Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 299/2025-T
Data da decisão: 2025-11-11  IRC  
Valor do pedido: € 161.399,89
Tema: RCPIT – ação inspetiva e caducidade do direito à liquidação – contagem do prazo. IRC – gastos dedutíveis.
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SUMÁRIO:

- A pendência de uma inspeção externa determina a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação se a sua duração for inferior a seis meses (art. 46º, nº 1, da LGT). No cálculo desse tempo de duração, há que ter em conta o disposto no art. 57.º-A, nº 3, da LGT, que determina que esse (e outros) prazos não se contem durante o mês de agosto.

- Não constitui gasto fiscalmente dedutível, por não estar conexo com a obtenção de rendimentos, o montante pago para obter a suspensão provisoria de um processo-crime, nos termos dos artigos 281º e 282º do Código de Processo Penal.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A... UNIPESSOAL, LDA., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-..., Queluz, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

 

a)    O Pedido,

 

a.1) No PPA a Requerente peticionou

- a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2024..., relativa a 2020, da qual resultam imposto e juros compensatórios a pagar no montante de € 161.399,89;

 – anulação das liquidações adicionais de IVA n.ºs 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024... e 2024..., relativas aos meses de 2020, das quais resultam imposto e juros compensatórios a pagar no montante de € 145.771,95.

 – o consequente pagamento de juros indemnizatórios.

- ser indemnizada pelos custos em que venha a incorrer com as garantias que venha a apresentar para suspender o processo de execução fiscal instaurado pelo não pagamento voluntário parcial do montante liquidado.

 

a.2) Anulação parcial das liquidações em causa

a.2.1) Previamente à constituição do Tribunal Arbitral, a Requerida, ao abrigo do disposto no art. 13º, nº 1, do RJAT, procedeu à revogação das liquidações adicionais de IVA acima identificadas, conforme requerimento apresentado a 2025-05-29 e retificado a 2025-05-30.

Notificada para se pronunciar, a Requerente veio sustentar que tal revogação administrativa, ainda que feita antes da constituição do tribunal arbitral, não exonera a AT da obrigação do pagamento de juros indemnizatórios, tal qual peticionados na presente ação, pelo que requereu o prosseguimento dos autos para (entre outras) a apreciação desta questão.         

            

            a.2.2.) Na pendência deste processo arbitral, na sua resposta, a AT informou ter revogado parcialmente a liquidação de IRC impugnada no relativo à não aceitação como gasto do montante de € 296.250,00 suportado pela Requerente com os serviços que lhe foram prestados pela sociedade luxemburguesa B... .

 

b)    O litígio

 

Atentas as revogações administrativas, totais (IVA) e parcial (IRC), das liquidações impugnadas atrás descritas, são os seguintes os temas que cabe ao tribunal apreciar:

- caducidade do direito da AT a praticar as liquidações impugnadas (75.º a 129.º da p. i.)

 - não aceitação como gasto fiscal dedutível de despesas do contencioso e notário, no valor de 170.000 euros (164.º a 224.º da p.i.).

- não aceitação como gasto fiscal dedutível de € 2.500,00 relativos a despesas dos anos anteriores (225.º a 237.º da p.i.); 

- não aceitação como gasto fiscal dedutível de € 23.067,26 relativa a ajudas de custo;

- Ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios (258.º a 270.º da p. i.);

- direito da Requerente a receber juros indemnizatórios e a ser indemnizada por prestação indevida de garantia.

 

a)     Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 27/03/2025.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 06/06/2025.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

A testemunha foi ouvida em 02/10/2025. Nessa sessão, o tribunal, com o acordo das partes, decidiu dispensar a apresentação de alegações.

 

b)    Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não foram alegadas exceções. Não existem questões que devam obstar ao conhecimento do mérito.

