SUMÁRIO
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A legislação portuguesa de IRC ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado Membro, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds, com acórdão de 17.03.2022.
II. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade.
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As liquidações de IRC por retenção na fonte sobre dividendos distribuídos a um OIC residente noutro Estado-Membro da União Europeia são anuláveis por erro de direito.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (presidente), Prof. Doutor Júlio Tormenta e Dr João Santos Pinto, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 01/09/2025, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., organismo de investimento colectivo ("OIC") constituído ao abrigo da lei Francesa, contribuinte fiscal português n.º ... (“Requerente”), com sede em ..., ... Paris, França, veio, em 20/06/2025, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa em referência e, bem assim, da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas ("IRC") por retenção na fonte ocorridas em 2023, consubstanciada na guia n.º ..., que incidiu sobre os dividendos auferidos em território nacional, de onde resultou o saldo apurado no montante global de € 228.493,05 (duzentos e vinte e oito mil quatrocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos). Peticiona o Requerente também a restituição do montante indevidamente pago (€ 228.493,05), acrescido de juros indemnizatórios.
Em suporte das suas pretensões alega o Requerente, em síntese, que a tributação que incidiu sobre as quantias retidas na fonte foram sujeitas a um tratamento discriminatório em território nacional e que colide com a livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27/06/2025.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 11/08/2025 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 25/03/2025.
Em 06/10/2025, a AT apresentou resposta ao PPA.
Por despacho de 09/10/2025, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT, tendo sido dispensadas alegações finais considerando que as questões estão amplamente discutidas nos articulados e é abundante a jurisprudência sobre o objeto do processo.
Posição do Requerente
O Requerente começa por invocar que a Requerida omitiu o dever de proferir decisão sobre a reclamação graciosa apresentada em relação ao acto tributário (de retenção na fonte) impugnado, a qual considera tempestiva e procedimentalmente adequada. Decorrido o prazo legal de decisão, de quatro meses, formou-se o indeferimento tácito, pelo que considera reunidos os pressupostos da ação arbitral.
Sobre o mérito, defende que a tributação em IRC, por retenção na fonte a título definitivo, sobre os dividendos de fonte portuguesa recebidos em 2023 de sociedade residente em território português, constitui uma discriminação contrária ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), pois, se fosse um OIC residente em Portugal, não seria sujeito à referida retenção na fonte, nos termos do disposto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”).
Sublinha que o regime fiscal previsto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF, ao ser aplicável apenas aos OIC residentes em Portugal, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, e não aos OIC não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, doravante “Diretiva 2009/65/CE”, mesmo demonstrando o cumprimento, no Estado de residência, de exigências equivalentes às da lei portuguesa, como é o seu caso, consubstancia uma restrição às liberdades fundamentais – no caso à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE –, e, em consequência, do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, por violação do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito interno.
Qualifica de discriminatório o tratamento operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b) e n.º 5, 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC, e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF, por estarmos perante uma diferença não justificada que coloca os OIC não residentes, residentes noutro Estado-Membro da União Europeia, numa situação de desvantagem comparativa, tão-só em consequência de não terem a sua residência em Portugal.
Para o Requerente, estamos perante situações objetivamente comparáveis, pois quer no seu caso particular, quer no de OIC residentes, os dividendos pagos por entidades portuguesas podem ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia por mero efeito do exercício da competência tributária do Estado português.
Em suporte do entendimento preconizado, cita a jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente nos processos C-107/94 (Asscher), C-118/96 (Safir), C-55/98 (Vestergaard), C-190/12 (Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C-338/11 a C-347/11 (Santander Asset Management SGIIC), C-387/11 (Comissão/Bélgica), C-493/09 (Comissão/Portugal) e C-480/16 (Fidelity Funds); e jurisprudência arbitral tributária do CAAD nos processos n.ºs 90/2019-T; 528/2019-T e 11/2020-T, entre outros. E, se dúvidas houvesse, afirma que estas foram definitivamente superadas pelo recente acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN.
