Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 1304/2019-A
Data da decisão: 2020-05-11  Contratos 
Valor do pedido: € 160.257,16
Tema: Ação administrativa de condenação com vista ao pagamento dos montantes reclamados com fundamento da execução de diversas empreitadas.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.

BREVE ENQUADRAMENTO DO LITÍGIO

 

1.            Os Demandantes A..., S.A., B..., Lda. e C..., Lda. vieram, em coligação activa [cf. artigo 11.º do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa do Centro de Arbitragem Administrativa (“Regulamento”)], intentar a presente acção arbitral contra o Município D..., na qual cumularam diversos pedidos de condenação da Entidade Demandada.

Como resulta da Petição Inicial, este processo visa a condenação da Entidade Demandada, o Município D..., no pagamento dos montantes reclamados pelos Demandantes com fundamento da execução de diversas empreitadas ao Município, por solicitação deste.

O objecto do litígio arbitral cinge-se assim a saber se tal pagamento é devido, e a que título, pedindo-se que, em caso de resposta afirmativa à questão colocada, seja a Entidade Demandada condenada por este Tribunal a proceder ao pagamento dos montantes reclamados pelos Demandantes.

Nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 2 do Regulamento, a Decisão Arbitral deve conter “uma descrição concisa da base factual, probatória e jurídica que a fundamenta”. Nesta linha, depois do saneamento, proceder-se-á à enunciação dos factos que o Tribunal Arbitral considera provados, com a indicação dos meios de prova que lhe permitiram formar essa convicção, para de seguida se passar ao correspondente enquadramento jurídico, aferindo se, à luz da factualidade assente, devem ou não ser julgados procedentes os pedidos formulados nestes autos.

 

II.

SANEAMENTO E QUESTÕES PRÉVIAS

 

2.            O Tribunal Arbitral é competente.

As Partes gozam de legitimidade, a cumulação de pedidos é admissível, mostram-se preenchidos os requisitos para a coligação voluntária activa e estão em prazo para vir a juízo deduzir as suas pretensões.

Foi paga a taxa devida [cf. artigos 10, n.os 1 e 3, e 29.º, n.os 3 e 4, alínea a) do Regulamento].

O valor da causa é fixado em € 160.257,16 (cento e sessenta mil, duzentos e cinquenta e sete Euros e dezasseis cêntimos), correspondente à soma dos montantes peticionados pelos Demandantes – no total de € 151.186,00 (cento e cinquenta e um mil, cento e oitenta e seis Euros) –, com a adição das quantias devidas a título do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa de 6% (seis por cento).

Não existem excepções ou questões prévias de que importe conhecer e que impeçam o conhecimento do mérito da causa.

 

III.

DOS FACTOS RELEVANTES

 

III.1. PRINCIPAIS FACTOS PROVADOS E COM RELEVO PARA A DECISÃO DA CAUSA

 

3.            Com relevo para a decisão da causa, o Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:

 

A)           O Município D... promoveu o concurso para a realização da pavimentação de arruamentos em ...– Freguesia de ... [cf. artigo 6.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º e 4.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

B)           A A..., S.A. apresentou a única proposta nesse procedimento, com o preço de € 18.253,00, acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal de 6% [cf. artigo 7.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º e 6.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

C)           O júri do concurso propôs a adjudicação dessa proposta, o que mereceu despacho de concordância em 4 de Setembro de 2017, por parte do órgão competente para a decisão de contratar [cf. artigos 7.º e 8.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 7.º e 8.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

D)           O Município D... promoveu o concurso para a requalificação e pavimentação da Estrada Municipal de ligação da EN ... a ... e acessos a ..., ... e  ...[cf. artigo 9.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º e 9.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

E)            A B..., Lda. apresentou a única proposta nesse procedimento, com o preço de € 36.654,00 (trinta e seis mil, seiscentos e cinquenta e quatro Euros) acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal de 6% [cf. artigo 10.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 9.º, 10.º e 11.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

F)            O júri do concurso propôs a adjudicação dessa proposta, o que mereceu despacho de concordância em 4 de Setembro de 2017, por parte do órgão competente para a decisão de contratar [cf. artigos 11.º e 12.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 11.º e 12.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

G)           O Município D... promoveu o concurso para a Pavimentação da Rua da ..., Rua ... e muro de Alvenaria em ... [cf. artigo 13.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º e 13.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

H)           A B..., Lda. apresentou a única proposta nesse procedimento, com o preço de € 76.575,00 (setenta e seis mil, quinhentos e setenta e cinco Euros), acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal de 6% [cf. artigo 14.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 14.º e 15.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

I)             O júri do concurso propôs a adjudicação dessa proposta, o que mereceu despacho de concordância em 4 de Setembro de 2017, por parte do órgão competente para a decisão de contratar [cf. artigos 15.º e 16.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 15.º e 16.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

