Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 1303/2019-A
Data da decisão: 2020-04-30  Contratos 
Valor do pedido: € 116.895,16
Tema: Ação administrativa de condenação com vista ao pagamento dos montantes reclamados com fundamento do fornecimento de bens e da prestação de serviços.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

I.

BREVE ENQUADRAMENTO DO LITÍGIO

 

1.            Os Demandantes A..., Lda., B... C..., Lda., D..., E..., Lda. e  F... vieram, em coligação activa [cf. artigo 11.º do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa do Centro de Arbitragem Administrativa (“Regulamento”)], intentar a presente acção arbitral contra o Município G..., na qual cumularam diversos pedidos de condenação da Entidade Demandada.

Como resulta do articulado da petição inicial conjunta, este processo visa a condenação da Entidade Demandada, o Município G..., no pagamento dos montantes reclamados pelos Demandantes com fundamento do fornecimento de diversos bens e da prestação de diversos serviços ao Município, por solicitação deste.

O objecto do litígio arbitral cinge-se assim a saber se tal pagamento é devido, e a que título, pedindo-se que, em caso de resposta afirmativa à questão colocada, seja a Entidade Demandada condenada por este Tribunal a proceder ao pagamento dos montantes reclamados pelos Demandantes.

Nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 2 do Regulamento, a Decisão Arbitral deve conter “uma descrição concisa da base factual, probatória e jurídica que a fundamenta”. Nesta linha, depois do saneamento, proceder-se-á à enunciação dos factos que o Tribunal Arbitral considera provados, com a indicação dos meios de prova que lhe permitiram formar essa convicção, para de seguida se passar ao correspondente enquadramento jurídico, aferindo se, à luz da factualidade assente, devem ou não ser julgados procedentes os pedidos formulados nestes autos.

 

II.

SANEAMENTO E QUESTÕES PRÉVIAS

 

2.            O Tribunal Arbitral é competente.

As Partes gozam de legitimidade, a cumulação de pedidos é admissível, mostram-se preenchidos os requisitos para a coligação voluntária activa e estão em prazo para vir a juízo deduzir as suas pretensões.

Foi paga a taxa devida [cf. artigos 10, n.os 1 e 3, e 29.º, n.os 3 e 4, alínea a) do Regulamento].

O valor da causa é fixado em € 116.904,38 (cento e dezasseis mil, novecentos e quatro Euros e trinta e oito cêntimos), correspondente à soma dos montantes peticionados pelos Demandantes.

Não existem excepções ou questões prévias de que importe conhecer e que impeçam o conhecimento do mérito da causa.

 

III.

DOS FACTOS RELEVANTES

 

III.1. PRINCIPAIS FACTOS PROVADOS E COM RELEVO PARA A DECISÃO DA CAUSA

 

3.            Com relevo para a decisão da causa, o Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:

 

A)           A A..., Lda. prestou ao Município G..., por solicitação deste, os serviços mais detalhadamente descritos no artigo 2.º da petição inicial, que aqui se dá por reproduzido (cf. o referido artigo e os documentos juntos no separador 258 do processo instrutor);

B)           Pela execução de tais trabalhos, reclamou do Município o pagamento da quantia de € 14.427,90 (catorze mil, quatrocentos e vinte e sete Euros e noventa cêntimos) (cf. artigo 2.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no separador 258 do processo instrutor);

C)           B... (conforme a rectificação de identidade requerida nos autos em 13 de Abril de 2020) forneceu e entregou ao Município G..., em Novembro de 2017, 175 metros de capas 30x12 azuis escasquilhadas, destinadas à reparação de estradas e caminhos municpais (cf. artigo 4.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no separador 616 do processo instrutor);

D)           Pela execução de tais trabalhos, reclamou do Município o pagamento da quantia de € 4.305,00 (quatro mil, trezentos e cinco Euros) (cf. artigo 4.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no separador 616 do processo instrutor);

E)            A C..., Lda. prestou ao Município G..., por solicitação deste, os serviços mais detalhadamente descritos no artigo 6.º da petição inicial, que aqui se dá por reproduzido (cf. o referido artigo e os documentos juntos no separador 814 do processo instrutor),

F)            Pela execução de tais trabalhos, reclamou do Município o pagamento da quantia de € 33.823,72 (trinta e três mil, oitocentos e vinte e três Euros e setenta e dois cêntimos) (cf. artigo 6.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no separador 814 do processo instrutor);

G)           D... prestou ao Município G..., por solicitação deste, os serviços mais detalhadamente descritos no artigo 7.º da petição inicial, que aqui se dá por reproduzido (cf. o referido artigo e os documentos juntos no separador 1183 do processo instrutor);

H)           Pela execução de tais trabalhos, reclamou do Município o pagamento da quantia de € 38.981,61 (trinta e oito mil, novecentos e oitenta e um Euros e sessenta e um cêntimos) (cf. artigo 7.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no separador 1183 do processo instrutor);

I)             A E..., Lda. prestou ao Município G..., por solicitação deste, os serviços mais detalhadamente descritos no artigo 8.º da petição inicial, que aqui se dá por reproduzido (cf. o referido artigo e os documentos juntos no separador 5615 do processo instrutor);

J)            Pela execução de tais trabalhos, entende agora ser devido o pagamento da quantia de € 14.116,15 (catorze mil, cento e dezasseis Euros e quinze cêntimos), tendo presente a medição das quantidades executadas levada a cabo conjuntamente com o Município G... (cf. artigo 8.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no separador 5615 do processo instrutor, bem como o requerimento conjunto apresentado nos autos em 23 de Abril de 2020);

K)           F... prestou ao Município G..., por solicitação deste, os serviços mais detalhadamente descritos no artigo 9.º da petição inicial (cf. o referido artigo e os documentos juntos no processo instrutor);

L)            Pela execução de tais trabalhos, reclamou do Município o pagamento da quantia de € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta Euros) (cf. artigo 9.º da petição inicial conjunta e os documentos juntos no processo instrutor);

M)          Todos os bens e serviços referidos nas alíneas anteriores foram executados em benefício e após solicitação do Município G... (cf. artigos 11.º, 18.º, 19.º e 28.º a 30.º da petição inicial conjunta e processo instrutor);

N)           O Município G... nunca procedeu ao pagamento dos montantes reclamados pelos Demandantes, apesar de ter sido, por diversas vezes, interpelado para o efeito (cf. processo instrutor).