 

 

II- PROVA

 

II.1 -Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

a)     As liquidações impugnadas tiveram origem numa inspeção tributária externa levada a cabo pelos serviços da Direção de Finanças de Lisboa, tendo os atos inspetivos tido início em 23 de maio de 2024 e sido concluídos em 18 de dezembro de 2024. 

b)     A Requerente encerrou as instalações onde funciona a sua sede durante o período natalício, desde 23 de dezembro de 2024 até 2 de janeiro de 2025.

c)     Quando reabriu, verificou estar afixado no muro do portão da sua sede um aviso que informava que funcionárias da AT se haviam aí dirigido no dia 26 de dezembro de 2024, pelas 10h58 da manhã, a fim de notificar pessoalmente a Requerente das liquidações aqui em causa.

d)     Como a empresa estava fechada, a AT afixou também uma Nota de Marcação de Hora Certa, indicando que iria voltar às instalações no dia seguinte, 27 de dezembro de 2024, pelas 11h.

e)     No dia 27 de dezembro de 2024, os serviços da Requerente continuavam encerrados devido à época natalícia, pelo que foi afixada certidão de verificação de hora certa, indicando que não se encontrava ninguém presente para receber a notificação. 

f)      Junto à sede da Requerente funcionam outras empresas, nomeadamente uma loja denominada de “Rota da China”, aberta durante os períodos natalícios,  cujo horário de funcionamento, incluindo ao fim de semana, é das 9h da manhã até às 20h 30 da noite.

g)     As respetivas liquidações impugnadas ficaram disponíveis no Via CTT da Requerente em 23 de dezembro de 2024,

h)     A Requerente procedeu ao pagamento de duas liquidações de IVA e de algumas liquidações de juros compensatórios referentes ao IVA.

i)      A sociedade C... Lda. presta serviços de consultoria informática à Requerente.

j)      No âmbito do seu objeto social, a Requerente promove a venda dos seus produtos farmacêuticos junto das farmácias, distribuidoras e armazenistas.

k)     O volume de vendas da Requerente, em 2020, ascendeu a € 8.275.862,81

l)      A Requerente dispõe de uma equipa própria, responsável pela promoção dos produtos farmacêuticos.

m)   D..., diretora de relações públicas da Requerente,  recebeu ajudas de custo, relativas a deslocações a clientes, durante todo o ano, em todos os dias úteis do mês (em certos casos como fevereiro, maio e julho, até mais do que isso), incluindo o mês de férias a que teria direito.

n)     Tal funcionária efetuou diversas compras em localidades muito distantes daquelas em que, nesses dias e horas, segundo os “mapas de deslocações” estaria a visitar clientes.

o)     Em maio de 2016, o Tribunal Central de Instrução Criminal proferiu uma decisão de suspensão provisória do processo n.º 482/07.8TELSB, que então aí corria termos, sendo arguida a Requerente.

p)      A suspensão provisória do processo foi sujeita a injunções e regras de conduta, as quais compreendiam o pagamento do montante de € 170.000,00.

q)     A Requerente procedeu ao pagamento faseado daquele valor, tendo registado na conta «6265202 – outras despesas de contencioso e notário» o valor de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros), por contrapartida da conta «27721 – Adiantam. Acordo IGFEJ», e qualificou o gasto como fiscalmente dedutível para efeitos e IRC, no período de 2020.

 

Estes factos, com exceção de f) resultam dos documentos e outras informações juntos aos autos e não originaram qualquer divergência entre as partes.

O dado por provado em f) resultou do depoimento da testemunha, que o tribunal considerou credível.

 

II.1 – Factos não provados.

Não existem com relevância para a decisão da causa.

 

 

III- O DIREITO

 

III.1 - Caducidade do direito à liquidação

 

É indiscutível que tal prazo, que é de 4 anos (artº 45.º, n.º 1, da LGT) e se começou a contar no dia 31 de dezembro de 2020 (art. 101.º do CIRC), pelo que, em princípio, terminaria em 31 de dezembro de 2024.

Importa saber se existiu alguma causa de suspensão da contagem de tal prazo.

A Requerente alega que não existiu uma suspensão do prazo em razão da pendência da ação inspetiva, atento o disposto no art. 46º, nº 1, da LGT[1], uma vez que a inspeção teve uma duração superior a seis meses (de 18 de dezembro de 2024 a 23 de maio de 2024, tal como dado por provado).

A Requerida, concordando com tais factos, alega que o referido prazo de seis meses não é necessariamente um prazo de calendário. Se a inspeção externa tiver lugar durante um período que abranja o mês de agosto - como é o caso - haverá que aplicar o disposto no artigo 57.º-A da LGT, que determina que são suspensos os prazos relativos ao procedimento de inspeção tributária durante o mês de agosto, para efeitos do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira.

