Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 1284/2019-A
Data da decisão: 2019-12-20  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 40.833,23
Tema: Relações jurídicas de emprego público – Subsídio de risco.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

1.1.        A..., contribuinte fiscal n.º..., com domicílio na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa (doravante denominado “Demandante”), apresentou um requerimento de constituição de tribunal, nos termos do artigo 10.º do Regulamento de Arbitragem Administrativa do CAAD (doravante referido por “RAA”), tendo para o efeito demandado o Ministério B..., com sede na ..., ...-... Lisboa (doravante denominado “Demandado”).

 

1.2.        Em concreto, o Demandante veio formular os seguintes pedidos:

(i)           O reconhecimento do direito ao subsídio de risco correspondente a 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária – Tabela Remuneratória dos Corpos Especiais – desde a data do primeiro processamento do subsídio de risco (21.05.2009) até à data do último processamento do subsídio de risco (21.09.2016);

(ii)          A declaração de que o Demandado deve ao Demandante a diferença remuneratória verificada entre o subsídio de risco atribuído e aquele que é devido nos termos da lei, calculado de acordo com os normativos e diplomas que regem esta matéria – artigo 99.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 275-A/90, de 12 de setembro, Portaria n.º 887-A/90, de 21 de setembro, artigos 91.º e 161.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro -, desde a data em que o Demandante iniciou a sua relação profissional com a C... até 21.09.2016;

(iii)         A consequente condenação do Demandado a processar e a pagar ao Demandante os montantes em dívida a título de suplemento de risco, acrescido dos respetivos juros contabilizados desde a data do vencimento, no valor de € 1.507,50 (sendo € 1.197,31 a título de subsídio de risco e € 310,19 a título de juros já vencidos sobre a sobredita diferença remuneratória, contabilizados até 1 de julho de 2019, a que acrescerão juros vincendos até efetiva e integral liquidação dos montantes em dívida).

 

1.3.        Nos termos do n.º 1 do artigo 12.º do RAA, o Demandado foi citado para, querendo, contestar no prazo de 20 dias. Na sua contestação, o Demandado alegou, entre o mais, o seguinte:

(i)           Incompetência absoluta do CAAD para dirimir o litígio, uma vez que o respetivo objeto versa sobre “remunerações e suplementos”, sendo que esta matéria se encontra excecionada da competência do CAAD nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro;

(ii)          Caducidade do direito de ação, na justa medida em que os atos de processamento de vencimentos e outros abonos constituírem verdadeiros atos administrativos (e não meras operações materiais), contendo uma definição voluntária e inovatória da situação jurídica do funcionário abonado, pelo que tais atos seriam suscetíveis de impugnação no prazo de 3 meses, de acordo com o previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”);

(iii)         Impossibilidade de confissão, por os pedidos de reconhecimento do direito à pretensão do Demandante consubstanciarem a interpretação de atos formal e materialmente legislativos;

(iv)         Impugnação de toda a petição inicial, por ser contrária à interpretação dos enunciados legais convocados pelo Demandante;

(v)          Em matéria de produção de prova, o pedido de realização de depoimento de parte deverá ser recusado por não se revelar útil, devendo ainda ser rejeitada a requerida junção de documentos pelo Demandante em face da inexistência de ato lesivo;

(vi)         O valor da causa deverá ser fixado em € 1.507,50, em virtude de estar em causa o pagamento de quantia certa.

 

1.4.        Na sequência da contestação apresentada, o Demandante veio pronunciar-se sobre i) os documentos juntos pelo Demandado, ii) a matéria de exceção, iii) a prova, e iv) o valor da causa. No final dessa pronúncia, veio ainda o Demandante retificar o valor da causa, determinando que o mesmo é o que resulta dos processamentos mensais e anuais entre 21.05.2009 e 21.09.2016, acrescido dos juros vencidos à data da propositura da ação, no total de € 41.143,42.