 

 

 

III.2. FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL QUANTO À PROVA

 

4.            Todos os factos acima enunciados foram dados por provados por acordo das Partes, além de virem corroborados pelos documentos que constam do processo instrutor.

De resto, deve dizer-se que o cerne do presente litígio não se prende, seguramente, com a determinação da matéria de facto, porquanto não restam dúvidas de que a Entidade Demandada reconhece que as pretensões dos Demandantes gozam de pleno suporte factual.

Desde logo, no Compromisso Arbitral subscrito em 14 de Novembro de 2019, o Município admite expressamente que “estabeleceu relações com as demais partes contratantes enquanto destinatária de bens e serviços por estas fornecidos” [cf. Considerando B)], tendo os serviços municipais “confirmado todos esses fornecimentos” [cf. Considerando C)], estando, pois, o Município “consciente da existência desses fornecimentos que determinaram a entrega ao Município dos correspondentes bens e a entrega dos atinentes serviços” [cf. Considerando E)]. Por esse motivo, as Partes reconheceram estar de acordo quanto à existência dos fornecimentos (cf. Cláusula Primeira, n.º 2), razão pela qual, aliás, requereram a apresentação de um articulado único (cf. Cláusula Quarta, n.º 2).

Subsequentemente, nesse articulado único – isto é, na petição inicial conjuntamente apresentada por Demandantes e Entidade Demandada –, foi reiterada a confissão do estabelecimento de relações contratuais (cf. artigo 11.º) e a confirmação dos fornecimentos de bens e prestações de serviços em causa nestes autos (cf. artigo 12.º), tendo o Município G... reconhecido expressamente “a existência dos fornecimentos, melhores descritos, nos artigos 2 a 9 deste articulado, que determinaram a entrega ao Município dos correspondentes bens e a prestação dos atinentes serviços” (cf. artigo 15.º). Aliás, significativamente, os artigos 1.º a 16.º da petição inicial conjunta integram-se num capítulo intitulado pelas Partes “Factos admitidos por acordo”, o que não deixa de ser sintomático.

No que respeita aos factos, por conseguinte, regista-se aqui o acordo das Partes ou, porventura mais rigorosamente, a confissão de tais factos pela Entidade Demandada [cf. artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (“CPC”), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho]. Para todos os efeitos, tudo se passa como se o Município, no seu articulado de defesa,  não tivesse impugnado os factos invocados pelos Demandantes, mas antes, pelo contrário, os tivesse expressamente admitido, aplicando-se a cominação do artigo 574.º, n.º 2 do CPC  e que não deve ser afastada pela mera circunstância formal de, no caso, não ter existido um articulado autónomo de defesa por parte da Entidade Demandada – não só porque, materialmente, a unidade ou pluralidade de articulados não altera a posição das Partes relativamente aos factos invocados, como também porque o pedido de apresentação de um articulado único (conjunto) se deveu precisamente à circunstância de as Partes estarem de acordo, pelo menos, “quanto a uma parte substancial dos factos que enquadram o objecto do litígio” (cf., novamente, a Cláusula Quarta, n.º 2 do Compromisso Arbitral).

O Município G... não contesta os factos, assume-os, questionando apenas se, em face dos mesmos, se encontra juridicamente habilitado a proceder ao pagamento dos bens e serviços que lhe foram entregues, podendo dizer-se que, em certo sentido, através deste processo arbitral, a Entidade Demandada procura obter um título que lhe permita proceder a um pagamento a que voluntariamente se predispôs, em virtude de não pretender locupletar-se com os valores correspondentes ao dispêndio de tempo, trabalho e bens dos Demandantes (cf. artigo 16.º da petição inicial conjunta), no que, diga-se, não constitui qualquer utilização anormal do processo. Tratando-se de factos pessoais e disponíveis, é esta confissão válida e eficaz.

Além disso, a consulta ao processo instrutor permitiu igualmente corroborar a veracidade dos factos invocados, o que, em complemento do acordo das Partes, contribuiu para reforçar a convicção deste Tribunal Arbitral no que respeita a esta matéria.

Especificamente no que respeita à prova dos factos invocados no artigo 8.º da petição inicial, é ainda de atender à diligência probatória levada conjuntamente a cabo pela Quinta Demandante e a Entidade Demandada, que conduziu à apresentação do requerimento de 23 de Abril de 2020, no qual, após medição dos trabalhos, as Partes manifestaram estar de acordo quanto às quantidades executadas pela Quinta Demandante e quanto ao correspondente valor a ser pago pela Entidade Demandada.

Nesta linha, a decisão sobre o presente litígio prende-se, exclusivamente, com matéria de Direito, relativa a saber se o Município pode e deve proceder ao pagamento das quantias que lhe foram reclamadas pelos Demandantes, a título dos fornecimentos de bens e das prestações de serviços de que a edilidade foi comprovadamente beneficiária.

É essa, então, a vexata quaestio sobre a qual o Tribunal Arbitral passará agora a debruçar-se, de modo a determinar se o pagamento peticionando pelos Demandantes é ou não juridicamente devido e se, por conseguinte, a Entidade Demandada deverá ser condenada a satisfazer os créditos reclamados por aqueles.

 

IV.

DO DIREITO

 

5.            O exposto no capítulo anterior permite assim compreender que as Partes estão de acordo quanto à factualidade subjacente ao litígio e relevante para a decisão da causa.

A única questão controvertida nestes autos prende-se, portanto, não com os factos que devem ou não ter-se por assentes, mas antes com o enquadramento jurídico que lhes cabe.

Dito de outro modo: sendo pacífico – porque suportado pelos documentos juntos ao processo instrutor e também porque expressamente aceite pela Entidade Demandada – que os Demandantes prestaram serviços e forneceram bens à Câmara Municipal G..., o que importa saber é se, não tendo tais bens e serviços sido contratados pela edilidade na sequência dos procedimentos legalmente previstos para esse efeito, ainda assim os Demandantes têm direito ao pagamento do respectivo preço ou se, pelo contrário, tal pagamento não é devido.