Assim sendo, acompanhamos a Requerida nas conclusões seguintes: 

- o procedimento inspetivo aqui em causa ficou suspenso entre 2024-08-01 e 2024-08-31, pelo que

- o prazo máximo de seis meses para a sua conclusão não terminou em 2024-11-23, mas em 2024-12-23. 

-  tendo o relatório inspetivo sido notificado à Requerente em 2024-12-18, temos que o procedimento inspetivo não ultrapassou o prazo máximo de 6 meses, contado nos termos legais.

 - a notificação destas liquidações poderia, assim, ser feita até 2025-06-28.

- devendo-se considerar, em qualquer hipótese, ter a Requerente sido notificada eletronicamente em 7 de janeiro de 2025[2], não se verifica a caducidade do direito de liquidação do IRC[3].

 

Improcede, pois, este argumento da Requerente.

 

III.2 - Despesas do contencioso e notário

 

Como dado por provado, o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa proferiu uma decisão instrutória na qual decidiu a suspensão provisória de um  processo crime em que era arguida, entre outros, a Requerente. As condições de tal suspensão envolviam o pagamento do montante de € 170.000,00, a que a Requerente procedeu.

Alega a Requerente que a AT negou a dedução de tal gasto baseada numa aplicação incorreta do art.º 23-A, nº 1, al. e), e ainda do art.º 18, ambos do CIRC.

Isto porquanto entende que tal pagamento não corresponde a “multa”, “coima”, nem a “demais encargos”. (…)  não tem qualquer relação causal com a «prática de infrações de qualquer natureza que não tenham origem contratual», nem com «comportamentos contrários a qualquer regulamentação sobre o exercício da atividade».

Vejamos:

É certo que a AT usa esses preceitos no RIT para sustentar a correção aqui em causa. Todavia, também invocou um outro que a Requerente não analisa nem contesta na sua petição, o artigo 23º, nº 1 do mesmo Código.

Com efeito, afirma a AT, no RIT, que: Verifica-se que o gasto incorrido no processo judicial, não foi incorrido tendo em vista a obtenção dos rendimentos sujeitos a IRC pelo que não poderá ser aceite como fiscalmente dedutível.

E, perante esta última norma, assiste razão à Requerida. Na verdade, o tipo de gasto em causa, se bem que sendo gasto contabilístico, não passa o teste que consta do art.º 23º, nº 1, do CIRC, pois que não há qualquer relação entre o gasto (que resulta do pagamento de injunção conducente ao arquivamento de um processo de natureza criminal, caraterizado nos autos, que corria também contra a Requerente) e a atividade ou objetivo económico da Requerente. E, perante esta última norma, assiste razão à Requerida. 

Como a própria Requerente reconhece: “Este valor corresponde à injunção que foi paga em prestações pela Requerente no quadro de suspensão provisória de processo decretada num processo-crime.”

 Tal circunstância afasta estes gastos contabilísticos do âmbito da atividade da Requerente, pelo que, não cabendo no seu escopo ou objetivo económico, não é fiscalmente dedutível, tal como determina o art.º 23, nº 1 do CIRC, que a AT usou no RIT como uma das normas fundamentadoras da correção, que se deve, pois, manter.

 

III.3 - Despesas de anos anteriores 

 

A correção efetuada pela Requerida, relativamente a despesas que considera respeitarem do exercício de 2019, ascendeu a € 6.673,84 (referentes, por um lado, a fatura de serviços informáticos da. C..., Lda. e, por outro, gastos faturados pelo do Infarmed). 

A Requerente, no Pedido de Pronúncia Arbitral, apenas contesta o montante de € 2.500,00 relativo à fatura da referida C..., Lda.

A AT apurou em € 2.500,00 o montante da correção referente à fatura da C... porque a totalidade do valor dessa fatura (€ 5.500) respeita ao período de 15 outubro de 2019 a 31 de março de 2020, ou seja, 5,5 meses. 

Dividindo € 5.500 por 5,5 meses, a AT obtém uma imputação linear de gastos de € 1.000 por mês. Quanto a 2019, apurou o valor de € 1000*2,5 meses = € 2.500. Tais gastos, segundo a AT, deveriam ter sido contabilística e fiscalmente imputados a 2019.

