Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 282/2025-T
Data da decisão: 2025-11-12  IRC  
Valor do pedido: € 32.552,85
Tema: IRC – Retenção na fonte; Organismo de investimento coletivo residente na Alemanha; Liberdade de Circulação de Capitais;
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SUMÁRIO

1.     A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquela. 

2.     A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível como direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).

3.     É ilegal o indeferimento da reclamação graciosa, bem como a liquidação impugnada, a qual deve ser anulada por padecer de vício de violação de lei, concretamente por violação do Direito da União Europeia (artigo 63.º do TFUE).

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.  A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito Alemão, com o número contribuinte português ..., com sede em..., ..., Alemanha (doravante designado de “Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º1, al. a) e 10.º, nº 1, al. a) e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da  Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro. 

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pede:

Nestes termos e nos melhores de direito, solicita-se respeitosamente a V. Exas. que se dignem conceder provimento ao presente pedido de pronúncia arbitral, determinando, em consequência: (i) A anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa previamente apresentada pelo ora Requerente; (ii) Em virtude da procedência do pedido acima, a anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC ora sindicados por vício de violação de lei, em concreto por violação do Direito Comunitário e da CRP, nos termos acima melhor expostos; (iii) O reconhecimento do direito do Requerente à restituição da quantia de EUR 32.552,85, relativa a retenção na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2022, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 22.º do EBF, tudo com as demais consequências legais, mormente o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT; (iv) Com a procedência dos pedidos formulados supra, a condenação da Autoridade Tributária no pagamento das custas de arbitragem.”

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida). 

 

4. O pedido de constituição de Tribunal arbitral foi apresentado em 21-03-2025 e aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 24-03-2025 e seguiu a sua normal tramitação.

 

5. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, al. a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a aqui signatária como Árbitra do Tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11.º, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT. Não se verificou a possibilidade prevista no artigo 13º do RJAT, pelo que, decorrido o prazo aí previsto para a eventual alteração ou revogação do ato impugnado, foi o Tribunal Arbitral constituído em 03-06-2025

 

7. Em 03-06-2025 o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, nos termos do artigo 17º do RJAT, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. A Requerida apresentou a sua resposta, em 07-07-2025, remetendo o respetivo processo administrativo.

 

8. Em 14-07-2025 foi proferido despacho arbitral a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, conferindo às partes o prazo de 10 dias para apresentarem, querendo, alegações escritas. Requerente e Requerida pronunciaram-se, em requerimentos com data de 28-07-2025 e 01-08-2025, respetivamente.

 

II – SÍNTESE DA POSIÇÃO DAS PARTES

 

9. Como fundamento do pedido arbitral, o Requerente alega, em síntese, que é um Organismo de Investimento Coletivo (doravante OIC) não constituído ao abrigo da lei portuguesa, razão pela qual, nos termos dos artigos 94.º n.º1 al. c), 94.º n.º3 al. b), 94.º n.º4 e 87.º n.º4, todos do CIRC, não beneficia do regime previsto no artigo 22.º do EBF, isto é, os dividendos que lhe foram distribuídos no ano de 2022 foram sujeitos a tributação em Portugal por retenção na fonte definitiva à taxa liberatória de 15%..

 

Não obstante, o certo é que uma OIC constituída ao abrigo da lei portuguesa – e, portanto, aqui residente – está, por força do disposto no artigo 22.º do EBF isenta do imposto, não estando, pois, sujeita à retenção na fonte aquando se verifica a distribuição dos dividendos. 

 

E o Requerente sustenta que esse ato de retenção na fonte é ilegal por ser contrário às normas presentes do Direito da União Europeia, fundamentado esse entendimento com base no disposto no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 17.03.2022, proferido no processo AllianzGI-Fonds AEVN (doravante apenas designado como Ac. AllianzGI-Fonds AEVN), com o número do processo C-545/19, o qual decidiu que: 

 

“O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

 

Ora, uma vez que o TJUE sufragou o entendimento segundo o qual o regime constante dos artigos 94.º, n.º 1, c), 94.º, n.º 3, b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes estão sujeitos a retenção na fonte liberatória em sede de IRC a uma taxa de 25%, ao mesmo tempo que prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes, é incompatível com o princípio da livre circulação de capitais, consagrado no artigo 63.º do TFUE. Sucintamente, conclui o Requerente que por força do princípio do primado do DUE, se impõe a desaplicação das normas de direito interno contrárias ao direito da União. E, assim sendo, conclui que, por ter pagado um valor de imposto que se afigura ilegal este deve ser restituído acrescido dos devidos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

10. A Requerida respondeu nos seguintes termos:

 

O Requerente não é um OIC que cumpra as condições requeridas pela Diretiva 2009/65/EC.

