Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 46/2014-A
Data da decisão: 2015-01-19  Contratos 
Valor do pedido: € 7.749,00
Tema: Serviços prestados para além do termo do contrato de empreitada - Enriquecimento sem causa
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SENTENÇA ARBITRAL

               

I. relatório

 

§ 1.º

Identificação

O presente Tribunal Arbitral foi constituído para dirimir o litígio que opõe A…, sociedade comercial com o número único de pessoa coletiva …, com sede na … (doravante, designada por Demandante), e a Direção-Geral B…, serviço central da administração direta do Estado, com o número de identificação fiscal …, com morada no … (doravante, designada por Demandada).

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                A presente ação foi instaurada ao abrigo da Lei da Arbitragem Voluntária (‘LAV’), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, e da alínea a) do n.º 1 do artigo 180.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Nos termos do artigo 31.º da LAV, a Demandante notificou a Demandada, através de carta datada de 4 de agosto de 2014 (documento n.º 20 junto com a petição inicial), da instauração de processo arbitral para obter o pagamento do valor de € 7.749,00 relativo a um contrato de prestação de serviços (o ‘Contrato’), no âmbito do qual a ora Demandante prestou à Demandada serviços de coordenação de segurança e saúde e fiscalização da empreitada de obras públicas de remodelação da entrada e acolhimento do público, instalações sanitárias e refeitório dos funcionários do … (a ‘Empreitada’). A Demandada respondeu a esta notificação por carta de 5 de setembro de 2014 (documento n.º 21 junto com a petição inicial).

 

§ 2.º

Identificação do Árbitro

                A Demandante designou como árbitro, na carta de 4 de agosto de 2014 enviada à Demandada para a instauração da presente ação, o signatário, Mark Bobela-Mota Kirkby, advogado, com domicílio profissional na Rua Garrett, n.º 64, 1200-204 Lisboa. Na carta de 5 de setembro de 2014, a Demandada concordou com a designação realizada pela Demandante. Em 18 de novembro de 2014, o signatário aceitou a designação como árbitro.

                Não se verifica suspeição, nem foi suscitado impedimento.

 

§ 3.º

Objeto do Litígio

Por carta datada de 4 de agosto de 2014, a Demandante comunicou à Demandada o início de processo arbitral para obter o pagamento do valor de € 7.749,00 relativo à prestação de serviços de coordenação de segurança e saúde e fiscalização da Empreitada.

Na petição inicial, a Demandante afirma que a prestação de serviços objeto do Contrato se prolongou para além do termo do prazo contratual previsto de 165 dias, em virtude do prolongamento do período de execução da própria Empreitada, por circunstâncias imprevisíveis, em cerca de dois meses. Durante o período suplementar de duração da Empreitada, a Demandante continuou a prestar os serviços objeto do Contrato com a anuência da Demandada, sem que no entanto tenha sido formalizado um contrato adicional titulador dessas prestações. Como os referidos serviços foram prestados a pedido da Demandada no contexto da fiscalização da Empreitada, a Demandante assumiu que o Contrato se mantinha em vigor e prorrogado à semelhança da Empreitada.

Verificando-se a falta de um título contratual formal que dê cobertura ao pagamento dos serviços prestados para além do termo do Contrato, a Demandante reclama esse pagamento ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, peticionando uma indemnização correspondente ao valor que resulta da aplicação proporcional do preço convencionado no Contrato ao período adicional em que se verificou a prestação dos serviços em causa —€ 7.749,00 (IVA incluído) —, acrescido de juros de mora desde a primeira interpelação de 4 de dezembro de 2011 (documento n.º 12 junto com a petição inicial) e juros vincendos desde a citação.