J)            O Município D... promoveu ainda o concurso para a Pavimentação do largo das festas em ...– Freguesia de ... [cf. artigo 17.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º e 17.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

K)           A C..., Lda. apresentou a única proposta nesse procedimento, com o preço de € 19.704,00 (dezanove mil, setecentos e quatro Euros), acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal de 6% [cf. artigo 17.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 17.º e 18.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

L)            O júri do concurso propôs a adjudicação dessa proposta, o que mereceu despacho de concordância em 4 de Setembro de 2017, por parte do órgão competente para a decisão de contratar [cf. artigos 18.º e 19.º da Petição Inicial, admitido por acordo (artigos 1.º, 18.º e 19.º da Contestação), bem como os documentos juntos no separador 282 do processo instrutor];

M)          Todas as empreitadas referidas nas alíneas anteriores foram executadas pelos Demandantes, do que resultou o correspondente benefício do Município D... (cf. artigos 6.º a 19.º, 23.º a 25.º da Petição Inicial, bem como artigos 1º, 2.º, 20.º e 23.º a 25.º da Contestação e processo instrutor);

N)           O Município D... nunca procedeu ao pagamento dos montantes reclamados pelos Demandantes, apesar de ter sido, por diversas vezes, interpelado para o efeito (cf. artigos 4.º, 5.º e 20.º a 26.º da Petição Inicial, bem como artigos 3.º e 20.º a 23.º da Contestação e processo instrutor).

 

III.2. FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL QUANTO À PROVA

 

4.            Todos os factos acima enunciados foram dados por provados por acordo das Partes, além de virem corroborados pelos documentos que constam do processo instrutor.

De resto, deve dizer-se que o cerne do presente litígio não se prende, seguramente, com a determinação da matéria de facto, porquanto não restam dúvidas de que a Entidade Demandada reconhece que as pretensões dos Demandantes gozam de pleno suporte factual.

Desde logo, no Compromisso Arbitral subscrito em 24 de Novembro de 2019, o Município admite expressamente que “estabeleceu relações com as demais partes contratantes enquanto destinatária das obras por estas realizadas” [cf. Considerando B)], sendo que os serviços municipais “confirmaram a realização da obra ” [cf. Considerando C)], estando, pois, o Município “consciente da existência dessas empreitadas, confirmadas sem reservas pelos serviços, que determinaram inerente benefício para o interesse público” [cf. Considerando E)]. Por esse motivo, as Partes reconheceram estar de acordo quanto à existência e conclusão das empreitadas (cf. Cláusula Primeira, n.º 2).

Subsequentemente, na Contestação apresentada nos autos, o Município D... aceitou como verdadeiros os factos invocados pelos Demandantes (cf. artigo 1.º) e reconheceu expressamente e sem reservas “a existência e conclusão das empreitadas supra descritas” (cf. artigo 24.º).

No que respeita aos factos, por conseguinte, regista-se aqui o acordo das Partes ou, porventura mais rigorosamente, a confissão de tais factos pela Entidade Demandada [cf. artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (“CPC”), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho]. Com efeito, o Município não impugnou os factos invocados pelos Demandantes, tendo, antes, pelo contrário, procedido à sua admissão expressa, aplicando-se a cominação do artigo 574.º, n.º 2 do CPC.

Confrontando o articulado da sua contestação, verifica-se que o Município D... não contesta os factos, assume-os, questionando apenas se, em face dos mesmos, se encontra juridicamente habilitado a proceder ao pagamento das obras realizadas. Tratando-se de factos pessoais e disponíveis, é esta confissão válida e eficaz.

Além disso, a consulta ao processo instrutor permitiu igualmente corroborar a veracidade dos factos invocados, o que, em complemento do acordo das Partes, contribuiu para reforçar a convicção deste Tribunal Arbitral no que respeita a esta matéria.

Nesta linha, a decisão sobre o presente litígio prende-se, exclusivamente, com matéria de Direito, relativa a saber se o Município pode e deve proceder ao pagamento das quantias que lhe foram reclamadas pelos Demandantes, a título da realização das empreitadas de que a edilidade foi comprovadamente beneficiária.

É essa, então, a vexata quaestio sobre a qual o Tribunal Arbitral passará agora a debruçar-se, de modo a determinar se o pagamento peticionando pelos Demandantes é ou não juridicamente devido e se, por conseguinte, a Entidade Demandada deverá ser condenada a satisfazer os créditos reclamados por aqueles.

 

IV.

DO DIREITO

 

5.            O exposto no capítulo anterior permite assim compreender que as Partes estão de acordo quanto à factualidade subjacente ao litígio e relevante para a decisão da causa.