As diferenças de tratamento fiscal entre OIC residentes em Portugal e OIC não residentes, apenas viola o Direito Comunitário se não for objetivamente justificado, o que não sucede no presente caso. 

É que pese embora as OIC residentes em Portugal estejam, por força do artigo 22.º do EBF, isentas de retenção na fonte em sede de IRC à taxa liberatória de 25%, a verdade é que estão sujeitas a Imposto do Selo e à Tributação Autónoma à taxa de 23%, o que, por sua vez, as OIC não residentes não estão sujeitas. 

Acresce que, para motivar a existência de uma diferenciação de tratamento objetivamente justificado, o imposto retido na fonte ao Requerente pode dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, tanto na esfera do Requerente, como na esfera dos seus investidores. 

Consequentemente, entende a Requerida que as OIC residentes em Portugal e as OIC não residentes não se encontram em situações objetivamente comparáveis, razão suficiente para o artigo 22.º do EBF não estar em desconformidade com o disposto no artigo 63.º do TFUE. 

Em suma, adianta a Requerida, existe uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas que não corresponde a uma discriminação em substância/material. 

Por sua vez, a Requerida encontra-se subordinada ao princípio da legalidade, razão pela qual não pode aplicar de modo direto e automático decisões do TJUE. 

E inexistindo qualquer ilegalidade, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, mas caso assim não se entenda, sempre se deverá contar os juros desde a dada do indeferimento do pedido de revisão oficiosa. 

 

 

III – Saneamento 

 

12. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º n. º1, al. a) do RJAT. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.

 

IV – Matéria de Facto

 

§1 – Factos Provados

 

13. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)     O Requerente é um organismo de investimento coletivo com residência fiscal na Alemanha e constituído de acordo com esse direito.

b)    Para efeitos fiscais, o Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente e sem estabelecimento estável em Portugal.

c)     No ano de 2022, o Requerente era detentor de participações sociais numa sociedade residente em Portugal, nomeadamente na B..., SGPS, S.A., pela qual auferiu dividendos. 

d)    Os referidos dividendos foram recebidos no ano de 2022 e foram sujeitos a tributação em Portugal por retenção na fonte definitiva, à taxa liberatória de 25%, prevista no artigo 94.º do Código do IRC no montante total de imposto de € 32.552,85 euros

e)     No dia 10 de abril de 2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade do ato de retenção na fonte de IRC relativo aos dividendos auferidos em consequência da sua participação no capital social da sociedade suprarreferida.

f)     No dia 30 de agosto de 2024, o Requerente foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa.

g)    No dia 20 de dezembro de 2024, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

h)    O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 21-03-2025, no qual o Requerente solicitou a anulação do ato de retenção de IRC relativo aos dividendos auferidos em consequência da sua participação no capital social da sociedade suprarreferida, com fundamento na respetiva ilegalidade por violação direta do Direito da União Europeia (UE), bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal e aos juros indemnizatórios. 

 

 

§2 – Factos Não Provados

 

14. Inexistem factos não provados com relevo para a causa. 

 

 

§3 – Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

 

15. Os factos dados como provados resultam da prova documental junta e do processo administrativo. 

 

Alínea a) do elenco dos factos provados:

A natureza jurídica do Requerente é provada através da documentação junta com a petição inicial e no processo administrativo, em particular o documento nº 1 junto com a PI, emitido pelas autoridades fiscais alemãs. Acresce que pese embora a Requerida impugne esse facto, a verdade é que não esclarece – nem este Tribunal olvida compreender – de que modo e em que termos o Requerente não cumpre as condições previstas na Diretiva 2009/65/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de julho de 2009 para ser definida e caracteriza como uma OIC e que permita duvidar de um documento emitido pela autoridade fiscal alemã. 

 

Alínea b) do elenco dos factos provados:

Resulta da prova documental junta, em particular o documento n.º1 junto com a PI e sendo, no mais, um facto reconhecido e mutuamente aceite pelas partes. 

 

Alíneas c) e d) do elenco dos factos provados:

Ambos os factos foram reconhecidos e mutuamente aceites pelas partes. E ainda que assim não fosse, a verdade é que resulta de modo evidente do documento n.º 2 junto com a PI, sendo a entidade emissora desse documento –C...– merecedora da credibilidade que o este Tribunal confere. 