                Por sua vez, na contestação apresentada, a Demandada aceita toda a factualidade apresentada pela Demandante, limitando-se a discordar dos efeitos jurídicos que a Demandante pretende fazer derivar da aplicação ao caso concreto do instituto do enriquecimento sem causa. Segundo a Demandada, sendo o enriquecimento sem causa a fonte da sua responsabilidade civil e não o Contrato em si mesmo, o valor a pagar pela prestação dos serviços que decorreu depois do termo do Contrato não deve corresponder ao preço contratual, mas sim ao preço contratual deduzido da margem de lucro que a Demandante nele terá incorporado quando apresentou a sua proposta à entidade adjudicante.

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Por inexistirem factos alegados que, relevando para a decisão a proferir, subsistam controvertidos ou necessitados de prova que não a documental junta ao presente processo, mostra-se desnecessária a realização de quaisquer diligências de prova.

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Assim, decide este Tribunal arbitral:

 

II – Decisão:

 

§ 4.º

Julgamento da Matéria de Facto

 

Em face da inexistência de matéria de facto controvertida, no presente julgamento sobre a matéria de facto serão apenas indicados os factos dados como provados com relevância para a decisão da causa.

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Assim, da prova produzida resultam provados os seguintes factos:

 

A)      Em … de … de 2011 foi publicado no portal base.gov o procedimento pré-contratual de ajuste direto com o n.º …, para a aquisição de serviços de coordenação de segurança e saúde e fiscalização da empreitada de obras públicas de remodelação da entrada e acolhimento do público, instalações sanitárias e refeitório dos funcionários do … (documento n.º 1 junto com a petição inicial).

B)      Em 31 de maio de 2011 foi adjudicada a proposta apresentada pela ora Demandante e aprovada a respetiva minuta do contrato (documento 2 junto com a petição inicial).

C)      Em consequência, a 27 de junho de 2011, foi celebrado entre a Demandante e o Instituto C... o contrato de prestação de serviços de coordenação de segurança e saúde e fiscalização da empreitada de obras públicas de remodelação da entrada e acolhimento do público, instalações sanitárias e refeitório dos funcionários do … (documento n.º 2 junto com a petição inicial).

D)      A Demandada sucedeu nas atribuições do Instituto C…., assumindo, assim, parte no Contrato.

E)      Nos termos do ponto d) do Contrato, foi estipulado o preço contratual de € 14.999,99, acrescido de € 3.450,00 correspondente à taxa de IVA de 23%, perfazendo um valor total de € 18.449,99 (documento n.º 2 junto com a petição inicial).

F)       De acordo com o ponto e) do Contrato, o prazo de execução do contrato seria de 165 dias (documento n.º 2 junto com a petição inicial).

G)      A empreitada a fiscalizar no âmbito do Contrato, que tinha inicialmente um prazo de execução de 120 dias, foi prolongada de 3 de novembro de 2011 a 31 de janeiro de 2012, por dificuldades do subempreiteiro em executar os trabalhos no prazo previsto e por insolvência do subempreiteiro responsável pela maioria dos trabalhos de empreitada e por algumas alterações do Caderno de Encargos (documento n.º 3 junto com a petição inicial).

H)     Em função desse atraso e da respetiva prorrogação, a Demandante permaneceu a desempenhar as suas funções de fiscalização (documentos n.º 5 a 11 juntos com a petição inicial).

I)        A Demandada solicitou e concordou com a permanência da execução por parte da Demandante dos serviços de fiscalização de empreitada objeto do Contrato (documentos 5 a 11 juntos com a petição inicial).

J)        Em 4 de dezembro de 2011 a Demandante emitiu uma fatura correspondente a serviços prestados para além da duração inicial prevista do contrato, que foi rejeitada pela Demandada com fundamento na falta de cabimentação para liquidar a fatura (documento n.º 12 junto com a petição inicial).

K)      Em 5 de março de 2012 a Demandada emitiu Despacho autorizando a abertura de novo procedimento pré-contratual para a prorrogação do prazo do Contrato (documento 13 junto com a petição inicial).