A única questão controvertida nestes autos prende-se, portanto, não com os factos que devem ou não ter-se por assentes, mas antes com o enquadramento jurídico que lhes cabe.

Dito de outro modo: sendo pacífico – porque suportado pelos documentos juntos ao processo instrutor e também porque expressamente aceite pela Entidade Demandada – que os Demandantes executaram obras a pedido e em beneficio da Câmara Municipal D..., o que importa saber é se, não tendo a contratação de tais obras sido formalizada pela edilidade (apesar de terem sido adoptados os procedimentos legalmente previstos para esse efeito), ainda assim, os Demandantes têm direito ao pagamento do respectivo preço ou se, pelo contrário, tal pagamento não é devido.

É, pois, esta a questão decidendi que cumpre aqui apreciar, sabendo-se que, como resulta do disposto no artigo 26.º, n.º 1 do Regulamento, o Tribunal Arbitral está vinculado a julgar a causa segundo o Direito constituído.

 

6.            Antes de mais, um breve enquadramento: resultando provado que a Câmara Municipal D... promoveu procedimentos pré-contratuais para a celebração de contratos de empreitada de obras públicas, nos quais os Demandantes apresentaram as respectivas propostas, as quais foram adjudicadas, e que, nessa sequência, os Demandantes executaram os correspondentes trabalhos de empreitada, estamos perante a celebração de verdadeiros contratos, na medida em que, em todos os casos, ambas as partes assumiram obrigações sinalagmáticas e juridicamente relevantes, havendo um encontro de declarações negociais cruzadas, que firmaram um vínculo bilateral. A ausência de clausulado escrito não obsta à qualificação das relações entre os Demandantes e a Entidade Demandada como verdadeiros e próprios negócios jurídicos, até porque o conceito de “contrato” não pressupõe uma forma específica ou um nomen iuris próprio – pelo contrário, a lei basta-se com a existência de um “acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação” [cf. artigo 280.º, n.º 1 do Código dos Contratos Públicos (“CCP”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro] – e o legislador admite de forma expressa que os contratos celebrados por entidades públicas não têm necessariamente de revestir a forma escrita (cf. artigo 95.º, n.os 1 e 2, do CCP).

Se o que está aqui em apreciação é a validade de contratos, então importa começar por sublinhar que, enquanto autarquia local (cf. artigo 236.º, n.º 1 da Constituição), o Município D... é, indiscutivelmente, uma entidade adjudicante e, como tal, sujeita às regras procedimentais estabelecidas no CCP – veja-se o artigo 2.º, n.º 1, alínea c) deste Código.

Nesta linha, a celebração de contratos cujo objecto integre prestações passíveis de serem submetidas à concorrência (cf. artigo 5.º, n.º 1, a contrario, do CCP) – como é, seguramente, o caso da empreitada de obras públicas [cf. artigo 16.º, n.º 2, alínea a) do CCP]  – deve obrigatoriamente ser antecedida de procedimentos próprios, previstos e tipificados no CCP.

 

7.            Ora, confrontando os documentos juntos ao processo instrutor e atentando nos factos invocados nos articulados apresentados pelas Partes, verifica-se que o Município D... promoveu procedimentos concursais com vista à celebração de contratos de empreitada de obras públicas – simplesmente, por motivos que se desconhecem (sendo que a Entidade Demandada admitiu não ter conhecimento das razões subjacentes a este facto, porquanto, segundo alega, os factos subjacentes a este litígio ocorreram antes de o actual executivo municipal tomar posse e não existir suporte documental além do que consta do processo instrutor: cf. artigos 23.º da Petição Inicial e da Contestação), apesar de terem sido apresentadas e adjudicadas as propostas apresentadas pelos Demandantes nesses concursos, não se chegou a celebrar qualquer contrato escrito, tendo-se passado directamente à execução dos trabalhos previstos nas propostas adjudicadas, sem que, depois, tenha sido pago aos Demandantes o preço ali previsto.

 

8.            Em suma, apesar de os procedimentos concursais terem sido promovidos, de as propostas terem sido adjudicadas e os trabalhos ali previstos executados, a verdade é que, na sequência da adjudicação datada de 4 de Setembro de 2017 (que ocorreu na mesma data para todos os concursos aqui em apreço), depois nunca se procedeu à formalização do correspondente contrato escrito – sendo que, tendo em conta os valores em causa, era legalmente obrigatório que o contrato revestisse a forma escrita [cf. o artigo 94.º, n.º 1 do CCP, que contém a regra geral, bem como a alínea d) do n.º 1 do artigo 95.º do mesmo diploma, para a (não) verificação da única excepção aqui concretamente equacionável].

A constatação precedente conduz, assim, à consequência inelutável da ilegalidade das aquisições efectuadas pela Entidade Demandada – e trata-se de uma ilegalidade tão grave que a lei a comina mesmo com a nulidade.