É, pois, esta a questão decidendi que cumpre aqui apreciar, sabendo-se que, como resulta do disposto no artigo 26.º, n.º 1 do Regulamento, o Tribunal Arbitral está vinculado a julgar a causa segundo o Direito constituído.

 

6.            Antes de mais, um breve enquadramento: resultando provado que a Câmara Municipal G... solicitou expressamente aos Demandantes a entrega de bens ou a prestação de serviços, tendo tais trabalhos sido realizados por estes e aceites por aquela, estamos perante a celebração de verdadeiros contratos, na medida em que, em todos os casos, ambas as partes assumiram obrigações sinalagmáticas e juridicamente relevantes, havendo um encontro de declarações negociais cruzadas, que firmaram um vínculo bilateral. A ausência de procedimento próprio e de clausulado escrito não obstam à qualificação das relações entre os Demandantes e a Entidade Demandada como verdadeiros e próprios negócios jurídicos, até porque o conceito de “contrato” não pressupõe uma forma específica ou um nomen iuris próprio – pelo contrário, a lei basta-se com a existência de um “acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação” [cf. artigo 280.º, n.º 1 do Código dos Contratos Públicos (“CCP”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro] – e o legislador admite de forma expressa que os contratos celebrados por entidades públicas não têm necessariamente de revestir a forma escrita (cf. artigo 95.º, n.os 1 e 2, do CCP), numa possibilidade que, de resto, cobre as relações estabelecidas entre a Câmara Municipal G... e alguns dos Demandantes, desde logo tendo em conta o valor dos bens ou serviços em causa [cf. artigo 95.º, n.º 1, alínea a) do CCP].

Se o que está aqui em apreciação é a validade de contratos, então importa começar por sublinhar que, enquanto autarquia local (cf. artigo 236.º, n.º 1 da Constituição), o Município G... é, indiscutivelmente, uma entidade adjudicante e, como tal, sujeita às regras procedimentais estabelecidas no CCP – veja-se o artigo 2.º, n.º 1, alínea c) deste Código.

Nesta linha, a celebração de contratos cujo objecto integre prestações passíveis de serem submetidas à concorrência (cf. artigo 5.º, n.º 1, a contrario, do CCP) – como é, seguramente, o caso da aquisição de bens móveis e de serviços [cf. artigo 16.º, n.º 2, alíneas d) e e) do CCP]  – deve obrigatoriamente ser antecedida de procedimentos próprios, previstos e tipificados no CCP. É dizer: tais aquisições devem obedecer a um iter procedimental mínimo, nem que seja o do ajuste directo, hoje caracterizado por ser um procedimento com convite à apresentação de proposta dirigido a um único operador económico (cf. artigo 112.º, n.º 2 do CCP) e que, quando escolhido em função do critério do valor do contrato a celebrar (cf. artigo 18.º do CCP), permite a celebração de contratos de aquisição de bens ou de serviços até ao montante de € 20.000 [cf. artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do CCP]. Apesar da reduzida carga burocrática deste procedimento, ainda assim, a sua adopção não se confunde com uma contratação puramente informal e desprocedimentalizada; por outras palavras, mesmo que o contrato seja celebrado directamente com um operador económico à escolha da entidade adjudicante, uma coisa é essa celebração ocorrer no contexto da adopção de um ajuste directo – que constitui um procedimento pré-contratual legalmente previsto e tipificado – e outra coisa, totalmente distinta, é o contrato ser celebrado sem a menor observância dos trâmites procedimentais previstos na lei. No primeiro caso, estamos perante a aplicação do CCP, cabendo depois apurar se este Código foi ou não respeitado, ou seja, se o ajuste directo foi adoptado nas circunstâncias em que legalmente poderia sê-lo; já no segundo caso, por seu turno e bem pelo contrário, estamos perante a desaplicação do CCP, perante uma realidade que, podendo ter semelhanças factuais aparentes com um procedimento de ajuste directo, não goza desse enquadramento ou “roupagem” jurídica e na verdade constitui, tão-somente, a assunção (prática e efectiva) de um vínculo à absoluta revelia de qualquer procedimento formal.

 

7.            Ora, confrontando os documentos juntos ao processo instrutor e atentando nos factos invocados no articulado conjunto apresentado pelas Partes, verifica-se que o caso dos autos se subsume ao segundo cenário acima apresentado: não a adopção (correcta ou incorrecta) de um dos procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos, nomeadamente o ajuste directo, mas sim a interpelação directa, pela Câmara Municipal G..., de operadores económicos para a prestação de serviços ou para o fornecimento de bens (sendo que, nalguns casos, não existe requisição nem compromisso, noutros só existe a requisição, e noutros, ainda, uma proposta da Câmara).

Não foi assim observado o regime procedimental legalmente previsto para este efeito, o que se revela particularmente grave quando se sabe que “[a]s normas de procedimento, para além de uma vertente ancilar ou de garantia de uma correcta decisão de fundo, têm também uma função própria: por um lado, uma função de tutela dos direitos subjectivos dos cidadãos na medida em que estabelecem parâmetros precisos de aferição jurisdicional da legalidade; e, por outro, uma função de controlo objectivo da Administração, ou seja, uma função pedagógica e disciplinadora do seu comportamento e de garantia da realização das suas atribuições constitucionais” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Junho de 2007, processo n.º 01458/03, disponível em www.dgsi.pt).

No caso em apreço, e empregando aqui uma expressão utilizada pelo Tribunal de Contas, “verdadeiramente não ocorreu procedimento de ajuste direto. Não houve observância de quaisquer regras procedimentais. Houve uma mera aquisição direta. (...) nem ajuste direto foi feito. Foi feita uma aquisição direta. Houve pois ausência absoluta de formalidades essenciais na formação do contrato” (cf. os §33 e §62 do Acórdão n.º 8/2015, de 30 de Junho, da 1.ª Secção, disponível em www.tcontas.pt).

A matéria de facto dada como provada, portanto, não consente dúvidas razoáveis quanto à conclusão que se impõe, a de que a Câmara Municipal procedeu à aquisição de bens e serviços ao arrepio do regime procedimental legalmente estabelecido no Código dos Contratos Públicos.

 

8.            A constatação precedente conduz, assim, à consequência inelutável da ilegalidade das aquisições efectuadas pela Entidade Demandada.