L)      Foram várias as tentativas da Demandante de obter o pagamento do preço relativo ao período de execução complementar dos trabalhos, sendo a primeira interpelação de 4 de dezembro de 2011 (Documentos n.º 15, 16, 17, 19 juntos com a petição inicial).

M)    Em 9 de maio de 2014, a Demandada informou a Demandante da impossibilidade de obter parecer prévio vinculativo do Ministério das Finanças para efeitos de celebração do contrato adicional (documento n.º 18 junto com a petição inicial).

N)      A quantia reclamada pela Demandante, correspondente ao preço dos serviços prestados no período de execução complementar dos trabalhos, permanece por pagar.

 

§ 5.º

Julgamento de Direito

 

5.1. Enquadramento

Fixada a matéria de facto, cumpre agora aplicar o Direito à solução do diferendo. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 39.º da LAV, e com o artigo 24.º do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Administrativa, aplicável à presente arbitragem, “o tribunal arbitral julga apenas segundo o direito constituído”.

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                Da factualidade apurada resulta que a questão central a resolver no presente litígio é de saber se, em face dos serviços a mais executados pela Demandante, está ou não a Demandada investida numa correlativa obrigação de pagamento e, em caso afirmativo, determinar a fonte dessa obrigação de modo a obter o seu quantitativo. Esta delimitação da questão decidenda resulta, desde logo, da circunstância de entre as partes existir, tão-somente, uma questão controvertida: a de saber qual o montante do pagamento pela prestação dos aludidos serviços a mais.

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A Demandante entende que é aplicável ao presente caso o instituto do enriquecimento sem causa, já que se verifica por parte da Demandada “uma inequívoca vantagem patrimonial como poupança de despesa” (artigo 54.º da Petição Inicial), pois “impediu culposamente a justificação legal ou causa para a remuneração de um serviço que solicitou, que foi prestado e de que beneficiou e que empobreceu a Autora” (artigo 58.º da petição inicial), sendo que “o enriquecimento é injusto” (artigo 59.º da petição inicial). Nesta medida, estariam para a Demandante preenchidos os pressupostos do enriquecimento sem causa, a que alude o n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil.

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Também a Demandada sustenta que ao caso sub judice é aplicável o instituto do enriquecimento sem causa. Isto porque, segundo a Demandada, “considera-se, de facto, estarem reunidos os requisitos para o efeito, ou seja o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e a falta de causas justificativas da deslocação patrimonial” (artigo 22.º da contestação) Acrescenta ainda que “conforme é orientação jurisprudencial pacífica, o Réu apenas terá de restituir até ao montante do enriquecimento ou do empobrecimento, conforme o que for menos avultado” (artigo 25.º da Contestação). Assim, conclui a Demandada que, por aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, “dever-se-á, para efeito de obter a medida exacta de tal enriquecimento ou empobrecimento, ser expurgada a margem de lucro existente no valor solicitado pela autora “ (cfr. artigo 26.º da contestação).

Como é de ver, quer a Demandante quer a Demandada convocam a aplicação ao presente caso do instituto do enriquecimento sem causa, pugnando, porém, por diferentes consequências. Assim, para as partes no presente litígio estaria em questão, unicamente, saber quais as consequências da aplicação do regime do enriquecimento sem causa.

 

5.2. Da fonte da obrigação da Demandada

Da factualidade dada por provada resultou, inequivocamente, que a Demandante permaneceu a executar os serviços objeto do Contrato para além do seu termo. Ora, a possibilidade de realização de serviços a mais, ou seja, além daqueles que foram fixados inicialmente no contrato resulta expressamente do artigo 454.º do Código dos Contratos Públicos. Nos termos deste preceito, “são serviços a mais aqueles cuja espécie ou quantidade não esteja prevista no contrato e que: a) Se tenham tornado necessários à prestação dos serviços objeto do contrato na sequência de uma circunstância imprevista; e b) Não possam ser técnica ou economicamente separáveis do objeto do contrato sem inconvenientes graves para o contraente público ou, embora separáveis, sejam estritamente necessários à conclusão do objeto do contrato”.