É este, pelo menos, o entendimento da jurisprudência administrativa, de acordo com a qual “[a] falta de forma escrita do convencionado, traduz-se na preterição de uma formalidade, cuja consequência não poderá deixar de determinar a nulidade do contrato” (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR, disponível em www.dgsi.pt).

E compreende-se que assim seja: se, nos termos da lei, até a falta – em contratos escritos – de algumas das suas cláusulas é geradora de nulidade (cf. o corpo do n.º 1 do artigo 96.º do CCP), por maioria de razão, a falta de todo o clausulado (a ausência total de forma escrita do contrato), quando a lei o impunha, deve determinar a mesma consequência. Estamos aqui perante uma carência absoluta de forma legal, nos termos da alínea g) do n.º 2 do artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) , aqui aplicável ex vi artigo 284.º, n.º 2 do CCP (neste sentido, cf. também Pedro Fernández Sánchez, Direito da Contratação Pública, Volume II, AAFDL, Lisboa, página 907, para quem o contrato é nulo quando “[a] entidade adjudicante ignora a obrigação de redução do contrato a escrito fora dos casos permitidos pelo artigo 95.º do CCP: a alínea g) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, ao punir a nulidade do acto que carece em absoluto da forma legalmente exigida, não pode deixar de ser aplicável ao contrato que omite a forma escrita”).

 

9.            Sendo nulos os contratos executados, tal significa que os mesmos não produzem quaisquer efeitos jurídicos (conforme determina o artigo 162.º, n.º 1 do CPA), independentemente de declaração da sua nulidade, pelo que, mesmo não tendo sido peticionada (mas apenas pressuposta) pelas Partes a declaração de nulidade dos contratos sub judice, sempre poderá este Tribunal Arbitral conhecer dessa mesma nulidade, para efeitos da decisão sobre os pedidos concretamente formulados nos autos deste processo arbitral.

Uma primeira conclusão que poderia pretender extrair-se deste regime seria a de que, sendo os contratos nulos e não podendo produzir efeitos jurídicos, o pedido dos Demandantes deveria improceder, porquanto o pagamento do preço solicitado pela execução das empreitadas contratadas pela Câmara Municipal D... corresponderia, afinal, ao cumprimento dos contratos, como se fossem válidos (e não estivessem inquinados de uma ilegalidade grave) .

Semelhante conclusão seria, no entanto, precipitada: longe de afastar o direito dos Demandantes ao pagamento do preço devido pelas obras executadas, o regime legal da nulidade impõe, bem pelo contrário, esse mesmo pagamento.

A este propósito, é relevante atentar no disposto no artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, que preceitua que a declaração de nulidade (e a anulação) de um negócio jurídico tem “efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”. A ideia, portanto, é a de que, se o contrato é nulo e não produz efeitos jurídicos , então a declaração da sua nulidade deverá repor a situação actual hipotética e colocar as Partes na situação em que se encontrariam caso o contrato não tivesse sido celebrado, reintegrando o ordenamento jurídico e “apagando” a existência da relação contratual ilegalmente firmada.

Por esse motivo, se ambas as Partes cumpriram as suas prestações contratuais, o regime da nulidade impõe a repetição dessas prestações, ou seja, a devolução, à contraparte, de tudo quanto tiver sido prestado ao abrigo do contrato – neste cenário, mostra-se possível “reescrever” a história, adequando o plano dos factos ao plano estritamente jurídico.

Mas, também por esse motivo, se a repetição ou restituição em espécie não for possível, nesse caso impõe-se a reconstituição monetária, através do pagamento do “valor correspondente” às prestações recebidas, já que, não sendo possível a reintegração plena do ordenamento, só esta solução se aproxima da reconstituição da situação actual hipotética de cada uma das Partes, representando o sucedâneo jurídico possível quando a reconstituição factual deixou de o ser. Dito de outro modo, só o pagamento do valor correspondente às prestações executadas e não passíveis de repetição pode colocar a parte que cumpriu um contrato nulo na mesma situação (ou na situação mais próxima possível daquela) em que se encontraria se o contrato nunca tivesse sido celebrado.

 

10.          Aplicando este raciocínio ao caso dos autos, é forçoso concluir que, embora os contratos de facto informalmente celebrados entre os Demandantes e a Entidade Demandada sejam nulos, não se mostra possível a repetição das prestações, ditando as regras lógicas e da experiência comum que não é minimamente viável pretender que a Câmara Municipal D... “restitua” aos Demandantes as obras por estes executadas.

Pelo que a aplicação do regime da nulidade, tout court, determina a procedência dos pedidos formulados na presente acção arbitral, impondo que, sendo os contratos nulos e não podendo haver lugar à repetição das prestações, a Entidade Demandada devolva aos Demandantes o “valor correspondente” às prestações ilegalmente recebidas.