Acrescenta que, para que uma legislação fiscal discriminatória como a portuguesa pudesse ser considerada compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, seria necessário que a diferença de tratamento fosse justificada por razões imperiosas de interesse geral, fossem elas a necessidade de: (i) salvaguardar a coerência do regime fiscal português, (ii) garantir a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, (iii) evitar a diminuição de receitas fiscais, ou (iv) garantir a eficácia dos controlos.
Conclui pelo pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IRC por retenção na fonte (sobre dividendos pagos em 2023), fundada em erro de direito, e peticiona a restituição do imposto retido acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT, desde a data da entrega da prestação tributária até ao seu reembolso.
Posição da Requerida
A Requerida começa por salientar que a guia de pagamento da retenção na fonte indicada pelo Requerente apresenta valores muito superiores ao reclamado, pelo que é impossível a confirmação do pedido.
Alega ainda que foi solicitada informação à Direção de Serviços de Relações Internacionais, através da Comunicação Interna n.º ...2025..., de 28/07/2025, com o objetivo de apurar se tinham sido pedidos ou efetuados quaisquer reembolsos relativos aos rendimentos supra referidos.
Em resposta, a referida Direção de Serviços esclareceu, por intermédio da Comunicação Interna n.º ...2025..., de 06/08/2025 (também remetida à DSCJC), o seguinte:
“Relativamente à existência de pedidos de reembolso instaurados por esta Direção de Serviços em nome da entidade não residente A..., NIF ..., informa-se que, após consulta da aplicação local RELINT, em uso nesta Direção de Serviços, e da aplicação central SGRI, não foram encontrados registos de pedidos de reembolso de imposto português ao abrigo de CDT em nome da referida entidade, conforme anexo “NIF ...”.
Sobre a alegada violação do direito da União Europeia, começa por referir, na esteira dos acórdãos Schumacker, C-279/03, e Truck Center, C-282/07, que, em matéria de impostos diretos, a situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável, pois apresenta diferenças objetivas do ponto de vista do rendimento, da capacidade contributiva e da situação familiar ou pessoal, pelo que o tratamento diferenciado não é discriminatório e está plenamente justificado dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português (v. acórdãos Bachman, C-204/90; Comissão/Bélgica, C-300/90; e Marks & Spencer, C-446/03). Invoca ainda os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de fevereiro de 2013, processo n.º 01435/12, e de 27 de novembro de 2013, processo n.º 0654/13, de 27 de novembro.
A este respeito, assinala que a exclusão de tributação dos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (v. artigo 22.º, n.º 3 do EBF) é contrabalançada com a criação de uma taxa de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC [da verba 29]. Daí resulta uma tributação trimestral, à taxa de 0,0025%, sobre o valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa de 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC. Desta tributação em Imposto do Selo ficam excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
Também assinala que os OIC com sede em Portugal estão sujeitos a tributação autónoma, nos termos previstos no 88.º, n.º 11 do Código do IRC, por remissão do artigo 22.º, n.º 8 do EBF, o que não sucede com os demais OIC.
Por outro lado, aduz que, mesmo que o Requerente não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal, também não está demonstrado que este imposto não possa vir a ser recuperado pelos investidores.
Logo, atento o exposto, não pode afirmar-se que as situações em que se encontram os OIC residentes e aqueles constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos de fonte portuguesa, sejam objetivamente comparáveis, nem concluir-se que o regime fiscal dos OIC - que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em desconformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE. Do seu ponto de vista, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º [n.º 10] do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os “dividendos” auferidos em Portugal pelo Requerente, antes, pelo contrário.
O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas a que não corresponde uma discriminação em substância Além de que não compete à AT avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, nem pode deixar de aplicar as normas legais internas que a vinculam.
A Requerida sustenta que a distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal é passível de ser qualificada como movimento de capitais na acepção do artigo 63.º do TFUE e que para se avaliar se o tratamento fiscal é menos vantajoso para os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º [n.º 10] do EBF, tem de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte ao OIC não residente e os impostos - IRC (por tributação autónoma) e Imposto do Selo - que incidem sobre os residentes, que podem exceder 23% do valor bruto dos dividendos.