Mas, a celebração de contratos adicionais relativos a serviços a mais depende ainda da não verificação das circunstâncias a que aludem as alíneas do n.º 2 do mesmo artigo 454.º do Código dos Contratos Públicos, a saber: “a) tendo o contrato sido celebrado na sequência de procedimento de ajuste direto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º, o somatório do preço contratual com o preço atribuído aos serviços a mais, incluindo o de anteriores serviços a mais, seja igual ou superior ao valor referido naquela alínea; b) Tendo o contrato sido celebrado na sequência de concurso público ou de concurso limitado por prévia qualificação e o somatório do preço contratual com o preço atribuído aos serviços a mais, incluindo o de anteriores serviços a mais, seja igual ou superior ao valor referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º, o anúncio do concurso não tenha sido publicado no Jornal Oficial da União Europeia e c) o preço atribuído aos serviços a mais, incluindo o de anteriores serviços a mais, ultrapasse 40 do preço contratual”.

Da factualidade dada por provada e tendo por base, essencialmente, o documento n.º 5 junto com a petição inicial —a ata da reunião n.º 18, de 8 de novembro de 2011 —constata-se que não existia no presente caso qualquer óbice à celebração de contrato adicional de serviços a mais. Efetivamente, não nos encontramos no âmbito das hipóteses a que alude o n.º 2 do artigo 454.º do Código dos Contratos Públicos e, além disso, à imagem das causas que determinaram a prorrogação da Empreitada objeto da fiscalização, afigura-se sustentável que os serviços prestados pela Demandante se apresentam como necessários à prestação dos serviços objeto do Contrato na sequência de uma circunstância imprevista e que não podem ser técnica ou economicamente separáveis do objeto do Contrato sem inconvenientes graves para o contraente público.

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Em todo o caso, não ocorreu, pelo menos formalmente, a celebração de quaisquer contratos adicionais para os serviços de fiscalização prestados após o termo do Contrato. É que, nos termos do artigo 375.º, aplicável ex vi do artigo 454.º, n.º 6, ambos do Código dos Contratos Públicos, o contrato onde são definidos os termos e condições a que deve obedecer a execução dos serviços a mais deve ser formalizado por escrito.

Como corretamente sustenta a Demandada, a celebração ou renovação de contratos de aquisição de serviços por entidades, órgãos ou serviços da administração central do Estado depende da emissão de parecer prévio vinculativo do membro do Governo responsável pela área das finanças. Tal decorre, presentemente, do n.º 5 do artigo 75.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2015). Nos termos do disposto no n.º 21 do mesmo preceito orçamental “são nulos os contratos de aquisição de serviços celebrados ou renovados em violação do disposto no presente artigo”, ou seja, designadamente, quando não for emitido o referido parecer prévio vinculativo.

Da contestação apresentada pela Demandada depreende-se que terá sido requerida a emissão de parecer prévio para a celebração deste contrato adicional (artigo 19.º da contestação), sem, no entanto, ter sido apresentado pela mesma qualquer elemento probatório nesse sentido.

Em todo o caso, discorda-se da interpretação da Demandada sobre a aplicação da exigência de parecer prévio aos denominados contratos adicionais. É que a exigência orçamental diz respeito à “celebração ou a renovação de contratos de aquisição de serviços” e não a contratos que têm por base outros contratos que foram já celebrados e legalmente sujeitos a parecer prévio. Entende-se, portanto, que o parecer prévio favorável do membro do Governo responsável pela área das finanças atribuído a um contrato de prestação de serviços engloba também a possibilidade de celebração de contratos adicionais, uma vez que a sua celebração é uma possibilidade que decorre da lei — o Código dos Contratos Públicos —, não se tratando, verdadeiramente, de um novo contrato ou de uma renovação stricto sensu. A ratio daquele preceito orçamental não é, pois, controlar as despesas decorrentes de contratos celebrados, mas antes a de prevenir a celebração de novos contratos que não cumpram o estabelecido no n.º 6 do mesmo artigo 75.º da Lei do Orçamento do Estado para 2015.