Finalmente, a Requerida aponta a inexistência de prova sobre se existiu, ou não, um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera do Requerente ou dos seus devedores. Todavia, esta questão não assume a relevância que a Requerida lhe atribuiu, uma vez que, conforme resulta do acórdão AllianzGi Fond (processo C-545/19, do Tribunal de Justiça), a diferença discriminatória estabelecida pela legislação portuguesa, entre a tributação de dividendos distribuídos a OIC residentes e não residentes releva independentemente da situação fiscal de que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados de Residência.

 

Alíneas e) a h) do elenco dos factos provados:

Resulta diretamente dos documentos presentes no processo administrativo. 

 

V. Matéria de Direito

 

A.   Da ilegalidade dos atos de retenção da fonte por violação do artigo 63.º do TFUE

 

16. A questão essencial a decidir no presente processo é aferir a compatibilidade entre o princípio da liberdade de circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e o artigo 22.º do EBF, por força do qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residentes estão isentos dessa retenção. 

 

17. E sobre esta questão – em moldes em tudo idênticos – já por muitas vezes os Tribunais Arbitrais, bem como de resto, os Tribunais Administrativos e Fiscais e os Tribunais Superiores se pronunciaram no sentido inequívoco de que o ato de retenção na fonte ora sindicado será ilegal por violar frontalmente o disposto no artigo 63.º do TFUE. Vejamos, pois, se também aqui o mesmo se verifica. 

 

18. Estatui o artigo 63.º n.º1 do TFUE que: “No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”. Ora, é indubitável que se encontra em causa uma restrição ao movimento de capitais entre Estados-Membros, nomeadamente entre Portugal e a Alemanha. 

19. Por sua vez, dispõe o n.º 1 do artigo 22.º do EBF: “São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”. Segundo o n.º 3 do mesmo normativo: “Para efeitos do apuramento do lucro tributável destes organismos, não se consideram os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) – exceto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças – os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1. Os OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional estão também isentos de derrama estadual e derrama municipal, impostos acessórios relativamente ao IRC (cf. artigo 22.º, n.º 6 do EBF). Finalmente, dispõe o n.º 10 do artigo 22.º que “Não existe obrigação de efetuar retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos por sujeitos passivos referidos no n.º 1”.

 

20. A questão que aqui nos ocupa – a compatibilidade entre a isenção da retenção na fonte em sede de IRC dos dividendos distribuídos por sociedades portuguesas a OIC constituídas de acordo com a legislação portuguesa, enquanto que sujeita a tributação por retenção na fonte os dividendos distribuídos por sociedades portuguesas a favor de OIC não residentes em Portugal – já foi alvo de uma apreciação extremamente lúcida por parte do TJUE no acórdão AllianzGI-Fonds AEVN, de 17-03-2002, proferido no processo n.º C-545/19, em que concluiu que: “O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

 

21. Ora, por força do artigo 8.º n.º4 da Lei Fundamental, o Direito da União Europeia tem supremacia relativamente ao Direito Português e, além disso, não cabe a este Tribunal, nem tão pouco a nenhum órgão jurisdicional nacional, reinterpretar as disposições do Direito da União, nem reponderar o tratamento que o TJUE realiza aos argumentos invocados pelos Estados membros. Por consequência, o sentido interpretativo de uma norma da união – como é o disposto no artigo 63.º do TFUE – caberá ao Tribunal de Justiça da União Europeia (cfr. artigo 267.º do TFUE). A este propósito veja-se o acórdão arbitral de 13 de maio de 2024 no âmbito do processo n.º 66/2024-T: “Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).”

 

22. E se é certo que a Requerida não contradiz tudo quanto até então foi exposto, a verdade é que sustenta que não ocorre a violação do disposto no artigo 63.º n.º1 do TFUE, porquanto as OIC residentes em Portugal e as OIC não residentes não se encontram numa situação objetivamente comparável. E fundamenta essa afirmação com base no facto do Requerente, por ser uma OIC não residente, não estar sujeito ao imposto do selo e à tributação autónoma de 23% (cfr. artigos 88.º n.º 11 do CIRC, ex vi artigo 22.º n.º 8 do EBF), enquanto as OIC residentes estão sujeitas a esses impostos. 