Chegados a este ponto, pode, porém, discutir-se qual o desvalor associado a esta ilegalidade, isto é, se a invalidade decorrente da falta de adopção de qualquer procedimento pré-contratual segue o regime da nulidade ou da mera anulabilidade.

Não sendo uma questão absolutamente determinante para a decisão a proferir nestes autos, entende o Tribunal, em qualquer caso, que a resposta a tal questão não pode deixar de ser a primeira, qualificando-se como nulos (e não anuláveis) os contratos efectivamente celebrados entre a Entidade Demandada e os Demandantes. Com efeito, estabelece o artigo 284.º, n.º 2 do CCP que “[o]s contratos são nulos quando se verifique algum dos fundamentos previstos no presente Código, no artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo ou em lei especial (...)”. Ora, o Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, estabelece, no respectivo artigo 161.º, n.º 2, alínea l), a sanção da nulidade para os actos praticados – e, por remissão do artigo 284.º, n.º 2 do CCP, para os contratos celebrados – “(...) com preterição total do procedimento legalmente exigido”. De resto, esta era já a solução normalmente retirada ao abrigo do anterior regime, do CPA de 1991, seja por se entender que faltava ao acto um elemento essencial (cf. artigo 133.º, n.º 1), seja por se considerar violado o núcleo essencial de um direito fundamental [cf. artigo 133.º, n.º 2, alínea d)], seja, ainda, por se integrar a situação em apreço na carência absoluta de forma legal do acto [cf. artigo 133.º, n.º 2, alínea f)], entendendo-se aqui a “forma” em sentido (muito) amplo.

Afigura-se, por conseguinte, que os contratos de facto, informal e efectivamente celebrados entre a Entidade Demandada e os Demandantes, são nulos.

 

9.            Sendo nulos os contratos celebrados, tal significa que os mesmos não produzem quaisquer efeitos jurídicos (conforme determina o artigo 162.º, n.º 1 do CPA), independentemente de declaração da sua nulidade, pelo que, mesmo não tendo sido peticionada (mas apenas pressuposta) pelas Partes a declaração de nulidade dos contratos sub judice, sempre poderá este Tribunal Arbitral conhecer dessa mesma nulidade, para efeitos da decisão sobre os pedidos concretamente formulados nos autos deste processo arbitral.

Uma primeira conclusão que poderia pretender extrair-se deste regime seria a de que, sendo os contratos nulos e não podendo produzir efeitos jurídicos, o pedido dos Demandantes deveria improceder, porquanto o pagamento do preço solicitado pelo fornecimento dos bens ou pela prestação dos serviços contratados pela Câmara Municipal G... corresponderia, afinal, ao cumprimento dos contratos, como se fossem válidos (e não estivessem inquinados de uma ilegalidade grave) .

Semelhante conclusão seria, no entanto, precipitada: longe de afastar o direito dos Demandantes ao pagamento do preço devido pelos bens e serviços prestados à Entidade Demandada, o regime legal da nulidade impõe, bem pelo contrário, esse mesmo pagamento.

A este propósito, é relevante atentar no disposto no artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, que preceitua que a declaração de nulidade (e a anulação) de um negócio jurídico tem “efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”. A ideia, portanto, é a de que, se o contrato é nulo e não produz efeitos jurídicos , então a declaração da sua nulidade deverá repor a situação actual hipotética e colocar as Partes na situação em que se encontrariam caso o contrato não tivesse sido celebrado, reintegrando o ordenamento jurídico e “apagando” a existência da relação contratual ilegalmente firmada.

Por esse motivo, se ambas as Partes cumpriram as suas prestações contratuais, o regime da nulidade impõe a repetição dessas prestações, ou seja, a devolução, à contraparte, de tudo quanto tiver sido prestado ao abrigo do contrato – neste cenário, mostra-se possível “reescrever” a história, adequando o plano dos factos ao plano estritamente jurídico.

Mas, também por esse motivo, se a repetição ou restituição em espécie não for possível, nesse caso impõe-se a reconstituição monetária, através do pagamento do “valor correspondente” às prestações recebidas, já que, não sendo possível a reintegração plena do ordenamento, só esta solução se aproxima da reconstituição da situação actual hipotética de cada uma das Partes, representando o sucedâneo jurídico possível quando a reconstituição factual deixou de o ser. Dito de outro modo, só o pagamento do valor correspondente às prestações executadas e não passíveis de repetição pode colocar a parte que cumpriu um contrato nulo na mesma situação (ou na situação mais próxima possível daquela) em que se encontraria se o contrato nunca tivesse sido celebrado.

 

10.          Aplicando este raciocínio ao caso dos autos, é forçoso concluir que, embora os contratos de facto informalmente celebrados entre os Demandantes e a Entidade Demandada sejam nulos, não se mostra possível a repetição das prestações, ditando as regras lógicas e da experiência comum que não é minimamente viável pretender que a Câmara Municipal G...“restitua” aos Demandantes os bens ou serviços que por estes lhe foram prestados.

Pelo que a aplicação do regime da nulidade, tout court, determina a procedência dos pedidos formulados na presente acção arbitral, impondo que, sendo os contratos nulos e não podendo haver lugar à repetição das prestações, a Entidade Demandada devolva aos Demandantes o “valor correspondente” às prestações ilegalmente recebidas.

 

11.          Apesar de (obviamente) patológica, a situação dos autos está longe de ser excepcional, sendo possível registar a ocorrência de múltiplos outros casos similares aos que aqui se discutem, tendo os Tribunais administrativos reiteradamente chegado à mesma conclusão que acima se alcançou.

Na verdade, a jurisprudência administrativa sobre os denominados “contratos de facto”  é não apenas reiterada como consistente, no sentido de que, mesmo quando celebrados na ausência de um procedimento e nem sequer reduzidos a escrito, tais contratos existem e não podem ser ignorados, não podendo o ordenamento ser insensível à existência e cumprimento (ainda que só por uma das partes) de um contrato, mesmo que sob o pretexto da respectiva invalidade. Ou, numa formulação mais directa, dizer-se que o negócio jurídico é nulo não é nem pode ser o mesmo do que pretender que o mesmo “seria equivalente a um nada, como se pura e simplesmente não tivesse acontecido” (cf. os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Janeiro de 2016, processo n.º 00636/14.2BEVIS, de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR, de 12 de Junho de 2019, processo n.º 00126/12.8BEMDL, de 31 de Outubro de 2019, processo n.º 01818/11.4BEBRG, e de 15 de Novembro de 2019, processo n.º 00311/11.5BEMDL, todos disponíveis em www.dgsi.pt), razão pela qual “os serviços originariamente contratualizados, enquanto “Contrato de facto”, terão de ser remunerados” (cf. os já citados Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Janeiro de 2016, processo n.º 00636/14.2BEVIS, e de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR).

