administrativa necessária que consta do artigo 132.º, n.º 3, do CPTT, dentro do prazo aí previsto, a qual constitui um requisito de impugnabilidade dos atos de retenção na fonte. 

 

Apreciando, 

A argumentação acima louva-se numa jurisprudência antiga, que terá ainda seguidores. A “equiparação”, para este efeito, de um pedido de revisão oficiosa à apresentação de um pedido de reclamação graciosa, propugnada pela doutrina[1] e pela jurisprudência[2], é fácil de compreender se pensarmos na razão de ser das reclamações necessárias.  Antes, recordamos que a regra, hoje, é a da impugnabilidade imediata dos atos administrativos lesivos, ou seja, o carácter facultativo das reclamações e outras formas de recursos administrativos

A reclamação prevista no art. 132.º do CPPT obedece a uma razão lógica: seria totalmente incongruente a administração tributária surgir, sem mais, como requerida num processo, judicial ou arbitral, visando a anulação de um ato que não praticou (a autoria é do substituto total) mas a que a lei atribui os efeitos de um ato administrativo (apuramento do quantitativo de imposto exigível) tal qual tivesse sido por ela praticado. A necessidade da reclamação impõe-se como oportunidade de a administração, pela primeira vez se pronunciar. Dando razão ao particular, não haverá necessidade de o processo judicial ter lugar. Se a AT não der razão ao particular (o que deverá fundamentar) teremos então duas partes sufragando entendimentos diferentes, ou seja, um litígio que caberá ao tribunal dirimir. 

Ora é bom de ver que as razões que justificam a necessidade – repete-se excecional[3] - de um recurso administrativo prévio à interposição do recurso judicial se encontram totalmente satisfeitas em caso de pedido de revisão oficiosa. Também aqui a administração, antes da intervenção do tribunal, é chamada a pronunciar-se sobre a legalidade de um ato que não praticou mas cujos efeitos lhe são imputados. Daí a sua equiparação à reclamação necessária enquanto condição (pressuposto processual) do processo de impugnação.

Improcede, pois, esta exceção. 

 

 

(ii)            Sob a epígrafe Da incompetência, em razão da matéria, do tribunal arbitral

a Requerida invoca diferentes exceções: 

A) Erro imputável aos serviços

Transcrevemos do nº 31 da resposta da AT: Mais, estando-se perante um indeferimento tácito, sobre o qual a AT não tomou posição expressa sobre a existência de erro imputável aos serviços, compulsado o pedido de revisão oficiosa apresentado não se retira do mesmo que a Requerente tenha invocado erro de direito imputável à AT, ou que, tendo-o invocado, o comprove invocando, designadamente, que as retenções na fonte se deveram a orientações ou instruções da AT (…). 

Assim, revogado que foi o n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que estabelecia a presunção de que se considerava “imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”, e dispondo a lei nova para o futuro (cf. artigo 12.º do Código Civil), o pedido de revisão oficiosa com fundamento em “erro imputável aos serviços”, incluído no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, passou a exigir, também no caso de autoliquidação, ao contribuinte a prova da imputabilidade aos serviços do erro que invoca.

Dito de forma simples, temos que a AT considera que, por não ter tido qualquer intervenção nas liquidações impugnadas – porque praticadas no quadro de uma substituição fiscal total –, não existe erro imputável aos serviços e, portanto, a Requerente não pode aproveitar do prazo de quatro anos previsto no nº 1 do art. 78º da LGT. 

Apreciando:

 Há, em primeiro lugar, que precisar qual a posição da Requerente nas relações jurídico tributárias em causa: ela surge como substituído fiscal (substituição total), alguém que, formalmente, é um terceiro, ainda que titular de um interesse próprio enquanto contribuinte (aquele que suporta o encargo económico do tributo). Formalmente, os sujeitos passivos são os substitutos (no caso, o banco pagador), aos quais cumpre, em exclusivo (substituição total por aplicação de taxas liberatórias) as obrigações, declarativas e de pagamento, relativas ao imposto. O mesmo é dizer que, tendo presente, em primeiro lugar, o elemento literal da norma, o substituído (substituição total), por não ser sujeito passivo, não pode ser considerado como diretamente afetado pela revogação do n.º 2 do art. 78.º da LGT, que era relativo, apenas, aos sujeitos passivos. 