 

23. A este propósito importa chamar à colação o entendimento sufragado pelo TJUE no âmbito do Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C-480/19, EU:C:2021:334 onde declarou que: “O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, em consequência, as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE devem ser distinguidas das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente respeite a situações que não sejam comparáveis objetivamente ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (Acórdão de 30 de abril de 2020, Société Générale, C-565/18, EU:C:2020:318, nº 24).”

 

24. Pese embora a argumentação sufragada pela Requerida, a verdade é que a situação de uma OIC residente e de uma OIC não residente como é o Requerente são objetivamente comparáveis. É que o facto de o Requerente não estar sujeito ao imposto do selo e à tributação autónoma não o coloca uma situação objetivamente diferente em relação a um OIC residente no que à tributação dos dividendos de origem portuguesa diz respeito. Acresce que, em bom rigor, não se encontra em causa – como a Requerida pretende mostrar – uma diferença de tratamento em sede de cobrança do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, mas numa verdadeira isenção de imposto, tendo em conta o local de residência do OIC. Este entendimento, aliás, sufragou por inteiro o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no dia 17 de dezembro de 2024 (processo nº 0274/24.1BELRS): ): “53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada geral no n.° 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente 56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes”

 

25. Do exposto resulta de modo evidente que a situação de um OIC residente e de um OIC não residente são objetivamente comparáveis, razão pela qual, não se aplica o disposto no artigo 65.º n.º3 do TFUE. 

 

26. Consequentemente, o ato de retenção da fonte objeto dos presentes autos está ferido de ilegalidade, por desconformidade das normas que o suportam com o artigo 63.º do TFUE, o que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º n.º1 do Código de Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do art.2.º al. c) da LGT e do artigo 29.º n.º1 al. d) do RJAT. Anulação que se estende, por maioria de razão, ao ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa que teve por objeto a legalidade dos atos de retenção. 

 

 

B.    Do Pedido de Condenação em Juros Indemnizatórios

 

27. O Requerente entende, ainda, que a Requerida deve ser condenada ao pagamento dos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º n.º1 da LGT, não se pronunciando quanto à data sobre a qual os juros começam a vencer. Por seu turno, a Requerida, através do acórdão uniformizador de jurisprudência prolatado pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 78/22.6BALSB de 28 de maio de 2025, sufraga a posição segundo a qual apenas são devidos juros indemnizatórios desde a data do indeferimento do pedido de revisão oficiosa. 

 

28. Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. No n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária; d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”. Dito de outro modo, a aplicabilidade do disposto no artigo 43.º n.º1 da LGT depende da existência ou não, in casu, de “erro imputável aos serviços”, isto é, à Requerida. 

 

29. É certo que a Requerida, enquanto autoridade administrativa, não pode escolher não aplicar uma determinada norma jurídica, como o artigo 22.º do EBF e, nesse sentido, essa conduta não pode, evidentemente, ser qualificada como “erro imputável aos serviços” nos termos e para os efeitos do artigo 43.º n.º1 da LGT, mas, antes, como uma consequência da aplicação do princípio constitucional da legalidade da administração (artigo 266.º n.º2 da CRP).

 

30. Não obstante, após a realização da reclamação graciosa pelo Requerente, a Requerida tinha não a possibilidade de desaplicar o disposto no artigo 22.º do EBF, mas a possibilidade de anular o ato de autoliquidação, por violação do disposto no artigo 63.º do TFUE. Aliás, a jurisprudência do TJUE entende que a administração pública, in casu, a Requerida, tem o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias às normas de Direito da União que gozem de efeito direto, como é precisamente o caso do artigo 63.º do TFUE (Acórdão do Tribunal de Justiça de 22-06-1987, Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular o §31). Por consequência, a não anulação da autoliquidação constitui um erro imputável à Requerida nos termos do artigo 43.º n.º1 da LGT.

 

31. Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência no recente acórdão também citado pela Requerida e proferido em 28 de maio de 2025 no âmbito do processo nº 78/22.6BALSB: “Perante a desaplicação de norma legal com fundamento na sua desconformidade com o Direito da União Europeia e perante a inerente anulação das retenções na fonte indevidas, por decisão judicial transitada em julgado, a consequente obrigação da AT de reconstituição da situação ex ante impõe, não apenas a restituição dos montantes indevidamente pagos a título de imposto retido, mas também o pagamento de juros indemnizatórios, computados desde a data do indeferimento, expresso ou tácito, do meio impugnatório administrativo intentado contra as retenções na fonte indevidas até à data do processamento da respectiva nota de crédito.”