 

11.          Apesar de (obviamente) patológica, a situação dos autos está longe de ser excepcional, sendo possível registar a ocorrência de múltiplos outros casos similares aos que aqui se discutem, tendo os Tribunais administrativos reiteradamente chegado à mesma conclusão que acima se alcançou.

Na verdade, a jurisprudência administrativa sobre os denominados “contratos de facto”  é não apenas reiterada como consistente, no sentido de que, mesmo quando celebrados na ausência de um procedimento e nem sequer reduzidos a escrito, tais contratos existem e não podem ser ignorados, não podendo o ordenamento ser insensível à existência e cumprimento (ainda que só por uma das partes) de um contrato, mesmo que sob o pretexto da respectiva invalidade. Ou, numa formulação mais directa, dizer-se que o negócio jurídico é nulo não é nem pode ser o mesmo do que pretender que o mesmo “seria equivalente a um nada, como se pura e simplesmente não tivesse acontecido” (cf. os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Janeiro de 2016, processo n.º 00636/14.2BEVIS, de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR, de 12 de Junho de 2019, processo n.º 00126/12.8BEMDL, de 31 de Outubro de 2019, processo n.º 01818/11.4BEBRG, e de 15 de Novembro de 2019, processo n.º 00311/11.5BEMDL, todos disponíveis em www.dgsi.pt), razão pela qual “os serviços originariamente contratualizados, enquanto “Contrato de facto”, terão de ser remunerados” (cf. os já citados Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Janeiro de 2016, processo n.º 00636/14.2BEVIS, e de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR).

Assim, “[a]purando-se a existência de relações contratuais entre as partes, baseadas na prestação de serviços da Autora à Ré, prolongados no tempo e não recusados por esta, na consequente emissão de facturas pela Autora pelos serviços prestados, na entrega das facturas à Ré para pagamento e na não devolução das facturas à Autora, está o ente público vinculado a pagar os serviços prestados” (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 2 de Abril de 2014, processo n.º 07541/11, disponível em www.dgsi.pt).

Como melhor se explica noutro aresto, “[a]pesar das partes não terem reduzido a escrito o contrato, subsiste uma relação contratual firmada, pelo que se impõe extrair as consequências jurídicas das regras que determinam o pagamento da quantia reclamada com base no pressuposto da invalidade do mesmo.

Em qualquer caso, a nulidade de verbalmente convencionado não implica a desresponsabilização da entidade pública.

(...)

Não é exata a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes.

Tendo os serviços convencionados sido prestados, ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, a relação jurídica deverá ser equiparada a um “Contrato de facto”, cujos serviços terão de ser remunerados” (cf. o já acima citado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR).

 

12.          Por conseguinte, tendo os Demandantes realizado obras a pedido e em benefício da Entidade Demandada, que esta aceitou, então é manifesto que tais prestações têm de ser remuneradas. E isso é assim, repete-se, não apesar de os contratos serem nulos, mas, sim, precisamente por o serem, já que do regime geral da nulidade decorre a necessidade de repetição das prestações ou, não sendo isso possível, a devolução do valor correspondente.

O pagamento do preço das obras realizadas pelos Demandantes à Entidade Demandada é assim devido, repete-se, por aplicação directa do regime da nulidade, não estando fundado em qualquer outro instituto jurídico, nomeadamente no enriquecimento sem causa.

É certo que, caso o Município D... não procedesse ao pagamento dos trabalhos que comprovadamente requisitou e de que inquestionavelmente beneficiou, a sua esfera jurídica sairia enriquecida (na estrita medida correspondente ao valor acrescentado dos trabalhos, sem o desembolso de qualquer contrapartida financeira) e, correlativamente, a esfera dos Demandantes sairia empobrecida (na medida da privação dos trabalhos realizados, não compensada por qualquer incremento patrimonial como sinalagma da prestação); numa tal situação, “o facto de a Administração beneficiar das prestações já executadas sem efectuar o respectivo pagamento constitui, obviamente, um locupletamento injusto à custa do co-contratante” (cf. ALEXANDRA LEITÃO, “Da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa à invalidade dos contratos da Administração Pública”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 31, Janeiro/Fevereiro de 2002, página 18).

Não obstante, a verdade é que, ainda assim, não estariam verificados os pressupostos legais para a convocação do enriquecimento sem causa. Com efeito, como resulta da sua própria denominação, para que exista “enriquecimento sem causa”, é necessário que não haja uma causa subjacente ao enriquecimento, isto é, que alguém, “sem causa justificativa”, enriqueça à custa de outrem, sendo apenas nesses casos que o enriquecido “é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (cf. artigo 473.º, n.º 1 do Código Civil).