A questão deve, pois, ser colocada noutros termos, não num plano formal, mas sim num plano substancial: o substituto deve ser considerado como sendo um “serviço” para efeitos do n.º 1 de tal norma, o mesmo é dizer, o erro por ele cometido numa liquidação deverá ser equiparado, para efeitos de reclamação graciosa, ao erro cometido pela própria AT? 

Para responder a esta questão haverá que ter em consideração, nomeadamente: (i) o substituto exerce, por força de lei, funções que, materialmente, são de administração fiscal, praticando atos de liquidação aos quais a lei confere a mesma força jurídica de que gozam as liquidações praticadas pela administração fiscal; (ii) em ambos os casos, estamos perante hétero-liquidações, procedimentos a que o substituído é alheio, a liquidações que não só não são por ele praticadas como sobre as quais não tem qualquer possibilidade de controlo. 

A equivalência material entre as duas situações é evidente. No silêncio de lei expressa, há que concluir que distinguir as duas situações, para efeitos do exercício do direito à revisão oficiosa, criaria uma injustificada discriminação dos contribuintes consoante o grau de “privatização” das funções de administração discal (de liquidação) presentes em cada caso. 

Esta é também a posição jurisprudencialmente dominante, ainda que com nuances ao nível da fundamentação. Citamos, por todos, do sumário do ac. do STA de 09-11-2022, proc. 087/22: assim, nos casos como o dos autos, em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo, de quantias por conta de imposto de selo, cobrado no âmbito de operações de concessão de crédito, e suportado pelas Recorrentes, o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é susceptível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária.

Improcede, pois, esta exceção. 

 

B) Meio processual

 Sustenta a Requerida (41 e ss da resposta): (…) a forma processual de reação contra o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa pode ser a impugnação judicial ou a ação administrativa especial, consoante a decisão comporte, ou não, a apreciação da legalidade do ato de liquidação. No caso concreto, o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é um ato silente, na medida em que foi apenas por efeito da passagem do tempo que se ficcionou a existência de um indeferimento tácito, para efeitos de impugnação arbitral. Ora, tal indeferimento pode consubstanciar e, no caso teria obrigatoriamente que se reportar a um indeferimento por extemporaneidade. Ou seja, tendo em conta que o p.p.a não é interposto para a apreciação direta e nem indireta de uma liquidação adicional, mas apenas para a apreciação de um indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, é evidente que o Tribunal vai ter que decidir se a requerente ainda estava em tempo de apresentar pedido de revisão oficiosa, tendo em conta a existência de erro imputável aos Serviços. (…) Ora, o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT. 

 

Apreciando

Temos alguma dificuldade em compreender este argumentário: o pedido formulado em sede de revisão oficiosa foi o mesmo que é feito no presente processo de impugnação: [que o tribunal] declare a ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte em referência, por vício de violação de lei. A existir uma ficção de indeferimento tácito esta apenas se poderia referir a este pedido. Mais, a fundamentação de um indeferimento ficcionado não pode, também ela, ser ficcionada, ao contrário do que parece pretender a AT. A questão do “erro imputável aos serviços”, já atrás analisada e decidida, surge, no âmbito deste processo, como uma exceção (um pressuposto processual) e não como uma questão de mérito capaz de constituir o objeto primário do processo e, enquanto tal, suscetível de ser determinante relativamente ao meio processual a ser utilizado. 

Improcede, pois, esta exceção. 

 

Restará salientar, num breve aparte, que, quanto a este ponto, a argumentação em análise se baseia com base na tradicional ficção de que o silêncio administrativo para além do prazo legal equivale a um “indeferimento tácito”. Com o que consideramos ser a melhor doutrina[4], diremos que, após a revisão do CPA em 2015, se deixou de poder falar em atos de indeferimento tácito: o incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir os requerimentos que lhe sejam submetidos não dá lugar à formação de qualquer ato tácito, mas é tratado como omissão pura e simples que efetivamente é, ou seja, como um mero facto. Nesse sentido, é hoje afirmado no art. 129.º do CPTA que a falta de decisão administrativa dentro do prazo legal confere ao interessado a faculdade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados. 

O que, no nosso entender, sempre levaria à rejeição liminar desta exceção.

 

(iii)          Ilegitimidade do Requerente 

Embora não o invocando expressamente a título de exceção a Requerida, na sua resposta, afirma que Pela consulta da “Modelo 30 – rendimentos pagos ou colocados à disposição de sujeitos passivos não residentes”, relativas ao período tributário de 2020 a 2023, entregues pelo B... S.A., NIF ..., e C..., NIPC..., verificamos que estas foram declaradas em nome da Requerente, e não do OIC.