Além do mais, afirma que o imposto retido ao Requerente é passível de dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, tanto na esfera deste, como na dos investidores. E que o Requerente não esclareceu/provou “se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera da própria Requerente ou dos investidores”.
Defende que a jurisprudência do Tribunal de Justiça não permite retirar a conclusão de que a retenção na fonte constitui uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital. Entende que a retenção na fonte efetuada sobre os dividendos pagos ao Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação, devendo ser mantida na ordem jurídica.
Acrescenta ainda que, mesmo a admitir a comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, seguindo o acórdão de 9 de julho de 2014, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 1435/12, o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida pelo n.º 1 do artigo 63.º do TFUE.
Adicionalmente, de acordo com a posição expressa no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 19/10.3BELRS, de 7 de maio, para se concluir pelo carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as entidades não residentes, o Requerente teria de demonstrar que suportara uma tributação mais elevada no seu conjunto, o que não se verificou. Neste sentido, remete para o acórdão Gerritse, de 12 de junho de 2003, processo C- 234/01, concluindo que o Requerente não fez prova da discriminação proibida, o que lhe competia (v. artigos 74.º da LGT, 342.º e 348.º do Código Civil).
Sobre os juros indemnizatórios, a Requerida não vislumbra qualquer ilegalidade nos atos tributários (de retenção na fonte) contestados, pelo que considera não haver lugar ao seu pagamento, concluindo pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
III. QUESTÃO DECIDENDA
Face à exposição das partes nos respetivos articulados e aos documentos apresentados, a questão controvertida nos presentes autos é a de saber se a retenção na fonte de IRC, a título definitivo, sobre dividendos pagos a OICs não residentes em Portugal é ilegal por violação da liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º do TFUE, em resultado da aplicação do regime legal previsto no artigo 22.º do EBF.
IV. DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
A. O Requerente é um OIC, constituído e a operar sob a legislação Francesa, sob a designação de Fond Commun de Placement, com sede e direcção efectiva em França e supervisionado pela AMF. [Doc. n.º 1 e 3 do PPA]
B. O Requerente é administrado pela sociedade B..., entidade com residência em França, em..., ..., ... Paris. [Doc. n.º 3 PPA]
C. O Requerente investiu em participações sociais de sociedade com sede em Portugal. [Doc n.º 4 e 5 do PPA]
D. Em 2023 o Requerente auferiu dividendos da sua participação no capital social dessa sociedade no valor de € 913.972,20. [Doc n.º 4 e 5 do PPA]
E. Os dividendos auferidos pelo Requerente foram objecto de retenção na fonte a título definitivo à taxa de 25%, (cf. artigo 94.º do Código do IRC), como melhor se discrimina na tabela infra: [Doc n.º 4 e 5 do PPA]
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Identificação da entidade distribuidora de dividendos
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Data do pagamento
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guia de retenção na fonte
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dividendos
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Retenção na fonte (25%)
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C...
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03/05/2023
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…
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€ 913.972,20
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€ 228.493,05
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F. A retenção na fonte de IRC em causa, no montante total de € 228.493,05, foi efectuada e entregue junto dos cofres do Estado, através da guia de retenção na fonte n.º ..., de 03 de Maio de 2023, pelo Banco D..., S.A., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC. [Doc n.º 4 PPA]
G. Em 23/12/2024, o Requerente deduziu reclamação graciosa contra o acto de retenção subjacente. [Doc 1 PPA]
H. Volvidos mais de 4 meses sobre a data da apresentação da referida reclamação graciosa, o Requerente ainda não foi notificado pela AT de decisão final em sede do correspondente indeferimento tácito.
FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
Sobre o valor dos dividendos e da retenção na fonte efetuada ao Requerente, importa notar que se encontram devidamente suportados pelos documentos juntos por aquele, tendo sido identificadas a sociedade distribuidora/pagadora dos dividendos, as respectivas importâncias (de dividendos e retenção) e o número da guia de pagamento apresentada pelo substituto tributário, pelo que não se verifica qualquer fundamento para a sua não aceitação. A circunstância de a guia de pagamento entregue pela entidade registadora e depositária – Banco D..., S.A. - conter valores superiores de retenções da fonte não inquina a sua força probatória, pois, entidades dessa natureza agem como custodiantes para diversos clientes, pelo que compreendem outras operações além das do Requerente. Problemático seria se o seu valor fosse inferior. Adicionalmente, ao contrário do que afirma a AT não é “impossível” confirmar os valores, podendo-o ter feito mediante o uso das suas prerrogativas de autoridade. Se tal não sucedeu, sibi imputet, não tendo sido especificado qualquer indício ou motivo passível de abalar os documentos em causa e o seu teor, nem se vislumbrando a necessidade de prova documental adicional.
Em relação ao facto de o Requerente não ter obtido crédito de imposto sobre o rendimento no Estado da sua residência, o mesmo, em rigor, não é sequer relevante para a decisão de mérito.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
A Título Preliminar sobre o Pedido de Reembolso Parcial da Retenção na Fonte
Invoca a Requerida na sua Resposta não ter sido encontrado registos de pedidos de reembolso de imposto na DSRI correspondente à diferença entre a taxa de retenção na fonte a título definitivo de 25% e o limite convencional previsto na CDT.
O Requerente, não alega que tenha apresentado o pedido de reembolso em questão. E independentemente de qualquer pedido de reembolso, entende este Tribunal que mantém plena acuidade uma pronúncia arbitral que aprecie a legalidade do acto de liquidação de IRC por retenção na fonte, uma vez que o objeto da acção é a anulação de tal acto, para o que é indiferente estar pendente, ou não, pedido de reembolso.
E assim é, desde logo, porque da declaração de ilegalidade da retenção na fonte em discussão depende o direito a juros indemnizatórios e a sua medida. Por outro lado, não resulta dos autos, nem isso foi alegado, que o reembolso parcial acima referido tenha sido concretizado.
Contudo, na medida em que tal reembolso venha eventualmente a ocorrer, o mesmo deve ser tido em consideração (isto é, subtraído) na quantia a restituir pela Requerida, em sede de execução da decisão arbitral.
Da ilegalidade da liquidação de IRC
Tal como resulta da matéria de facto assente, o Requerente é uma pessoa coletiva constituída como um fundo de investimento mobiliário constituído e a operar sob a legislação Francesa, com sede e direcção efectiva em França, sendo, para efeitos de IRC, um sujeito passivo não residente e sem estabelecimento estável em território português. Em 03/05/2023, foram pagos ao Requerente dividendos no montante de € 913.972,20, sujeitos a retenção na fonte em Portugal, no montante de € 228.493,05 (sujeito à taxa de 25%), decorrente de diversas participações detidas em sociedade residente em Portugal.
Os OIC são atualmente regulados pelo Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo (“RJOIC”), aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, que transpôs parcialmente para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2011/61/UE, do Parlamento e do Conselho de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundo de investimento alternativo e a Diretiva n.º 2013/14/UE, do Parlamento e do Conselho de 21 de maio de 2013, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativo no que diz respeito à dependência excessiva relativamente às notações de risco. E na sequência da entrada em vigor do RJOIC, foi igualmente alterado o regime fiscal pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 janeiro.
Nessa medida, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1”.
Tendo a AT através da Circular 6/2015, de 17 de Junho esclarecido quanto ao artigo 22.º do EBF que “Esta exclusão abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais, que tenham a natureza de rendimentos de capitais, prediais ou mais-valias, incluindo, nomeadamente, as menos-valias realizadas ou potenciais, os rendimentos vencidos e ainda não recebidos, os rendimentos e gastos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros e imóveis que integram o património do fundo, bem como os gastos ou perdas associados a variações cambiais, os quais consubstanciam, por natureza, rendimentos daquelas categorias e, de acordo com o normativo contabilístico aplicável aos OIC, devem ser contabilizados conjuntamente com os ativos que lhes deram origem.”