Compreendem-se, porém, em face da difícil interpretação da aludida norma orçamental, e admitindo que a Demandada procurou obter o respetivo parecer prévio vinculativo, as dificuldades sentidas por esta que terão presidido à não celebração do contrato adicional relativo aos serviços a mais prestados pela Demandante.

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Mas, independentemente dessas enormes dificuldades que um complexo e imperfeito ordenamento jurídico-administrativo lança atualmente sobre os decisores públicos, o que é certo é que foram prestados serviços a mais por parte da Demandante, ou seja, serviços que se prolongaram para além do termo do prazo contratual convencionado, a pedido da Demandada, e que não foram remunerados. Assim, aqui chegados, importa aferir se existe obrigação de pagamento de uma contrapartida por estes serviços e qual a respetiva configuração.

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O instituto convocado pela Demandante e Demandada para a solução do presente litígio é o do enriquecimento sem causa, regulado nos artigos 473.º a 482.º do Código Civil. O artigo 473.º do Código Civil, dispõe no seu n.º 1 que “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou“. Desta norma resultam três pressupostos para que haja lugar a restituição por aplicação do enriquecimento seu causa[1]:

                                i)            Existência de um enriquecimento;

                              ii)            Obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;

                            iii)            Ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

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Relativamente à existência de um enriquecimento, não restam dúvidas que no caso em apreço decorreu para a Demandada uma vantagem de natureza patrimonial. Efetivamente, a Demandada viu satisfeita uma prestação de serviços, sendo o seu valor a medida daquele enriquecimento.

Esse enriquecimento foi obtido à custa de outrem. No caso concreto, o enriquecimento da Demandada foi obtido em sacrifício do empobrecimento da Demandante, que prestou os respetivos serviços, incorrendo assim, e desde logo, nos seus custos, sem qualquer contrapartida remuneratória.

Também não se verifica qualquer causa justificativa para o referido enriquecimento[2]. De facto, inexiste no caso qualquer causa, título ou razão que legitime a manutenção do enriquecimento na esfera da Demandada à custa da Demandante.

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Abordando o problema do objeto da obrigação de restituir (artigo 479.º, n.º 1 do Código Civil), e na medida em que estamos numa situação típica de impossibilidade de restituição em espécie, a Demandada faz corresponder o “valor” da prestação aos encargos assumidos pela Demandante com a prestação desse serviço, não incluindo nessa prestação a margem de lucro que a Demandante incluiu no preço do serviço quando apresentou a proposta para a celebração do Contrato. Sucede que essa posição carece de sustentação jurídica.

Como lembra, inter alia, Luís Menezes Leitão[3], na esteira da jurisprudência e da doutrina alemã, o conceito de valor inerente à obrigação de restituição tem um sentido objetivo, ou seja, calculado de acordo com o valor de mercado do bem (neste caso, da prestação do serviço). E, no caso concreto, os mais elementares valores de segurança jurídica e boa fé impõem que o referencial de determinação do “valor de mercado” da prestação seja encontrado no contrato que as partes celebraram para a aquisição do tipo de serviços em causa, correspondendo assim ao preço contratual aí convencionado, num contexto em que os serviços prestados extra-contrato não são mais do que um prolongamento temporal da execução do Contrato.