A Requerente, replicando, contrapôs que o OIC, segundo a lei que rege a sua constituição, não tem personalidade jurídica, pelo que todas as operações a ele relativas (como as de retenção na fonte), bem como aos subfundos em que se estrutura, surgem em seu nome e não dos OIC’s.

Estas afirmações resultam confirmadas, desde logo, pelo constante do cadastro da própria AT, no qual figura como sujeito passivo a Requerente e não o(s) fundo(s) de que é gestora.  No mesmo sentido outra documentação junta aos autos (doc. 4 e docs 6 a 13 juntos ao PPA).

Assim sendo, esta “objeção” da AT improcede. 

 

(ii) Incumprimento do dever de identificação dos atos tributários

Prossegue a AT afirmando que as guias de retenção na fonte revelam rendimentos pagos nos períodos indicados, no montante € 264.119,47m, de rendimento de juros, tendo sido retido na fonte imposto à Requerente (e não ao OIC) no valor de € 92.441,81 e não o valor peticionado de € 108.506,81.

 

Começaremos por salientar que a AT não põe em causa a existência das retenções na fonte sobre os rendimentos de capital pagos ao Requerente, bem como a entrega ao Estado dos respetivos montantes. Também não põe em causa o correto preenchimento das guias de pagamento que acompanham as entregas do imposto retido na fonte, o qual -note-se) é da responsabilidade exclusiva do substituto tributário, devidamente identificado nos autos. Sendo que, por estar em causa uma forma de substituição total, a Requerente não foi parte em alguma relação jurídico tributária em razão do recebimento dos rendimentos em causa. 

Não cabe aqui apreciar se ou em que medida o sistema informático da AT permite individualizar, a partir das guias de pagamento entregues pelos substitutos tributários (as quais podem referir-se a uma multiplicidade de “retenções”), cada uma das operações de obtenção de rendimentos em causa e o montante de imposto cobrado relativamente a cada uma delas.

O relevante é que, não sendo posto em causa o cabal cumprimento, pelo substituto, das suas obrigações declarativas nem questionada a veracidade destas, a AT não pode exigir “mais prova”, especialmente a alguém que não é, sequer, sujeito passivo, mas tão só contribuinte.

Aliás, é difícil de aceitar a afirmação da AT de que não sabe a “razão” dos montantes de imposto que recebe através de cobrança feita por retenção na fonte.

A haver “dúvidas” (o que não será o caso) sempre cumpriria a AT, em nome do princípio do inquisitório, proceder às diligências necessárias (junto do sujeito passivo, o substituto, e/ou terceiros) para obter os esclarecimentos tidos por necessários. O que não fez!  Não é aceitável que venha, só agora, invocar “dúvidas” pretendendo imputar ao Requerente o ónus do seu esclarecimento.

Improcede, pois, esta, “objeção”.

 

II – PROVA

 

II.1 - Factos Provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)             O “fundo” " D...é residente fiscal no Liechtenstein, país onde tem a sua sede, não possuindo estabelecimento estável em Portugal.

b)             Tal “fundo” é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), atuando sob a supervisão da Finanzmarktaufsicht Liechteinstein, ao abrigo da Gesetz. vom 28. Juni 2011 über bestimmte Organismen für gemeinsame Anlagen in Wertpapieren, que transpõe para a ordem jurídica liechtensteiniense a Directiva 2009/65/CE, do  Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC.

c)             E é administrado e representado pela sua entidade gestora A... AG, igualmente com sede no Principado do Liechtenstein.

d)             O “fundo” encontra-se organizado em sub-fundos o, entre os quais o E... .

e)              Em 2020, o “fundo” auferiu juros com fonte em Portugal, através do referido sub-fundo, no montante de EUR 22.824,72, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante de EUR 7.988,65

f)              Em 2021, o “fundo” auferiu juros com fonte em Portugal, através do referido sub-fundo, no montante de EUR 69.144,75, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante de EUR 24.200,00. 

g)             Em 2022, o “fundo” auferiu juros com fonte em Portugal, através do referido subfundo, no montante de EUR 92.775,00, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante de EUR 32.471,25.

h)             Em 2023, o “fundo” auferiu juros com fonte em Portugal através do referido subfundo, no montante de EUR 125.275,00, os quais foram aí sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante de EUR 43.846,25.

i)               As retenções na fonte de IRC em causa – no montante total de EUR 108.506,81 – foram entregues nos cofres do Estado através das guias de retenção na fonte nº..., de 20 de Agosto de 2020, ..., de 19 de Agosto de 2021, ..., de 20 de Setembro de 2021, ..., de 20 de Setembro de 2022, ..., de 31 de Agosto de 2022, ..., de 20 de Maio de 2023, e..., de 31 de Agosto de 2023, pelo B..., NIPC..., e pelo C..., NIPC..., na qualidade de entidade registadoras e depositárias de valores mobiliários.

j)              A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de liquidação (retenção na fonte) de IRC, o qual não foi objeto de decisão dentro do prazo que, para tal, a lei prevê.