Ora, quando alguém “enriquece” à custa da prestação efectuada pela sua contraparte num contrato nulo, pode dizer-se que há um “enriquecimento”, mas há também uma causa, que é, justamente, o contrato (ainda que nulo) celebrado entre as partes. Nesta linha, se há uma causa para o incremento patrimonial do enriquecido, a figura do enriquecimento sem causa não é, por definição, aplicável; e, em bom rigor, não é também necessária, pois o “locupletamento” injusto do enriquecido é neutralizado, não pelo regime do enriquecimento sem causa, mas antes pela aplicação do regime da nulidade, o qual, como se viu, obriga a parte a restituir à contraparte a prestação desta recebida ou a devolver-lhe o valor correspondente. É nisto que consiste a subsidiariedade do enriquecimento sem causa, claramente afirmada pelo legislador no artigo 474.º do Código Civil, que dispõe que “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

Ou seja, num contrato nulo, não só há uma causa para o enriquecimento (que assenta na existência de um contrato, ainda que inválido) como, além disso, há também outro meio de reintegrar a esfera jurídica do empobrecido, pelo que não o mecanismo (assumidamente subsidiário) do enriquecimento sem causa não encontra aqui qualquer campo de aplicação. É esta, de resto, também a lição da jurisprudência administrativa, que pacificamente entende que “[o] regime da nulidade do contrato, em particular da regra de restituição de tudo o que tiver sido prestado, impede o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste” [cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Dezembro de 2008, processo n.º 0301/08, e de 18 de Fevereiro de 2010, processo n.º 0379/07, bem como os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 20 de Fevereiro de 2014, processo n.º 07387/11, de 2 de Abril de 2014, processo n.º 07541/11, e de 28 de Fevereiro de 2018, processo n.º 6/14.2BEFUN, e ainda os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 17 de Abril de 2015, processo n.º 00949/11.5BEBRG, e de 1 de Julho de 2016, processo n.º 01231/11.3BEBRG, todos disponíveis em www.dgsi.pt].

 

13.          É certo que não pode deixar de se ter em conta, neste raciocínio, o disposto na denominada “Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso”, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de de 21 de Fevereiro (que aprovou as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas).

Sublinha-se que o artigo 5.º, n.º 3 dessa lei estabelece que “[o]s sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos” – o que, a par do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea g) do CPA, acima citado, constituiria um fundamento adicional para fundamentar a nulidade dos contratos de facto celebrados entre os Demandantes e a Entidade Demandada.

Para o que aqui importa, porém, o artigo 9.º, n.º 2 desse mesmo diploma dispõe que “[o]s agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma”. Esta lei consagra assim uma nulidade atípica, alterando o regime geral da nulidade dos contratos e vedando, ou pretendendo vedar, uma das principais consequências desse regime geral, a devolução do “valor correspondente” a que se refere o artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil. Para mais, embora se preveja que o “efeito anulatório” (sic.) possa ser afastado “quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício do ato procedimental em causa, a anulação do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa fé” (cf. artigo 5.º, n.º 4), tal afastamento só pode ser efectuado por decisão judicial, e já não por decisão arbitral – no que representou uma exclusão expressamente determinada pelo legislador, diga-se, já que a versão original do diploma permitia expressamente o afastamento do efeito anulatório (também) por decisão arbitral, tendo o artigo 19.º da Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, eliminado essa possibilidade e passado a prevê-la unicamente em caso de decisão judicial (sem prejuízo do campo de aplicação ainda deixado às decisões arbitrais no que se refere ao afastamento do efeito anulatório previsto nos artigos 283.º, n.º 4 e 285.º, n.º 4 do CCP).

A questão suscita-se, essencialmente, porque os Demandantes, nos artigos 30.º a 43.º da Petição Inicial, fazem expressa referência ao regime da “Lei dos Compromissos”, fundando neste (ou melhor, na sua violação) a consequência da nulidade dos contratos celebrados e procurando depois evidenciar que a ponderação dos interesses relevantes no caso aponta no sentido do afastamento do efeito anulatório previsto no artigo 5.º, n.º 3 daquela Lei.

Não pode o Tribunal Arbitral acompanhar – pelo menos, não em toda a sua extensão – a argumentação expendida pelos Demandantes quanto a este ponto.

Na verdade, embora o Tribunal Arbitral não tenha quaisquer dúvidas ou reservas em concordar quanto à ponderação de interesses ensaiada na Petição Inicial, e considere, por isso, que os Demandantes não podem deixar de ser pagos pelas obras realizadas, como já acima se referiu, o caminho para fundamentar o direito a tal pagamento não pode passar pelo afastamento do efeito anulatório por meio da decisão a proferir nestes autos, porquanto, como também se evidenciou, a lei hoje não atribui tal faculdade à jurisdição arbitral.