Assim, “[a]purando-se a existência de relações contratuais entre as partes, baseadas na prestação de serviços da Autora à Ré, prolongados no tempo e não recusados por esta, na consequente emissão de facturas pela Autora pelos serviços prestados, na entrega das facturas à Ré para pagamento e na não devolução das facturas à Autora, está o ente público vinculado a pagar os serviços prestados” (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 2 de Abril de 2014, processo n.º 07541/11, disponível em www.dgsi.pt).

Como melhor se explica noutro aresto, “[a]pesar das partes não terem reduzido a escrito o contrato, subsiste uma relação contratual firmada, pelo que se impõe extrair as consequências jurídicas das regras que determinam o pagamento da quantia reclamada com base no pressuposto da invalidade do mesmo.

Em qualquer caso, a nulidade de verbalmente convencionado não implica a desresponsabilização da entidade pública.

(...)

Não é exata a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes.

Tendo os serviços convencionados sido prestados, ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, a relação jurídica deverá ser equiparada a um “Contrato de facto”, cujos serviços terão de ser remunerados” (cf. o já acima citado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR).

 

12.          Por conseguinte, tendo os Demandantes prestado serviços ou fornecido bens à Entidade Demandada, que esta solicitou e aceitou, então é manifesto que tais prestações têm de ser remuneradas – como, aliás, a própria Câmara Municipal G... reconhece (cf. artigos 33.º e 34.º da petição inicial conjunta). E isso é assim, repete-se, não apesar de os contratos serem nulos, mas, sim, precisamente por o serem, já que do regime geral da nulidade decorre a necessidade de repetição das prestações ou, não sendo isso possível, a devolução do valor correspondente.

O pagamento do preço dos bens e serviços prestados pelos Demandantes à Entidade Demandada é assim devido, repete-se, por aplicação directa do regime da nulidade, não estando fundado em qualquer outro instituto jurídico, nomeadamente no enriquecimento sem causa.

É certo que, caso o Município G... não procedesse ao pagamento dos bens e serviços que comprovadamente requisitou e de que inquestionavelmente beneficiou, a sua esfera jurídica sairia enriquecida (na estrita medida correspondente ao valor acrescentado dos bens e serviços, sem o desembolso de qualquer contrapartida financeira) e, correlativamente, a esfera dos Demandantes sairia empobrecida (na medida da privação dos bens e serviços prestados, não compensada por qualquer incremento patrimonial como sinalagma da prestação); numa tal situação, “o facto de a Administração beneficiar das prestações já executadas sem efectuar o respectivo pagamento constitui, obviamente, um locupletamento injusto à custa do co-contratante” (cf. ALEXANDRA LEITÃO, “Da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa à invalidade dos contratos da Administração Pública”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 31, Janeiro/Fevereiro de 2002, página 18).

Não obstante, a verdade é que, ainda assim, não estariam verificados os pressupostos legais para a convocação do enriquecimento sem causa. Com efeito, como resulta da sua própria denominação, para que exista “enriquecimento sem causa”, é necessário que não haja uma causa subjacente ao enriquecimento, isto é, que alguém, “sem causa justificativa”, enriqueça à custa de outrem, sendo apenas nesses casos que o enriquecido “é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (cf. artigo 473.º, n.º 1 do Código Civil).

Ora, quando alguém “enriquece” à custa da prestação efectuada pela sua contraparte num contrato nulo, pode dizer-se que há um “enriquecimento”, mas há também uma causa, que é, justamente, o contrato (ainda que nulo) celebrado entre as partes. Nesta linha, se há uma causa para o incremento patrimonial do enriquecido, a figura do enriquecimento sem causa não é, por definição, aplicável; e, em bom rigor, não é também necessária, pois o “locupletamento” injusto do enriquecido é neutralizado, não pelo regime do enriquecimento sem causa, mas antes pela aplicação do regime da nulidade, o qual, como se viu, obriga a parte a restituir à contraparte a prestação desta recebida ou a devolver-lhe o valor correspondente. É nisto que consiste a subsidiariedade do enriquecimento sem causa, claramente afirmada pelo legislador no artigo 474.º do Código Civil, que dispõe que “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

Ou seja, num contrato nulo, não só há uma causa para o enriquecimento (que assenta na existência de um contrato, ainda que inválido) como, além disso, há também outro meio de reintegrar a esfera jurídica do empobrecido, pelo que não o mecanismo (assumidamente subsidiário) do enriquecimento sem causa não encontra aqui qualquer campo de aplicação. É esta, de resto, também a lição da jurisprudência administrativa, que pacificamente entende que “[o] regime da nulidade do contrato, em particular da regra de restituição de tudo o que tiver sido prestado, impede o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste” [cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Dezembro de 2008, processo n.º 0301/08, e de 18 de Fevereiro de 2010, processo n.º 0379/07, bem como os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 20 de Fevereiro de 2014, processo n.º 07387/11, de 2 de Abril de 2014, processo n.º 07541/11, e de 28 de Fevereiro de 2018, processo n.º 6/14.2BEFUN, e ainda os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 17 de Abril de 2015, processo n.º 00949/11.5BEBRG, e de 1 de Julho de 2016, processo n.º 01231/11.3BEBRG, todos disponíveis em www.dgsi.pt].

 

13.          É certo que não pode deixar de se ter em conta, neste raciocínio, o disposto na denominada “Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso”, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de de 21 de Fevereiro (que aprovou as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas).

Sublinha-se que o artigo 5.º, n.º 3 dessa lei estabelece que “[o]s sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos” – o que, a par do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea l) do CPA, acima citado, constituiria um fundamento adicional para fundamentar a nulidade dos contratos de facto celebrados entre os Demandantes e a Entidade Demandada.