A AT sustenta que as faturas emitidas pela sociedade C... Lda. no valor de € 5.500,00 com o descritivo «serviço de consultoria informativa referentes ao período de 15 de outubro a 31 de março de 2020» devem ser desconsideradas em parte por dizerem respeito ao ano de 2019, fazendo referência ao princípio da especialização dos exercícios constante no artigo 18.º do CIRC. 

 

Alega a Requerente que a sociedade C... Lda. lhe tem prestado serviços de consultoria informática.  Quando é chamada a tratar de um determinado erro ou problema informático da Requerente, o serviço apenas se dá por concluído quando o problema fica efetivamente resolvido – seja ele a instalação de um software em todos os computadores dos funcionários da Requerente, a criação ou a manutenção de um website, a informatização dos rótulos dos produtos farmacêuticos, entre outros. 

E só então a C... Lda. emite a respetiva fatura. Deste modo, tratando-se de serviços que demoram meses a concluir, nem sempre a sua conclusão coincide com o final do ano, pelo que pode acontecer que um serviço que começou em 2019 apenas tenha terminado em 2020 e, por isso, a respetiva fatura apenas é emitida posteriormente à data da conclusão do serviço. 

 

O Tribunal analisará esta questão em duas vertentes.

Na primeira, de ordem contabilística, haverá que fazer apelo à NCRF 20, que estabelece:

“20 — Quando o desfecho de uma transação que envolva a prestação de serviços possa ser fiavelmente estimado, o rédito associado com a transação deve ser reconhecido com referência à fase de acabamento da transação à data do balanço (…)

25 — Em termos práticos, quando os serviços sejam desempenhados por um número indeterminado de atos durante um período específico de tempo, o rédito é reconhecido numa base de linha reta durante o período específico a menos que haja evidência de que um outro método represente melhor a fase de acabamento. Quando um ato específico seja muito mais significativo do que quaisquer outros atos, o reconhecimento do rédito é adiado até que o ato significativo seja executado.”

 

Ora, se o método de imputação baseado na linha reta, ou linearidade de cálculo, é uma forma possível de imputação de rédito, ela não é a única. Com efeito, o § 25 da citada NCRF admite o reconhecimento do rédito de quem presta o serviço (e, por consequência, para o que aqui importa, o reconhecimento simétrico do gasto na esfera de quem obteve o serviço) de forma diversa, quando se verifique que determinado ato ou fase, no contexto dessa prestação, seja determinante. 

Um exemplo será uma prestação de serviços informáticos em que só no final, com os testes ao funcionamento, o prestador do serviço deve registar o reconhecimento do rédito, e o beneficiário do mesmo o reconhecimento do gasto, até que esses testes  sejam executados. Até essa fase, não terá o beneficiário do serviço obrigação de pagar, não incorreu ainda num passivo, e não deve registar gastos.

É que segundo a Estrutura Conceptual do SNC, “Os gastos são diminuições nos benefícios económicos durante o período contabilístico na forma de exfluxos ou deperecimentos de ativos ou na incorrência de passivos (..).”. 

Se a caracterização económica da prestação do serviço é aquela que a requerente afirma, e a AT não contesta, em dezembro de 2019 não são trazidas provas (e.g., contratuais ou outras) ao processo de que existisse um passivo já incorrido que devesse conduzir a requerente a considerar um gasto por € 2,500. 

 

A Requerente alega, o que a AT não contesta, que o serviço apenas se dá por concluído quando existem provas de que o “problema fica efetivamente resolvido”. O que leva concluir que a imputação meramente linear de € 2.500 de gastos a 2019, impedindo a sua dedução em 2020, não será neste caso a melhor forma de reconhecer o rédito no prestador do serviço e de registar, na esfera da Requerente, o correspondente gasto. 

Quer isto dizer que para que a imputação linear do gasto fosse aceitável como forma apropriada de tratar a questão, sem mais, seria necessário que quem alega essa linearidade - a Requerida – mostrasse que as caraterísticas económicas do contrato/serviço   deveriam, à luz das regras contabilísticas, ter levado a esse tipo de imputação linear. 

 

Na segunda vertente deve afirmar-se que não obstante a importância do princípio da periodização económica na esfera contabilística e fiscal, a sua aplicação deve ser temperada com o princípio da justiça. 