 

1.5.        Tendo sido notificado da resposta às exceções e do requerimento de alteração do valor da causa, veio o Demandado apresentar a sua resposta, reiterando que o valor da causa deverá ser fixado em € 1.507,50, que corresponde à quantia equivalente ao benefício que o Demandante considera ter direito, ex vi do n.º 2 do artigo 32.º do CPTA.

 

1.6.        Notificado da antecedente pronúncia, veio o Demandante apresentar nova resposta por considerar que aquela peça processual seria inadmissível nos termos do CPTA, renovando o requerimento de disponibilização da integralidade do processo administrativo.

 

1.7.        O Demandante não requereu a mediação, nos termos do artigo 4.º do RAA, sendo que o Demandado veio antecipadamente informar que não estaria disponível para esse efeito.

 

1.8.        Concluída a fase dos articulados o signatário foi designado como árbitro único, tendo o CAAD notificado as partes da constituição do tribunal arbitral no dia 4 de outubro de 2019.

 

1.9.        A matéria de exceção invocada na contestação do Demandado (incompetência do CAAD para dirimir o presente litígio e caducidade do direito de ação) foram objeto de contraditório pelo Demandante, sendo que a respetiva ponderação não implica a junção de outros documentos ou a realização de diligências complementares de prova, encontrando-se o tribunal em condições de proferir despacho sobre essas questões prévias, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do RAA.

 

 

II.            SANEAMENTO DO PROCESSO

 

A.           INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

§ 1. Enunciado da questão

2.1.        A presente causa deve ser decidida segundo o direito constituído (cf. artigo 26.º, n.º 1, do RAA), cabendo convocar, prima facie, o disposto na Lei da Arbitragem Voluntária (aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro), que é aplicável a todas as arbitragens que tenham lugar no território português (cf. artigo 61.º).

 

2.2.        No artigo 18.º do aludido diploma legal é consagrado o princípio da competência da competência («princípio da competência do tribunal para se pronunciar sobre a sua competência»), sendo que o n.º 8 do mesmo preceito estabelece que «O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua competência quer mediante uma decisão interlocutória quer na sentença sobre o fundo da causa».

 

2.3.        Ora, dando cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 8.º do RAA, o Demandante veio indicar que a competência do tribunal arbitral é verificada pelo instrumento de vinculação constante da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro, em que decorre que estão vinculados à jurisdição do CAAD as pessoas coletivas públicas e entidades que funcionam no âmbito do Ministério B... .

 

2.4.        Ao abrigo da aludida Portaria, publicada no Diário da República, 1.ª Série, n.º 190, p. 7022, o Demandado encontra-se pré-vinculado à jurisdição do CAAD (cf. alínea d) do n.º 1 do artigo 1.º) para a composição de litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros e que tenham por objeto: «a) Questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional; b) Questões relativas a contratos por si celebrados» (cf. n.º 2 do artigo 1.º).

 

2.5.        Acresce que tendo em conta a relação jurídica de emprego público e as funções em causa, o disposto nesta última norma é «…aplicável aos litígios relativos às carreiras de inspecção da Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça, de investigação criminal da C... e do pessoal do corpo da guarda prisional da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais excepto no respeita a: a) Avaliação do desempenho profissional; b) Ingresso, acesso e progressão de carreiras; c) Remuneração e suplementos; d) Questões de âmbito disciplinar» (cf. n.º 3º do artigo 1.º) – ênfases nossas.

 

2.6.        Ora, no caso em apreço o Demandante vem reclamar o pagamento dos montantes em falta relativos ao subsídio de risco devido até 21.09.2016, no âmbito do desempenho de funções de inspetor da C..., em que ficou adstrito ao quadro funcional da investigação criminal (cf. factos alegados nos artigos 7.º a 10.º e documentos n.ºs 1 a 2 da petição inicial).

 

2.7.        De harmonia com o referido pelo Demandado na sua contestação, o objeto da presente lide tem que ver com “remunerações e suplementos”, sendo que esta matéria, como decorre diretamente das disposições normativas acima enunciadas, se encontra expressamente excecionada da competência do presente tribunal.