 

Estes factos resultam dos documentos e outras informações juntos aos autos e não originaram qualquer divergência entre as partes quanto à sua materialidade.

 

 

II.1 – Factos não provados.

Não foram alegados factos, tidos por não provados, com relevância para a decisão da causa.

Diferente é a questão (de direito) de saber se a Requerente cumpriu com o ónus de alegar (e, consequentemente, provar) os factos relativamente aos quais tinha o ónus legal de o fazer.

 

É irrelevante o facto de o Requerente ter ou não logrado, no Liechtenstein, deduzir o imposto suportado em Portugal.

Existem duas diferentes questões, a serem objeto de apreciação e decisão sucessiva; se a tributação feita no país da fonte, Portugal, foi legítima à luz dos princípios do Direito da União. Não o sendo – como não o é - a questão seguinte fica necessariamente prejudicada.

 

Na realidade, só no caso de a tributação na fonte se mostrar legítima é que – numa perspetiva jurídica - se pode colocar a questão de saber da questão do direito à dedução no país da residência do imposto pago no país da fonte, de forma a evitar a ocorrência de uma situação de dupla tributação internacional.

 

 III O DIREITO

 

Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.

Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica à dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.

Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último coincide com uma jurisprudência nacional ,versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[5] .

 

Citamos:

37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado Membro não podem beneficiar dessa isenção.

 

38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

 

39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C480/16,

EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.

 

Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.

Resulta irrelevante o facto de a Requerente e os “fundos” por ela geridos estarem sediados no Liechtenstein (e não num estado membro) porquanto a liberdade de circulação de capitais abrange, também, operações com estados terceiros[6]

Sendo a tributação em causa de anular por violação de princípios de direito da união, resultam prejudicadas as demais questões (substantivas) invocadas pela AT, nomeadamente a, já referida, da (im)possibilidade de obtenção de crédito de imposto no estado da residência relativamente às retenções na fonte controvertidas.

 

IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).

Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.

 

V – DECISÃO

 

Pelo exposto, acordam os árbitros em:

a) Anular, por ilegais, a liquidações (retenções na fonte liberatórias) que incidiram sobre dividendos obtidos pela Requerente em 2022 e 2023, a que correspondeu o pagamento indevido de imposto no valor de € 108 506,81.

b) Condenar a Requerida a pagar ao Requerente juros indemnizatórios sobre a quantia referida na alínea anterior, a liquidar nos termos legais, contados desde o dia seguinte ao do indeferimento expresso da reclamação graciosa.

 

Valor: € 108.506,81 correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.

Custas, no valor de € 3.060,00 a cargo da Requerida, por ter sido total o seu decaimento.

 

 

12 de novembro de 2025

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

Maria do Rosário Anjos

 

Nina Aguiar

 



[1] 1CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: Anotado, 2016, pág. 96 e 97

[2] Temos, como exemplos da jurisprudência ora dominante, se não mesmo pacífica, as seguintes decisões arbitrais: 1279/2024-1100/2024; T1131/2024;1093/2024; 1076/2024; 390/2024; 187/2024; 992/2023; 940/2023; 854/2023; 864/2023; T855/2023; T943/2023; 965/2023; 560/2023; 660/2022; 658/2022-T; 821/2021; 661/2022; 505/2022; 506/2022; 45/2022; 495/2022; 474/2022; 746/2021; 711/2021; 817/2021; 135/2021-T; 593/2021; 133/202; 922/2019; 48/2012-T.

[3] 3 Ou seja, as reclamações necessárias são uma exceção à regra constitucional da imediata impugnabilidade os atos administrativos lesivos, pelo que a sua exigibilidade deverá estar sempre sujeita a um escrutínio restritivo.

[4] Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2017, pág. 220 ss.

[5] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao

decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).

 

[6] Artigo 63º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (ex-artigo 56º TCE):

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. 

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.