 

32. E relativamente ao momento a partir do qual são devidos juros indemnizatórios, importa, pois, considerar o artigo 57.º n.º1 da LGT que dispõe: O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de actos inúteis ou dilatórios.”

 

33. Ora, o Supremo Tribunal Administrativo também já se pronunciou quanto a esta questão no acórdão proferido no processo nº 93/21.7BALSB de 29 de junho de 2022, entendendo que: “De acordo com o probatório da decisão arbitral recorrida, no que diz respeito aos actos tributários que foram objecto de reclamação graciosa (cfr. actos de liquidação de imposto de selo emitidos nos períodos de Fevereiro de 2017 a Dezembro de 2018 - al.J) da matéria de facto supra exarada), foi tal reclamação deduzida em 20 de Março de 2019, mais sendo objecto de indeferimento expresso em 6 de Setembro de 2019 (cfr.al.K) da matéria de facto supra exarada). Neste segmento da instância recursiva, deve chamar-se à colação a doutrina defendida pelo acórdão fundamento, oriundo do Tribunal Central Administrativo Sul, a qual já foi sufragada por diversos acórdãos deste Tribunal e Secção (cfr.v.g.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/01/2017, rec.890/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/05/2018, rec.250/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 7/04/2021, rec. 360/11.8BELRS; ac. S.T.A.-2ª.Secção, 6/10/2021, rec.3009/12.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 9/12/2021, rec.1098/16.5BELRS), e que nos diz: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T. 

Mais se deve recordar que o indeferimento tácito de reclamação graciosa deduzida opera ao fim de quatro meses, prazo esse que é contínuo e se deve contar nos termos do artº.279, do C.Civil (cfr.artº.57, nºs.1 e 3, da L.G.T.; artºs.20, nº.1, e 106, do C.P.P.T.).

Revertendo ao caso dos autos, tendo sido deduzida, a reclamação graciosa, em 20 de Março de 2019, operou o indeferimento tácito da mesma em 22 de Julho de 2019, uma segunda-feira (cfr. artº.279, als. b), c) e e), do C.Civil). Portanto, a mencionada data de 22 de Julho de 2019 deve ter-se como "dies a quo" do cômputo dos juros indemnizatórios no caso concreto, em consequência do que, também nesta parcela, deve ser revogada a decisão arbitral que fixou o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios nas datas do pagamento do imposto”. 

 

34. Pese embora, in casu, o Requerente tenha sido notificado da decisão expressa de indeferimento no dia 20 de dezembro de 2024 (alínea g) do elenco dos factos provados), a reclamação graciosa foi apresentada em 10 de abril de 2024 (alínea e) do elenco dos factos provados), razão pela qual, nos termos do artigo 57.º n.º1 da LGT, a decisão deveria ter sido realizada no prazo de 4 meses, isto é, até no dia 10 de agosto de 2024, dia a partir do qual o Requerente tem, pois, direito a juros indemnizatórios. 

 

35. Portanto, são devidos juros indemnizatórios por estarem preenchidos os respetivos pressupostos, a saber, a ocorrência de erro imputável à Requerida que resultou no pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (artigo 43.º, n.º1e 3 da LGT). 

 

36. Os juros indemnizatórios são calculados à taxa legal supletiva, nos termos do disposto nos artigos 35.º, n.º10, e 43.º n.º4, da LGT, no artigo 559.º do Código Civil e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

 

VI. Decisão 

 

Termos em que delibera este Tribunal julgar totalmente procedente o pedido arbitral e, em consequência, decide:

(a)           Anular os atos tributários de retenção na fonte relativos ao ano de 2022 no montante total de imposto de € 32.552,85 euros, bem como o ato de indeferimento do pedido de reclamação graciosa; 

(b)           Condenar a Requerida no reembolso da quantia de € 32.552,85 euros ao Requerente, e no pagamento de juros indemnizatórios a partir de 10-08-2024;

(c)           Condenar a Requerida nas custas do processo, atento o seu total decaimento. 

 

 

VII. Valor do processo

Nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º1, al. a) do CPPT e no artigo 3.º, n.º2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 32.552,85 euros, valor atribuído pelo Requerente, sem contestação da Requerida.

 

VIII. Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º2 e 22.º, n.º2 do RJAT, no artigo 4.º, n.º4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em €1.836,00, a cargo da parte vencida. 

 

Lisboa, 12 de novembro de 2025

 

 

 

O Tribunal Arbitral

 

 

 

 

 

(Maria da Rosário Anjos)