 

§ 2. A posição do Demandante

2.8.        Embora reconhecendo que o objeto do litígio é o direito ao suplemento de risco, o Demandante veio reforçar na sua resposta que o CAAD seria o tribunal competente para dirimir a presente causa, justamente porque aquele direito é conferido por lei a todos os funcionários da C..., não se distinguindo qualquer carreira dentro da C... para efeitos dessa atribuição, o que implica, no seu entendimento, que se trate de matéria excluída da previsão da alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro.

 

2.9.        Na perspetiva do Demandante, a leitura da alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro, terá de ser necessariamente conjugada com o disposto na lei que regulamenta o suplemento de risco e com o entendimento da jurisprudência administrativa, que tem reconhecido que este tipo de suplemento é universalmente conferido a todos os funcionários da C... .

 

2.10.      Desse modo, deverá ser derrogada e recusada a aplicação da exceção contida na sobredita disposição regulamentar, e isto sob pena de verificação de inconstitucionalidade por violação dos princípios da legalidade e da igualdade, previstos nos artigos 3.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa.

 

2.11.      Tal deve-se, em síntese, à circunstância de o direito ao suplemento de risco ter sido já objeto de decisão do CAAD em relação a outros funcionários da C..., pelo que outra interpretação seria «…incongruente e geradora de soluções normativas desarmónicas e incoerentes entre si, com uma disciplina jurídica diferenciadora entre pessoas e situações injustificada e desconforme com os valores constitucionais» (cf. artigo 35.º da pronúncia do Demandante).

 

§ 3. A posição adotada

2.12.      Conforme apontado pelo Demandante, têm vindo a ser colocadas perante o presente tribunal questões emergentes de “remunerações e suplementos”, incluindo sobre o direito ao suplemento de risco conferido aos funcionários da C... (veja-se, entre outros, Processo n.º 23/2015-A, Processo n.º 82/2015-A, Processo n.º 87/2015-A, Processo n.º 44/2016-A, Processo n.º 17/2017-A e Processo n.º 142/2018-A, todos disponíveis em https://caad.org.pt/administrativo/decisoes/).

 

2.13.      Na decisão do processo n.º 23/2015-A, foi declarada a incompetência material do Tribunal Arbitral do CAAD, por se concluir estar em causa um litígio relativo à carreira da investigação criminal abrangida pela previsão do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro, referente a “remunerações e suplementos”.

 

2.14.      No âmbito do processo n.º 82/2015-A, foi também abordada a questão da competência material do Tribunal Arbitral do CAAD, mas no caso concluiu-se que os demandantes integravam o grupo de pessoal de apoio à carreira de investigação criminal (cf. artigo 62.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro) e não o grupo de pessoal de investigação criminal (cf. artigo 62.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma), pelo que essa causa não se encontrava expressamente excluída do âmbito de jurisdição do CAAD. Ou seja, este tribunal reconheceu, a contrario sensu, que seria incompetente caso estivesse em causa a apreciação do direito a auferir o suplemento de risco nas situações dos trabalhadores em funções públicas da carreira de investigação criminal.

 

2.15.      Do mesmo modo, relativamente aos processos n.ºs 87/2015-A, 44/2016-A, 17/2017-A e 142/2018-A, o que se constata é que, numa linha de continuidade, as pretensões submetidas a litígio arbitral estão conexas com a perceção de subsídio/suplemento de risco de trabalhadores em funções públicas na área de funcional de telecomunicações e que integram o grupo de pessoal de apoio à investigação criminal (cf. artigo 62.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro).

 

2.16.      No caso em apreço o Demandante alega que, pese embora integre a carreira de investigação criminal, o suplemento de risco reclamado tem uma natureza universal no seio da C..., independentemente das respetivas carreiras. Assim, em virtude de exigências de igualdade e de unidade do sistema jurídico, importaria que este caso fosse igualmente dirimido por este tribunal arbitral, visto estar em causa uma situação análoga aos funcionários integrados no grupo de pessoal de apoio à investigação criminal.