Assim, em face do exposto, cumpre assim analisar se o artigo 22.º do EBF, ao excluir de tributação os OIC residentes em território nacional, e sujeitar a retenção na fonte os dividendos auferidos por entidades equivalentes não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos do artigo 63.º do TFUE.
Sem mais delongas, adiante-se desde já que entende este Tribunal Arbitral que assiste razão ao Requerente quando defende que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OICs constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OICs constituídos segundo a legislação de Estados-Membros da União Europeia (como o Grão Ducado do Luxemburgo), viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, em linha com jurisprudência arbitral recente nesta matéria: Decisão Arbitral de 20-09-2023, processo n.º 12/2023-T; Decisão Arbitral de 28-03-2024, processo n.º 840/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 577/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 842/2023-T; Decisão Arbitral de 15-04-2024, processo n.º 849/2023-T; Decisão Arbitral de 21-05-2024, processo n.º 839/2023-T; Decisão Arbitral de 11-06-2024, processo n.º 60/2024-T; Decisão Arbitral de 24-06-2024, processo n.º 850/2023-T.
Relembre-se a jurisprudência do STA vertida no Acórdão de 13/09/2023, processo n.º 715/18.7BELRS (subscrita por vários Acórdãos subsequentes do mesmo Tribunal, designadamente nos processos: n.º 0802/21.4BELRS, de 08/05/2024; n.º 0806/21.7BELRS e n.º 0755/19.9BELRS, ambos de 29/05/2024, e n.º 0757/19.5BELRS de 05/06(2024). E mais recentemente também pelo STA no processo n.º 01676/20.8BELRS de 11/07/2024. E na mesma senda deste último Acórdão, por se aderir aos fundamentos expressos no citado no Acórdão do STA de 13/09/2023, remete-se para o mesmo (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt), destacando o excerto que de seguida se transcreve:
“Como referimos, o Tribunal recorrido assentou a sua decisão no acórdão do TJUE, de 17 de março de 2022, proferido no processo C-545/19. Sobre este acórdão a AT não se pronuncia nas suas conclusões de recurso, designadamente não afasta a doutrina que dele emana ao caso em apreço.
Ora, no acórdão em referência estava em causa um reenvio prejudicial apresentado no âmbito de um litígio que opunha a AllianzGI-Fonds AEVN à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito da retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. E discutia-se a compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFUE, tendo o TJUE concluído que:
O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado - Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Esta jurisprudência, proferida relativamente a uma OIC de um país Membro da União Europeia, aplica-se manifestamente a uma OIC de um País Terceiro, uma vez que por força do artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, a livre circulação de capitais aplica-se tanto aos fluxos de capitais entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e países terceiros, sem nenhuma condição de reciprocidade (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08). Esta característica distingue a livre circulação de capitais de todas as outras liberdades do mercado interno, uma vez que estas se aplicam exclusivamente no território dos Estados-Membros.” (negrito nosso)
Deste modo, resulta de forma clara que o artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, quando torna aplicável o regime aí previsto apenas a sociedades constituídas à luz da legislação portuguesa, excluindo as que o foram segundo as demais legislações dos Estados Membros da UE ou de países terceiros. In casu, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a um OIC residente num Estado-Membro, são objeto de retenção na fonte, quando, ao invés, os dividendos distribuídos a um OIC que se constitua e opere de acordo com a legislação nacional não estaria sujeito a essa mesma retenção.
Ainda quanto à questão da comparabilidade, recorde-se que a AT veio alegar, na sua resposta, que tais situações não são comparáveis, defendendo que o tratamento fiscal diferenciado entre um OIC que se constitua e operem de acordo com a legislação nacional e um OIC não residente, porquanto o primeiro é tributado em sede de imposto do selo (verba 29 TGIS) e o último não. Porém, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, foi decidido que tal circunstância é irrelevante, na medida em que não coloca os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes, tal como resulta dos parágrafos 53 a 58 que se passam a transcrever:
“53 - A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 - Além disso, como salientou a advogada-geral no nº 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).