A jurisprudência do STA adere à tese subscrita por Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge L. Sousa.[4] Segundo os autores, das correções decorrentes da violação do princípio da periodização não pode resultar “uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 50.º da Lei Geral Tributária, para obstar à possibilidade de efetuar a referida correção”.  

O acórdão do STA no processo n.º 716/13, de 14/3/2018, conclui que “constitui no entanto jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a rigidez deste princípio tem de ser colmatada ou temperada com a invocação do princípio da justiça, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do acto tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado”. 

As correções efetuadas ao lucro tributável de um determinado exercício fundadas na imputação temporal errónea de alguma das suas componentes, desde que não resultem de práticas voluntárias e intencionais de transferência de resultados, ou de duplicação de gastos, devem ser refletidas noutro. Sem este tratamento simétrico, seria liquidado ao sujeito passivo imposto superior ao devido, ofendendo o princípio da justiça. 

Assim, deve proceder, quanto a este gasto, o pedido de pronúncia arbitral.

 

 

III.4 - Ajudas de Custo

A AT corrigiu a matéria tributável da Requerente em € 23.067,26 por considerar que o valor de ajudas de custo declarado não é fiscalmente dedutível. Para sustentar esta correção, a AT invoca deficiências nos mapas de ajudas de custo, juntos aos autos, alegando não ser possível identificar «nenhuma das entidades referidas nem identificar os locais em que se verificaram as referidas deslocações».

 

Estas dúvidas já tinham sido levantadas no Projeto de RIT. Na resposta ao direito de audição, a AT sustenta que: “No caso vertente, note-se que são apenas 6 trabalhadores a quem foram efetuados pagamentos rotulados de “ajudas de custo”, mas nem assim a Requerente (apesar de por diversas vezes ter sido convidada em sede inspetiva) a apresentar os elementos suficientes para que seja possível um controlo efetivo das deslocações dos trabalhadores a indicar as entidades que eram visitadas durante cada uma das deslocações (com duração habitual de uma semana completa a uma mesma cidade, como, por exemplo, Portalegre, Évora ,Bragança, Coimbra) nas alegadas ações de “Promoção Produtos A...”, ela nunca o fez, nem sequer a título de exemplo.”

 

Mais refere a Requerida: “Acresce que, ao analisar os vários mapas de ajudas de custo referentes a D..., se constata que a mesma trabalha quase ininterruptamente, sem se ter verificado ausência para gozo de férias às quais tem legalmente direito.

No caso dos recibos-ajudas de custo em nome da D... (cargo de Diretor de Relações Públicas) refere deslocações (sem referir o local visitado) e apresentou despesas com faturas datadas desses períodos, como se descrimina em algumas dessas datas: (Anexo 15)

- no mês de fevereiro:

- PORTO nas datas de 17 a 29 - APRESENTOU DESPESAS NA MESMA DATA COMPROVATIVOS de AQUISIÇÃO DE BENS /PS EM LISBOA, ...Alfragide-28/02/2020 11:25H), Continente-

27/02 17:25, ...Miraflores-27/02 10:58H;

- FARO nas datas 2 a 14 de fevereiro, e apresentou despesa na ...Lisboa 05/02 15:17)

 

- no mês de março:

- CASTELO BRANCO de 1 a 6 e despesas no ... Miraflores a 03/03 16:40

 

-no mês de junho:

- SERTÃ entre 14 a 19 – despesas Perfumaria ... a 16/06

- SERPA entre 21 a 26 – despesas ... Miraflores a 23/06 11:58H “

 

Apreciando:

- A atividade da sociedade e o seu volume de negócios, bem como as práticas usais do setor, implicam que se entenda como normal ou usual que uma equipa de funcionários da Requerente efetue visitas aos potenciais clientes que são referidos nos autos (v.g., farmácias, médicos, armazenistas, distribuidores, etc.).

 

- As deslocações da equipa estão documentadas pelos mapas constantes do anexo 23. Tais mapas contêm, para cada funcionário e mês: a identificação do funcionário que recebeu as ajudas de custo, o seu NIF, morada e assinatura; o dia do mês em que esteve deslocado/a com direito a ajudas de custo; o serviço efetuado - onde consta sempre e para todos “Promoção produtos A...”; a localidade onde o serviço foi prestado (e.g. Faro, Mértola, Beja, Guarda, e muitas outras); o dia e hora de saída e o dia e hora de chegada; o valor diário da ajuda de custo; o valor mensal a receber.