Para o que aqui importa, porém, o artigo 9.º, n.º 2 desse mesmo diploma dispõe que “[o]s agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma”. Esta lei consagra assim uma nulidade atípica, alterando o regime geral da nulidade dos contratos e vedando, ou pretendendo vedar, uma das principais consequências desse regime geral, a devolução do “valor correspondente” a que se refere o artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil. Para mais, embora se preveja que o “efeito anulatório” (sic.) possa ser afastado “quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício do ato procedimental em causa, a anulação do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa fé” (cf. artigo 5.º, n.º 4), tal afastamento só pode ser efectuado por decisão judicial, e já não por decisão arbitral – no que representou uma exclusão expressamente determinada pelo legislador, diga-se, já que a versão original do diploma permitia expressamente o afastamento do efeito anulatório (também) por decisão arbitral, tendo o artigo 19.º da Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, eliminado essa possibilidade e passado a prevê-la unicamente em caso de decisão judicial (sem prejuízo do campo de aplicação ainda deixado às decisões arbitrais no que se refere ao afastamento do efeito anulatório previsto nos artigos 283.º, n.º 4 e 285.º, n.º 4 do CCP).

A questão suscita-se, essencialmente, porque as Partes, nos artigos 21.º a 26.º da petição inicial conjunta, fazem expressa referência ao regime da “Lei dos Compromissos”, fundando neste (ou melhor, na sua violação) a consequência da nulidade dos contratos celebrados e procurando depois evidenciar que a ponderação dos interesses relevantes no caso aponta no sentido do afastamento do efeito anulatório previsto no artigo 5.º, n.º 3 daquela Lei.

Não pode o Tribunal Arbitral acompanhar – pelo menos, não em toda a sua extensão – a argumentação expendida pelas Partes quanto a este ponto.

Na verdade, embora o Tribunal Arbitral não tenha quaisquer dúvidas ou reservas em concordar quanto à ponderação de interesses ensaiada a petição inicial conjunta, e considere, por isso, que os Demandantes não podem deixar de ser pagos pelos bens e serviços entregues ao Município por expressa solicitação deste, como já acima se referiu, o caminho para fundamentar o direito a tal pagamento não pode passar pelo afastamento do efeito anulatório por meio da decisão a proferir nestes autos, porquanto, como também se evidenciou, a lei hoje não atribui tal faculdade à jurisdição arbitral.

Não obstante isso, e sem prejuízo do alegado pelas Partes, afigura-se que não é também o regime da “Lei dos Compromissos” um obstáculo decisivo à procedência do pedido formulado nos autos.

Por um lado, porque parece notório que tal regime não foi, manifestamente, pensado para casos como os que aqui se deparam; por outro lado, porque as finalidades que esse regime visa prosseguir acabam, em qualquer caso, por ser prosseguidas através da emissão de decisão condenatória, com base na qual o Município G... poderá inscrever este encargo no orçamento e, com tal cabimento, proceder ao pagamento dos débitos indiscutivelmente contraídos perante terceiros; por fim, não esquecendo que a conformidade deste regime legal face à Constituição tem sido questionada por alguma doutrina (cf., por último, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Direito da Despesa Pública, Almedina, Coimbra, 2019, páginas 213 e 214) e, mesmo, abertamente rejeitada por outra (cf., paradigmaticamente, HUGO FLORES DA SILVA, “Principais consequências da violação da lei dos compromissos e dos pagamentos em atraso”, in Direito Regional e Local, n.º 20, Outubro/Dezembro de 2012, páginas 42, 45 e 46),  afigura-se que só uma interpretação no sentido de permitir – e obrigar – a Entidade Demandada a proceder ao pagamento do preço peticionado pelos Demandantes poderia salvar a constitucionalidade do mencionado artigo 9.º, n.º 2 da “Lei dos Compromissos”, sob pena de irremediável violação, pelo menos, dos princípios da boa fé e da protecção da confiança, que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático (cf. artigo 2.º da Constituição), e da proporcionalidade (cf. artigo 18.º, n.º 2), quando não do princípio da igualdade (cf. artigo 13.º, n.º 1) e do direito de propriedade (cf. artigo 62.º, n.º 1), bem como do direito ao salário [cf. artigo 59.º, n.º 1, alínea a)], entendido amplamente.

Nesta linha, sendo possível uma interpretação conforme à Constituição e estando os  Tribunais – como qualquer intérprete – vinculados a, entre diversas leituras possíveis de uma norma, escolher aquela que assegura a sua conformidade com a Lei Fundamental, em detrimento de qualquer outra que implicasse a sua inconstitucionalidade, este Tribunal Arbitral, por apelo aos princípios constitucionais acima referidos, pronuncia-se no sentido de o artigo 9.º, n.º 2 da “Lei dos Compromissos”, interpretado à luz dos cânones hermenêuticos que decorrem de tais princípios, não constituir obstáculo ao pagamento peticionado pelos Demandantes.

Em suma, recuperando aqui a douta jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, “face à nulidade da relação contratual havida, outra posição que não aquela para que se propende conduziria a manifesta injustiça, isto é, a que a nulidade cometida fosse tratada como se o negócio jurídico em causa equivalesse a um nada.

Na verdade, tal permitiria que o Réu (...), pese embora a celebração da obra, pudesse furtar-se ao pagamento dos encargos que ela representou para o autor da acção” (cf. Acórdão de 18 de Fevereiro de 2010, processo n.º 379/07, disponível em www.dgsi.pt) – o que representa um resultado absolutamente desconforme ao Direito e que este Tribunal Arbitral não pode acolher.