55 - Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. 56 - Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º , n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57- Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. 58 - Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.º 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.ºo TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado-Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado-Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.”
Nestes termos, também aqui não assiste razão à Requerida.
Importa também aqui recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do Direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE.
Deste modo, estando em causa questões de Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26/03/2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02, e de 27-11-2018, proferido no âmbito do processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1).
O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Daqui se retira que os tribunais nacionais (incluindo os tribunais arbitrais) têm o poder-dever de desaplicar as normas de direito interno que se revelem contrárias a normas de Direito da União Europeia, desde que estas respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14).
Pelo exposto, e considerando a incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito de aplicação os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-Membros, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula as liquidações de IRC por retenção na fonte contestadas, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Não cumpre anular o “acto” de indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, dado tratar-se de uma mera ficção jurídica, destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quodo prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
Dos juros indemnizatórios
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (cf. Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 277/2020-T e 220/2020-T).
Na sequência da anulação do acto impugnado, o Requerente terá direito a ser reembolsado do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”. Já o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT vem dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Quanto ao momento a partir do qual devem ser contados os juros, o Requerente veio alegar que tendo a reclamação graciosa sido apresentada em 23/12/2024, a AT deveria ter-se pronunciado até 23/04/2025, ou seja, no prazo de quatro meses (cf. o disposto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT), concluindo que são devidos juros indemnizatórios desde a data da retenção na fonte sub judice (cf. artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
Por seu turno, a Requerida entende que não existe erro imputável aos serviços ao abrigo do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, ainda que a contar do indeferimento tácito da reclamação graciosa, uma vez que a Requerida está vinculada a aplicar a lei, não existindo dúvidas de que o artigo 22.º do EBF não compreende o ora Requerente no seu âmbito de aplicação por se tratar de um OIC com sede noutro Estado-Membro.
Relativamente ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o STA no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07/04/2021:
“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.
Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.
(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”. (negrito nosso)
Entendimento ao qual se adere.
No caso dos autos, tal como já referido supra, o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade da retenção na fonte contestada em 23/12/2024. A AT deveria ter-se pronunciado sobre a mesma no prazo de quatro meses (cf. n.º 1 do artigo 57.º LGT), ou seja, até 23/04/2025. Assim sendo, o Tribunal determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 228.493,05 (Duzentos e vinte e oito mil quatrocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos)deverão contar desde o dia 24/04/2025 até ao integral reembolso do referido montante ao Requerente (nos termos do n.º 4 dos artigos 43.ºe n.º 10 do artigo 35.º, ambos da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril).
VI. DECISÃO
De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente:
a) Declarar ilegal e anular a retenção na fonte contestada, no montante de € 228.493,05 (Duzentos e vinte e oito mil quatrocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos), incluído na guia de retenção na fonte n.º ... de 03/05/2023;
b) Condenar a AT no reembolso ao Requerente do montante de € 228.493,05 (Duzentos e vinte e oito mil quatrocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos;
c) Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante de € 228.493,05 (Duzentos e vinte e oito mil quatrocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos, contados desde 24/04/2025 até integral reembolso do referido montante ao Requerente;
d) Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais, em razão do decaimento.
VII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 228.493,05 (Duzentos e vinte e oito mil quatrocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos), correspondente ao montante das retenções na fonte que o Requerente impugnou - v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.
VIII. CUSTAS
Custas no montante de € 4.284,00 (Quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), a cargo da Requerida, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se, incluindo o Ministério Público.
CAAD, 13 de Novembro de 2025
Árbitro Presidente,
(Juiz José Poças Falcão)
Árbitro-Adjunto
(Prof. Doutor Júlio Tormenta)
Árbitro-Adjunto (Relator)
(Dr. João Santos Pinto)