Não obstante, e sem prejuízo do alegado pelas Partes, afigura-se que não é também o regime da “Lei dos Compromissos” um obstáculo decisivo à procedência dos pedidos.

Por um lado, porque parece notório que tal regime não foi, manifestamente, pensado para casos como os que aqui se deparam; por outro lado, porque as finalidades que esse regime visa prosseguir acabam, em qualquer caso, por ser prosseguidas através da emissão de decisão condenatória, com base na qual o Município D... poderá inscrever este encargo no orçamento e, com tal cabimento, proceder ao pagamento dos débitos indiscutivelmente contraídos perante terceiros; por fim, não esquecendo que a conformidade deste regime legal face à Constituição tem sido questionada por alguma doutrina (cf., por último, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Direito da Despesa Pública, Almedina, Coimbra, 2019, páginas 213 e 214) e, mesmo, abertamente rejeitada por outra (cf., paradigmaticamente, HUGO FLORES DA SILVA, “Principais consequências da violação da lei dos compromissos e dos pagamentos em atraso”, in Direito Regional e Local, n.º 20, Outubro/Dezembro de 2012, páginas 42, 45 e 46),  afigura-se que só uma interpretação no sentido de permitir – e obrigar – a Entidade Demandada a proceder ao pagamento do preço peticionado pelos Demandantes poderia salvar a constitucionalidade do mencionado artigo 9.º, n.º 2 da “Lei dos Compromissos”, sob pena de irremediável violação, pelo menos, dos princípios da boa fé e da protecção da confiança, que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático (cf. artigo 2.º da Constituição), e da proporcionalidade (cf. artigo 18.º, n.º 2), quando não do princípio da igualdade (cf. artigo 13.º, n.º 1) e do direito de propriedade (cf. artigo 62.º, n.º 1), bem como do direito ao salário [cf. artigo 59.º, n.º 1, alínea a)], entendido amplamente.

Nesta linha, sendo possível uma interpretação conforme à Constituição e estando os  Tribunais – como qualquer intérprete – vinculados a, entre diversas leituras possíveis de uma norma, escolher aquela que assegura a sua conformidade com a Lei Fundamental, em detrimento de qualquer outra que implicasse a sua inconstitucionalidade, este Tribunal Arbitral, por apelo aos princípios constitucionais acima referidos, pronuncia-se no sentido de o artigo 9.º, n.º 2 da “Lei dos Compromissos”, interpretado à luz dos cânones hermenêuticos que decorrem de tais princípios, não vedar o pagamento peticionado pelos Demandantes.

Em suma, recuperando aqui a douta jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, “face à nulidade da relação contratual havida, outra posição que não aquela para que se propende conduziria a manifesta injustiça, isto é, a que a nulidade cometida fosse tratada como se o negócio jurídico em causa equivalesse a um nada.

Na verdade, tal permitiria que o Réu (...), pese embora a celebração da obra, pudesse furtar-se ao pagamento dos encargos que ela representou para o autor da acção” (cf. Acórdão de 18 de Fevereiro de 2010, processo n.º 379/07, disponível em www.dgsi.pt) – o que representa um resultado absolutamente desconforme ao Direito e que este Tribunal Arbitral não pode acolher.

Como bem se afirma no artigo 41.º da Petição Inicial, era ao Demandado Município D... que cabia ter observado todos os trâmites procedimentais para a aquisição das obras solicitados; e, de resto, em consonância com este entendimento, os Tribunais Administrativos têm recorrentemente afastado o efeito decorrente da aplicação da “Lei dos Compromissos”, por se considerar que a declaração de nulidade, em casos em que o vício é imputável à entidade pública que já beneficiou dos trabalhos, bens ou serviços e pretende escusar-se ao respectivo pagamento, “conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada” por parte da Administração Pública, traduzindo-se ainda numa desproporcionada violação do princípio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto», resultante da nulidade verificada, equivalesse a um nada” (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 8 de Abril de 2016, processo n.º 02730/14.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt) . Aliás, o Supremo Tribunal Administrativo tem mesmo adoptado uma leitura mais abrangente, decidindo de forma reiterada que a regra do artigo 289.º do Código Civil (da qual se retira que “o beneficiário de um serviço já prestado – e não restituível – em execução de um contrato nulo deverá entregar à outra parte contratante o valor objectivo do serviço recebido”) “é alheia ao teor de quaisquer princípios administrativos, bem como às regras ligadas à autonomia dos municípios ou ao cabimento orçamental” (cf. Acórdãos de 10 de Novembro de 2016, processo n.º 0391/16, de 7 de Dezembro de 2016, processo n.º 0688/16, de 4 de Maio de 2017, processos n.º 0443/16 e n.º 01209/16, de 1 de Junho de 2017, processo n.º 0401/16, e de 20 de Junho de 2017, processo n.º 0437/16, todos disponíveis em www.dgsi.pt; destaque acrescentado).