Como bem se reconhece o artigo 32.º da petição inicial conjunta, era ao Demandado Município G... que cabia ter observado todos os trâmites procedimentais para a regular aquisição dos bens e serviços solicitados; e, de resto, em consonância com este entendimento, os Tribunais Administrativos têm recorrentemente afastado o efeito decorrente da aplicação da “Lei dos Compromissos”, por se considerar que a declaração de nulidade, em casos em que o vício é imputável à entidade pública que já beneficiou dos bens ou serviços e pretende escusar-se ao respectivo pagamento, “conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada” por parte da Administração Pública, traduzindo-se ainda numa desproporcionada violação do princípio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto», resultante da nulidade verificada, equivalesse a um nada” (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 8 de Abril de 2016, processo n.º 02730/14.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt). Aliás, o Supremo Tribunal Administrativo tem mesmo adoptado uma leitura mais abrangente, decidindo de forma reiterada que a regra do artigo 289.º do Código Civil (da qual se retira que “o beneficiário de um serviço já prestado – e não restituível – em execução de um contrato nulo deverá entregar à outra parte contratante o valor objectivo do serviço recebido”) “é alheia ao teor de quaisquer princípios administrativos, bem como às regras ligadas à autonomia dos municípios ou ao cabimento orçamental” (cf. Acórdãos de 10 de Novembro de 2016, processo n.º 0391/16, de 7 de Dezembro de 2016, processo n.º 0688/16, de 4 de Maio de 2017, processos n.º 0443/16 e n.º 01209/16, de 1 de Junho de 2017, processo n.º 0401/16, e de 20 de Junho de 2017, processo n.º 0437/16, todos disponíveis em www.dgsi.pt; destaque acrescentado).

Diga-se, aliás, que foi também este o entendimento adoptado por este mesmo Tribunal Arbitral em dois outros processos (sob o n.º 1290/2019-A e n.º 1302/2019-A), cujos contornos factuais eram em tudo similares aos dos presentes autos (cf. a primeira daquelas decisões, já disponível em https://caad.org.pt/administrativo/decisoes/decisao.php?listPage=17&id=174).

 

14.          Estando, pois assente que o Município G... deve ser condenado a pagar aos Demandantes o preço devido pelos bens e serviços que lhe foram prestados, agora só falta, por fim, apurar o montante desse mesmo preço.

É entendimento deste Tribunal Arbitral que a quantificação do preço devido pelos bens e serviços prestados pelos Demandantes à Entidade Demandada não pode deixar de coincidir com os montantes reclamados pelos Demandantes.

E isto, por duas razões simples.

Por um lado, porque o que resulta da aplicação do regime da nulidade do contrato é precisamente o pagamento do preço contratual . Por esse motivo, este Tribunal Arbitral, no despacho proferido em 2 de Abril de 2020, antecipou desde logo que, no enquadramento jurídico dado ao litígio, nos concretos termos em que o mesmo vem configurado pelas Partes, a questão de saber se o Município está ou não legalmente obrigado a proceder ao pagamento dos montantes peticionados não depende de saber se os mesmos correspondem ou não aos preços de mercado praticados à data. Quando muito, essa apreciação sobre a (des)proporcionalidade dos montantes reclamados poderia (ou poderá) ser relevante em casos de manifesto abuso de direito por parte dos operadores económicos – de que não há vislumbre ou evidência nestes autos – ou, eventualmente, para efeito da aferição da responsabilidade financeira dos responsáveis pela assunção da contingência em causa [pois, nos termos do artigo 59.º, n.º 4 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (“LOPTC”), aprovada pela Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, consideram-se “indevidos” os “pagamentos ilegais que causarem dano para o erário público, incluindo aqueles a que corresponda contraprestação efectiva que não seja adequada ou proporcional à prossecução das atribuições da entidade em causa ou aos usos normais de determinada actividade”], sendo certo que esse efeito é estranho à presente lide, razão pela qual não pode ser aqui apreciado mas determinará, adiante, a remessa de cópia desta Decisão Arbitral ao Tribunal de Contas.

Por outro lado, deve notar-se que, verdadeiramente, os valores apresentados pelos Demandantes não foram contestados pela Entidade Demandada, nem na fase pré-litigiosa nem mesmo no actual processo.

Na verdade, confrontando os documentos constantes do processo administrativo instrutor, verifica-se que nunca os serviços camarários se negaram a pagar os valores peticionados pelos Demandantes com fundamento na sua suposta falta de correspondência com os preços correntes do mercado – nem, tão-pouco, com fundamento em meras dúvidas sobre essa correspondência e, sobretudo, nunca com fundamento em que tal preço não corresponderia ao preço praticado por cada um dos Demandantes para o fornecimento de bens ou a prestação de serviços similares e em circunstâncias semelhantes às que se encontram subjacentes a cada um dos contratos de facto que estiveram na origem destes autos.

Do mesmo modo, no seio deste processo arbitral, embora na petição inicial conjunta se tenha questionado se “os preços reclamados pelos Demandantes correspondem aos preços de mercado para os mesmos fornecimentos de bens, e para a prestação dos serviços reclamados, à data dos mesmos” (cf. artigo 17.º), tal questão não foi suscitada como manifestação de discordância quanto aos valores peticionados, mas apenas como confissão de desconhecimento quanto à sua sintonia face aos preços do mercado – e, mesmo aí, no pressuposto (erróneo, como se viu), de que o Município só deveria ser condenado se os montantes peticionados “correspond[esse]m aos preços praticados no mercado, à época, para a aquisição dos mesmos bens e a prestação dos mesmos serviços” (cf. artigo 34.º). Ou seja, mais do que afirmar que os valores reclamados não seriam devidos por serem excessivos, a Entidade Demandada enunciou o (seu) pressuposto de que só não fossem excessivos é que os valores reclamados seriam devidos. Dito ainda de outra forma: a Entidade Demandada não contestou materialmente os preços apresentados, tendo-se, tão-somente, limitado a expressar a sua interpretação jurídica quanto ao regime aplicável, considerando que a lei apenas imporia o pagamento de tais preços se os mesmos correspondessem “aos preços de mercado à data da prestação dos serviços e/ou do fornecimento dos bens”.