 

2.17.      Ora, os argumentos convocados pelo Demandante são desprovidos de fundamento, essencialmente porque a disposição que determina a exclusão dos litígios respeitantes a “remunerações e suplementos” circunscreve-se especificamente à carreira de investigação criminal da C..., não se podendo legitimamente sustentar um alargamento da competência do tribunal arbitral para a apreciação de outras matérias não sindicadas no instrumento de pré-vinculação.

 

2.18.      Com efeito, não será de reconhecer qualquer violação ou limitação da garantia da tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos do Demandante, pela simples razão de que não é vedada a possibilidade de recorrer aos tribunais administrativos e que é a lei que deve institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (cf. artigos 202.º, n.º 4 e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).

 

2.19.      Para além disso, muito embora o artigo 182.º do CPTA consagre o direito à outorga de compromisso arbitral em determinadas situações, designadamente em questões respeitantes a relações jurídicas de emprego público (cf. artigo 180.º, n.º 1, alínea d), do CPTA), é remetida para lei própria a determinação dos casos e dos termos em que esse direito poderá ser exercido, sendo que essa lei ainda não foi elaborada (cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 1326 a 1328).

 

2.20.      Termos em que não resta senão concluir que este tribunal arbitral é materialmente incompetente para dirimir o presente litígio, uma vez que a alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro expressamente exclui as questões relativas a “remunerações e suplementos” do âmbito da pré-vinculação do Ministério B... à resolução de litígios por via arbitral junto do CAAD, devendo por isso o Demandado ser absolvido da instância.

 

B.            VALOR DA CAUSA

 

2.21.      O Demandante indicou inicialmente que o valor da causa seria de € 40.833,23, tendo posteriormente retificado esse montante para € 41.143,42.

 

2.22.      Como referido, o Demandado impugnou esse valor, argumentando que o pedido global deduzido corresponde ao pagamento da quantia certa e a um benefício quantificado em € 1.507,50, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 32.º do CPTA.

 

2.23.      Embora o Demandante não indique, em concreto, a norma jurídica com base na qual atribui à causa o valor de € 41.143,42, referindo apenas que este “resulta dos artigos 31.º a 34.º do CPTA – e, também do CPC”, parece resultar do raciocínio do Demandante que, por estar implicado um pedido de “reconhecimento [do] direito ao subsídio de risco”, o valor da ação deve corresponder ao valor total do benefício que advém desse direito, nos termos do n.º 2 do artigo 32.º do CPTA.

 

2.24.      Tal posição afigura-se improcedente, na medida em que o pedido tem por objeto o pagamento de uma quantia em dinheiro, pois requer-se a condenação de um órgão da Administração no pagamento de subsídio correspondente a uma categoria profissional, pelo que o valor da causa não poderá deixar de ser essa mesma quantia que estará em dívida (cf., MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, ob. cit., p. 223).

 

2.25.      Em face dos contornos da presente ação, tal como configurada pelo Demandante, não resta senão concluir que se pretende obter o pagamento de quantia certa no montante de € 1.507,50, havendo que atender ao valor que representa a utilidade económica (real) e imediata do pedido (cf. n.º 1 do artigo 31.º do CPTA).

 

 

III.          DECISÃO

 

3.1.        Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:

a)            Declarar a incompetência material do tribunal arbitral do CAAD, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro;

b)           Absolver da instância o Demandado.

 

3.2.        Fixa-se o valor da ação em € 1.507,50 (mil quinhentos e sete euros e cinquenta cêntimos), nos termos do disposto n.º 1 do artigo 32.º do CPTA.

 

3.3.        Encargos processuais fixados de harmonia o disposto no n.º 5 do artigo 29.º do RAA, sendo suportados em partes iguais pelo Demandante e pelo Demandado.

 

3.4.        Notifiquem-se as partes da presente sentença no CAAD.

 

 

Lisboa, 20 de dezembro de 2019

 

O Árbitro

(Vasco Xavier Mesquita)