Diga-se, aliás, que foi também este o entendimento adoptado por este mesmo Tribunal Arbitral em três outros processos (sob o n.º 1290/2019-A, n.º 1302/2019-A e n.º 1303/2019-A), cujos contornos factuais eram, no essencial, similares aos dos presentes autos, sendo o raciocínio aí expendido transponível para aqui, por maioria de razão (cf. a primeira daquelas decisões, em https://caad.org.pt/administrativo/decisoes/decisao.php?listPage=17&id=174).

 

14.          Estando, pois assente que o Município D... deve ser condenado a pagar aos Demandantes o preço devido pelas obras executadas, agora só falta, por fim, apurar o montante desse mesmo preço.

É entendimento deste Tribunal Arbitral que a quantificação do preço devido pelos trabalhos prestados pelos Demandantes à Entidade Demandada não pode deixar de coincidir com os montantes reclamados pelos Demandantes.

Com efeito, tais montantes correspondem aos preços previstos nas propostas por si apresentadas nos concursos promovidos pelo Município D..., os quais, por um lado, eram inferiores aos preços base fixados nesses concursos  (cf. artigos 11.º, 15.º e 18.º da Contestação), e, por outro lado, foram expressamente aceites pelo júri e pela entidade adjudicante, verificando-se, portanto, um acordo sobre esses preços contratuais.

Além de que, num plano distinto, mesmo nestes autos não se verificou propriamente uma impugnação, pela Entidade Demandada, quanto a esses preços. O que se compreende, já que é o próprio Município D... que reconhece ter “inclusive definido os respectivos preços” (cf. artigo 21.º da Contestação), o que tornaria agora incongruente, num tal cenário, a refutação dos preços apresentados pelos Demandantes.

 

15.          Nos termos da LOPTC, as autarquias locais estão integradas no âmbito subjectivo de jurisdição daquele Tribunal [cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea c)].

Do mesmo modo, compete ao Tribunal de Contas “[j]ulgar a efectivação de responsabilidades financeiras de quem gere e utiliza dinheiros públicos” [cf. artigo 5.º, n.º 1, alínea e) da LOPTC].

No caso dos autos, verifica-se ter ocorrido a celebração de contratos onerosos em inobservância das regras legais da contratação pública, com a consequente nulidade dos contratos desse modo firmados e dando origem ao pagamento dos montantes reclamados pelos operadores económicos com quem o Município D... contratou, sem cobertura legal para tal despesa.

Nesta linha, porque os factos dados como provados neste processo podem configurar (ou ter na sua origem) violações passíveis de desencadear a responsabilidade financeira dos titulares dos órgãos ou agentes administrativos envolvidos, deverá ser dado conhecimento desta Decisão Arbitral ao Tribunal de Contas, de modo a permitir a este órgão o apuramento das eventuais responsabilidades financeiras a que haja lugar e, se for o caso, a aplicação das correspondentes sanções, nos termos do disposto nos artigos 57.º e seguintes da LOPTC.

 

V.

DECISÃO

 

16.          Em consequência, o Tribunal Arbitral decide:

 

a)            Julgar a acção totalmente procedente e, em consequência, condenar o Município D... a pagar aos Demandantes as quantias por estes peticionadas, conforme abaixo se indica:

 

a.1)        € 54.907,00 (cinquenta e quatro mil, novecentos e sete Euros) – resultante da soma das parcelas de € 18.253,00 e de € 36.654,00 – à Primeira Demandante, acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal aplicável;

a.2)        € 76.575,00 (setenta e seis mil, quinhentos e setenta e cinco Euros) à Segunda Demandante, acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal aplicável;

a.3)        € 19.704,00 (dezanove mil, setecentos e quatro Euros) à Terceira Demandante, acrescido do Imposto sobre o Valor Acrescentado, à taxa legal aplicável;

b)           Determinar que os pagamentos referidos na alínea anterior deverão ser efectuados no prazo de 60 dias previsto na Cláusula Sexta do Compromisso Arbitral, conforme o pedido formulado nos autos;

c)            Determinar que, em consequência, as custas e encargos do processo ficam integralmente a cargo da Entidade Demandada (cf. artigo 29.º, n.º 6 do Regulamento); bem como

d)           Determinar a remessa desta decisão ao Tribunal de Contas, para os efeitos tidos por convenientes.

 

Publique-se, após o expurgo dos elementos susceptíveis de permitir a identificação das Partes, conforme o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Regulamento.

 

Lisboa, 11 de Maio de 2020

 

O árbitro único

 

(Marco Caldeira)