Sem prejuízo, parece evidente que o direito não sairia realizado caso se chegasse a uma solução jurídica em que uma sociedade comercial é solicitada para a prestação de um serviço, cujo contrato não é devidamente formalizado por razões que lhe são alheias, e se arbitrasse como remuneração devida por esse serviço apenas os encargos que assumiu com a sua realização desprovida de qualquer margem de lucro, ignorando que se trata de uma empresa, portanto, de uma entidade cujo escopo é precisamente o de gerar lucro. Por outro lado, tendo as partes convencionado o prolongamento de uma prestação contratual para lá do termo de um contrato, mas assumindo como pressuposto que essa prestação seria realizada nos termos do contrato originalmente celebrado, seria gravemente atentatório da boa fé e da segurança jurídica que, após a prestação estar realizada, se considerasse que o prestador teria direito a uma remuneração diferente. Por isso mesmo, quando estamos em presença de um contrato nulo, a aplicação do regime da invalidade do contrato— instituto a que as partes poderiam perfeitamente ter recorrido para enquadrar esta questão, com um resultado idêntico ao acima por nós propugnado no contexto do enriquecimento sem causa—determinaria que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (cfr. artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil). Como, no presente caso, pela própria natureza das prestações, não é possível a restituição em espécie, haveria a Demandada que restituir o valor correspondente. Esse valor correspondente inclui, evidentemente a margem de lucro, face à inexistência de qualquer limitação legal. Neste sentido se pronuncia a jurisprudência, entre outras vezes, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 18 de fevereiro de 2010, no âmbito do processo n.º 0379/07, pelo relator João Belchior[4].

Por outro lado, mesmo que se perfilhasse a tese da Demandada quanto ao sentido a atribuir ao “valor” da restituição ao abrigo do artigo 479.º, n.º 1 do Código Civil, sempre se teria que corrigir os resultados da aplicação desse preceito com um instituto jurídico das “regulações do dono”, que está estudado precisamente para afastar disfunções jurídicas que a aplicação cega do instituto do enriquecimento sem causa pode gerar[5].

 

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Desta perspetiva, de forma a tutelar a posição da Demandante, que, recorde-se, prestou os serviços objeto do Contrato para além do seu termo, com a concordância da Demandada, seria assim necessário recorrer à denominada figura das regulações do dono[6]. Esta fonte de obrigações decorre da conceção de que determinados direitos de exclusivo compreendem também, em termos jurídicos, o poder de impor comportamentos a terceiros, de lhes atribuir deveres, ónus ou sujeições, desde que a propósito da coisa ou serviço que é seu objeto. Este poder decorre do próprio dever geral de abstenção dos terceiros de condutas que possam afetar a propriedade e direitos de outrem.

A título ilustrativo, são exemplo de regulações do dono, quando referenciado ao “direito de propriedade”, a proibição de uso de máquinas fotográficas nas salas de um museu ou a informação no elevador de um edifício de apartamentos de que o seu interior é vigiado por um sistema de videovigilância. Nestes exemplos, o dono, ou seja, o proprietário ou responsável pelo museu e pelo edifício, estabelece certas regulações sobre o seu bem. Dúvidas não existem de que, sendo emanadas pelo respetivo dono, o incumprimento dessas regulações é ilícita, “portanto, na medida em que é uma violação do dever genérico de abstenção, embora este se manifeste através da própria regulação”. Mas as regulações do dono podem não só constituir deveres negativos, mas também criar ónus positivos, desde que a alternativa ao cumprimento do ónus seja a abstenção do aproveitamento ou de certa modalidade de aproveitamento do bem. De entre esses direitos de exclusivo, de onde pode decorrer esta regulação de ónus positivos, está a própria realização de prestações por parte do prestante[7]. Assim, no caso da prestação de serviços, é ao prestador que compete definir as condições que devem ser preenchidas para que seja permitido o aproveitamento do seu serviço[8]. Ora, se a Demandada pretende aproveitar os serviços prestados pela Demandante, está sujeito à sua regulação, ou seja, neste caso, ao valor que este considera ter esse serviço. E é evidente que esse valor inclui margem de lucro. No caso concreto, nem sequer subsistem dificuldades no apuramento do valor necessário para satisfazer o direito ao lucro, já que a existência de um preço convencionado contratualmente entre as partes para o serviço em causa fornece um critério seguro —eliminar o lucro do preço é que já se revelaria mais difícil. Perante esta regulação por parte da Demandante, que definiu a condição remuneratória para a prestação dos seus serviços, a Demandada tinha a possibilidade de adotar dois comportamentos diametralmente opostos: a abstenção de aproveitamento e a adoção de comportamentos descritos na regulação do dono. Essa faculdade de optar extingue-se no momento em que a opção foi tomada. Assim, o autor do aproveitamento, no caso, a Demandada, tem agora um dever: o de cumprimento das condições impostas pela Demandante para a prestação dos seus serviços[9]. Portanto, também por recurso ao instituto das regulações do dono, sempre se concluiria que a Demandante deve ser ressarcida pelos serviços efetuados em valor equivalente ao que resulta do Contrato, na proporção do tempo em que foram prestados os serviços a mais.