 

- Quanto à generalidade dos funcionários em causa, com exceção de D..., verifica-se que os dias de deslocação constituem uma certa percentagem dos dias do mês, nunca se observando uma contínua atividade de promoção externa. Sirva de exemplo o caso de E..., em novembro de 2020, com 6 dias com direito a ajudas de custo.

 

- Quanto a D..., especialmente mencionada no RIT e na “resposta” da Requerida, com referências concretas à sua permanência simultânea, documentada, em diversos dias em diferentes locais, o tribunal constatou, no documento 23 anexo aos autos, junto pela requerente, que as suas ajudas de custo se podem traduzir no quadro seguinte, elaborado a partir dos documentos referentes a cada mês:

 

Mês

Dias deslocada com ajuda de custo

Valor mensal das ajudas de custo

Jan.

22

1500,91

Fev

24

1625,11

Mar

22

1508

Abril

22

1515,09

Maio

24

1632,2

Jun

20

1376,71

Jul

27

1849,55

Ago

19

1255,2

Set

23

1749,31

Out

21

1515,08

Nov

20

1445,9

Dez

15

1037,85

 

TOTAL €

18010,91

 

 

Perante o que se mencionou, o tribunal julga que quanto aos demais funcionários, com exceção de D..., se encontra feita prova bastante que tais deslocações se efetuaram e, portanto, as ajudas de custo devem ser aceites fiscalmente.

A ausência nos mapas mensais da menção a cada entidade visitada num certo dia de deslocação, entre as distintas entidades/clientes que se poderiam visitar num só dia, e respetivo relatório de visita, se bem que pudessem fortalecer a prova evidenciada, não são, todavia, essenciais para que se conclua pela efetiva realização dos gastos com a finalidade que a Requerente lhes atribui.

Além disso, relativamente a outros preceitos do sistema fiscal que tratam de requisitos relativos a documentos (e.g., art.º 36º, nº 5 do CIVA; art.º 23º, nº 4 do CIRC), têm os tribunais entendido que, provando-se a substancialidade do gasto com base nos elementos de prova oferecidos, este não deve ser fiscalmente recusado por causa de aspetos formais. Também aqui o julgamos.

 

O caso de D... é diverso. Com efeito, julga-se implausível que durante todo o ano, em todos os dias úteis do mês (em certos casos como fevereiro, maio e julho, até mais do que isso), incluindo o mês de férias a que teria direito, a Diretora de Relações Públicas estivesse sempre ausente em deslocações a clientes. Até por contraponto à periodicidade, já referida, das deslocações dos restantes funcionários.

É certo que as suas funções implicarão, em regra, um contacto regular com clientes. Mas durante todos os dias úteis do ano parece claramente implausível. Para mais, a Requerente não contestou, nem por via documental, nem oferecendo prova testemunhal eventualmente clarificadora (em particular, a referida Diretora),  a prova (documental) produzida pela AT; ou seja, não explicou como estando tal funcionária num certo dia numa determinada localidade, surgem nos autos recibos de compras por ela efetuadas numa outra localidade, bem distante.

 

Todos estes elementos inquinam a prova produza pela Requerente (os “mapas de deslocações”) relativa às ajudas de custo desta funcionária, que o tribunal entende não deverem ser aceites, acompanhando a tese da Requerida.

Em suma, perante o valor total desconsiderado pela AT de € 23.067,26, o tribunal entende que não são de aceitar € 18.010,9, devendo aceitar-se o restante no valor de € 5.056,35.

 

III.5 – Anulação das liquidações de juros compensatórios

 

Sendo a obrigação de pagamento de juros compensatórios uma consequência das liquidações adicionais, pois estas traduzem um retardamento da liquidação imputável ao sujeito passivo, é obvio que as liquidações de tais juros resultam anuladas na medida em que o hajam sido as liquidações de imposto a que se referem. Isto independentemente de a anulação, total ou parcial, das liquidações impugnadas tenha resultado de decisão administrativa (anterior ou posterior à constituição deste tribunal arbitral) ou desta decisão arbitral. Cabe à AT, no caso de anulação parcial (liquidação adicional de IRC), quantificar o montante da liquidação de juros anulada (tal qual o deverá fazer relativamente à liquidação do imposto), devolvendo à Requerente os montantes por esta indevidamente pagos a tal título.