É certo – e este Tribunal Arbitral não o ignora, claro – que, não sendo este um facto que diga respeito ao próprio Município G..., a impugnação pode ser efectuada por desconhecimento, isto é, por declaração da Entidade Demandada de que não sabe (nem tem obrigação de saber) se determinado facto é ou não verdadeiro (cf. artigo 574.º, n.º 3 do CPC). Mas, bem vistas as coisas, ao contrário do que se pretende no Considerando I) do Compromisso Arbitral celebrado entre as Partes, saber se determinado valor está ou não “em linha” com os valores praticados pelo mercado é um juízo de valor, conclusivo, não factual – depende do apuramento de factos para poder ser retirado, naturalmente, mas não, em si mesmo, não corporiza uma afirmação factual que seja passível de um veredicto binário de “verdadeiro” ou “falso” e que possa, portanto, possa ter-se por validamente impugnada mediante a simples manifestação de desconhecimento. Como se adiantou, a Entidade Demandada não contestou que os valores apresentados pelos Demandantes fossem devidos e correspondessem efectivamente aos preços por estes praticados, para o fornecimento de bens ou a prestação de serviços similares em circunstâncias semelhantes às que se verificaram em cada uma das aquisições (boa parte delas, em situações de urgência); pelo que, nesta perspectiva, a simples menção ao desconhecimento sobre os preços praticados no mercado pelos demais operadores económicos (e, portanto, sobre o alinhamento dos valores dos Demandantes face àqueles preços) não pode ter-se como impugnação idónea e processualmente suficiente, tanto mais que a afirmação do desconhecimento vem efectuada apenas como enunciação do alegado pressuposto de que o pagamento dos preços cobrados pelos Demandantes ao Município G... só seria juridicamente devido se os mesmos correspondessem aos valores correntes do mercado.

O Tribunal Arbitral, porém, como se adiantou, não está vinculado ao entendimento das Partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito (cf. artigo 5.º, n.º 3 do CPC), competindo-lhe, ao invés, ao abrigo do princípio iura novit curia, apurar a solução jurídica correcta para o caso sob julgamento. E, como se referiu, este Tribunal Arbitral considera que, por um lado, a aplicação do regime da nulidade, no caso concreto, determina o pagamento, pelo Município G..., dos valores reclamados pelos Demandantes e, por outro lado, que tais valores não foram efectivamente objecto de impugnação processualmente idónea a pôr em causa a adequação dos preços apresentados pelos Demandantes. Chama-se à colação, nesta parte, o entendimento já sufragado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, a propósito de um contrato de empreitada, mas em termos que são plenamente transponíveis para quaisquer outros contratos onerosos: “[u]ma vez que a restituição em espécie, por sua natureza, não é possível, pois que a obra feita nunca mais poderá ser restituída, haverá, então, que condenar o Réu no pagamento do “valor correspondente” à utilidade advinda da realização da mesma (nº 1 do artº 289º), corporizada nos valores reclamados pela Autora, respeitantes aos trabalhos e serviços a que se reportam os diversos pontos da matéria de facto, nos termos não impugnados pelo Réu” (cf. o Acórdão de 6 de Março de 2014, processo n.º 08195/11, disponível em www.dgsi.pt).

Já numa linha subsidiária, sempre se dirá também que o entendimento da jurisprudência administrativa nos “contratos de facto” em que não existiu pré-acordo quanto aos preços a praticar, nem tão-pouco foi “possível apurar o valor convencionado como contrapartida pelos serviços prestados”, há que lançar mão da equidade “para encontrar o montante em divida, o que não equivale à fixação de um montante arbitrário” (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 12 de Junho de 2019, processo n.º 00126/12.8BEMDL, já acima citado). Ora, os valores aqui em causa não se afiguram arbitrários nem inequitativos, razão pela qual, se os argumentos acima aduzidos não bastassem, sempre seria de concluir, também por aqui, que deve a Entidade Demandada ser condenada no seu pagamento aos Demandantes.

 

15.          Nos termos da LOPTC, as autarquias locais estão integradas no âmbito subjectivo de jurisdição daquele Tribunal [cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea c)].

Do mesmo modo, compete ao Tribunal de Contas “[j]ulgar a efectivação de responsabilidades financeiras de quem gere e utiliza dinheiros públicos” [cf. artigo 5.º, n.º 1, alínea e) da LOPTC].

No caso dos autos, verifica-se ter ocorrido a celebração de contratos onerosos em inobservância das regras legais da contratação pública, com a consequente nulidade dos contratos desse modo firmados e dando origem ao pagamento dos montantes reclamados pelos operadores económicos com quem o Município G... contratou, sem cobertura legal para tal despesa.

Nesta linha, porque os factos dados como provados neste processo podem configurar (ou ter na sua origem) violações passíveis de desencadear a responsabilidade financeira dos titulares dos órgãos ou agentes administrativos envolvidos, deverá ser dado conhecimento desta Decisão Arbitral ao Tribunal de Contas, de modo a permitir a este órgão o apuramento das eventuais responsabilidades financeiras a que haja lugar e, se for o caso, a aplicação das correspondentes sanções, nos termos do disposto nos artigos 57.º e seguintes da LOPTC.

 

V.

DECISÃO

 

16.          Em consequência, o Tribunal Arbitral decide:

 

a)            Julgar a acção totalmente procedente e, em consequência, condenar o Município G... a pagar aos Demandantes as quantias por estes peticionadas, conforme abaixo se indica:

 

a.1)        € 14.427,90 (catorze mil, quatrocentos e vinte e sete Euros e noventa cêntimos) à Primeira Demandante;

a.2)        € 4.305,00 (quatro mil, trezentos e cinco Euros) à Segunda Demandante;

a.3)        € 33.823,72 (trinta e três mil, oitocentos e vinte e três Euros e setenta e dois cêntimos) à Terceira Demandante;

a.4)        € 38.981,61 (trinta e oito mil, novecentos e oitenta e um Euros e sessenta e um cêntimos) à Quarta Demandante;

a.5)        € 14.116,15 (catorze mil, cento e dezasseis Euros e quinze cêntimos) à Quinta Demandante;

a.6)        € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta Euros) à Quinta Demandante;

b)           Determinar que os pagamentos referidos na alínea anterior deverão ser efectuados no prazo de 60 dias previsto na Cláusula Quinta do Compromisso Arbitral, conforme o pedido formulado nos autos;

c)            Determinar que, em consequência, as custas e encargos do processo ficam integralmente a cargo da Entidade Demandante (cf. artigo 29.º, n.º 6 do Regulamento); bem como

d)           Determinar a remessa desta decisão ao Tribunal de Contas, para os efeitos tidos por convenientes.

 

Publique-se, após o expurgo dos elementos susceptíveis de permitir a identificação das Partes, conforme o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Regulamento.

 

Lisboa, 30 de Abril de 2020

 

O árbitro único

 

(Marco Caldeira)