 

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III – Decidindo, a final

Nestes termos, decide-se pela procedência da ação e pela consequente condenação da Demandada no pagamento dos serviços prestados pela Demandante para além do período previsto no Contrato, no valor peticionado € 7.749,00 (sete mil setecentos e quarenta e nove euros). Mais vai a Demandada condenada no pagamento dos juros de mora vencidos e vincendos peticionados.

 

Custas pela Demandada.

 

Notifique-se.

               

Lisboa, em 19 de janeiro de 2015

 

O Árbitro,

 

 

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Mark Bobela-Mota Kirkby

 

 



[1] Cfr. Luís Menezes Leitão, O enriquecimento no Direito Civil, Almedina, 2005, pp. 829 e seguintes.

[2] No que respeita a este requisito, Luís Menezes Leitão, O enriquecimento… (cit.), p. 865, defende que inexiste causa justificativa quando “(…) no âmbito de relações jurídicas entre enriquecido e empobrecido, existe alguma situação que legitime a manutenção do enriquecimento na esfera do enriquecido (…)”.

[3] Cfr. Direito das Obrigações, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2002, p. 441.

[4] Disponível em www.dgsi.pt. Nesta decisão do Supremo Tribunal Administrativo, pode ler-se: “(…) a declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado. (art.º 289.º, n.º 1 do C. Civil). Mas, não sendo possível nos contratos de execução continuada, como é o caso da empreitada - em virtude de a obra feita nunca mais poder ser restituída -, a restituição em espécie, haverá, então, que condenar o réu no pagamento do "valor correspondente" à utilidade advinda da sua realização. (…) Ademais, entende-se que o “lucro” faz parte do valor correspondente do produto final, nele se incorporando como qualquer outro factor. De outro modo, face à nulidade da relação contratual havida, outra posição que não aquela para que se propende conduziria a manifesta injustiça, isto é, a que a nulidade cometida fosse tratada como se o negócio jurídico em causa equivalesse a um nada… .”.

[5] Cfr. Pedro Ferreira Múrias, “Regulações do Dono: Uma Fonte de Obrigações”, em Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. II, Almedina, 2002, pp. 255 a 293. Casos típico destas disfunções são, por exemplo, o enriquecimento associado a ocupar um lugar num parque de estacionamento privado durante 1 ano, pretendendo-se depois não pagar o preço tabelado mediante a prova de que o lugar nunca seria ocupado porque o parque nunca atinge a sua lotação máxima, inexistindo assim “empobrecimento” do dono do parque. Ou quem fica com uma caixa de laranjas que o merceeiro não ia de qualquer modo conseguir escoar pretender não ter que as pagar por falta de “empobrecimento” do merceeiro.

[6] Cfr. Pedro Ferreira Múrias, “Regulações do Dono…” (cit.), p. 268.

[7] Cfr. Pedro Ferreira Múrias, “Regulações do Dono…” (cit.), p. 281.

[8] Cfr. Pedro Ferreira Múrias, “Regulações do Dono…” (cit.), p. 283.

[9] Cfr. Pedro Ferreira Múrias, “Regulações do Dono…” (cit.), p. 283.