 

III.6 – Juros indemnizatórios

 

Estando em causa liquidações oficiosas, a sua anulação (independentemente de ser total ou parcial e de ser resultado de decisão administrativa, anterior o posterior à constituição deste tribunal, ou desta decisão arbitral) implica a existência de “erro imputável aos serviços”.

O que implica o reconhecimento do direito da Requerente, nos termos do art. 43º da LGT,  a, para além da devolução do indevidamente pago, a título de imposto e de juros compensatórios, a receber juros indemnizatórios, a serem quantificados, nos termos legais, pela AT, em execução de sentença, desde a data em que  teve lugar cada um dos pagamentos indevidos.

 

III.7 - Indemnização por indevida prestação de garantia

A Requerente pretende ainda a ser indemnizada pelos custos em que venha a incorrer com as garantias que venha a apresentar para suspender o processo de execução fiscal instaurado pelo não pagamento voluntário parcial do montante liquidado.

 

Trata-se como a Requerente afirma, de uma eventualidade. Ora, um tribunal aprecia factos, não eventualidades.

Pelo que não há que conhecer desta questão.

 Isto sem prejuízo de tal direito dever ser oficiosamente reconhecido pela AT, bem como calculado o montante da indemnização devida a tal título, caso, em execução de sentença ,se demonstre a verificação dos respetivos pressupostos.

 

V – DECISÃO

 

Pelo exposto, acordam os árbitros em:

a)     Considerar prejudicado o pedido inicial no reativo às liquidações de IVA impugnadas em virtude da sua anulação administrativa no prazo previsto no art. 13, nº 1, do RJAT.

b)    Declarar a inutilidade superveniente da lide no tocante à parte da liquidação de IRC derivada da não aceitação como gasto do montante de € 296.250,00 (faturas emitidas pela sociedade luxemburguesa B...) em virtude da sua anulação administrativa na pendência deste processo arbitral.

c)      Anular a parte da liquidação de IRC derivada da não aceitação como gasto do montante € 2.500,00, relativo à fatura emitida por C..., Lda.

d)    Anular a parte da liquidação de IRC derivada da não aceitação como gasto do montante de € 5.056,35, relativo a ajudas de custo pagas a funcionários (que não a D...).

e)    Manter, no mais, a liquidação de IRC impugnada.

f)      Reconhecer que as anulações de liquidações de imposto (totais ou parciais, administrativas ou resultado da presente decisão arbitral) implicam, consequentemente, a anulação das respetivas liquidações de imposto e a devolução à Requerente dos montantes indevidamente pagos (imposto e juros compensatórios), a serem apurados pela AT em execução de sentença.

g)     Reconhecer o direito da Requerente a, para além da devolução dos montantes indevidamente pagos, a receber juros indemnizatórios, a serem calculados  desde a data dos pagamentos (de imposto e de juros compensatórios) indevidos, em montantes a serem apurados pela AT em execução de sentença.

h)    Não se pronunciar sobre o eventual direito da Requerente a uma indemnização por prestação indevida de garantia.

 

Valor: O valor da causa é reduzido para € 161.399,89 (valor da liquidação de IRC impugnada) , uma vez que, antes da constituição do tribunal arbitral, a AT anulou totalmente as liquidações relativas a IVA.

Custas, no valor de €3.672,00, a serem suportadas pelas partes na proporção do respetivo decaimento: 31% pela Requerente e 69% pela Requerida.

 

 

 

11 de novembro de 2025

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

António Martins

 

 

 

António Alberto Franco

 

 

 


 

 

 



[1] Artigo 46.º (Suspensão do prazo de caducidade)

1 - O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção.

 

[2] 15 dias após a inserção da notificação no Via CTT (artº 39º, nº 10, do CPPT).

 

[3] Resulta assim prejudicada a análise da questão da “notificação com hora certa” que a AT fez à Requerente. Mesmo que a mesma não deva ser tida por eficaz, a questão sempre resulta irrelevante dada a data em que se consumou a notificação eletrónica e consequente tempestividade das liquidações.

[4] Campos, D.L., Rodrigues, B.S. e Sousa, J.L., 2003, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 3ª Edição, Vislis, Lisboa, p. 242-243.