Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 13/2023-A
Data da decisão: 2023-10-09  Contratos 
Valor do pedido: € 30.975,02
Tema: Sentença Arbitral – Concurso Público - Pretensão indemnizatória
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DESPACHO ARBITRAL

No âmbito da arbitragem administrativa, o Tribunal detém autonomia na condução do processo e deve contribuir para a prossecução dos princípios da celeridade e flexibilidade processuais caraterísticos daquela, em consonância com o disposto nos arts.1º, als. b) e c) do Regulamento do CAAD.

A aceitação do Regulamento do CAAD pelas partes foi pressuposto para a submissão do presente litígio a tribunal constituído no CAAD (art. 2º, nº 1 do Regulamento do CAAD); sendo a sua resolução célere um desiderato de ambas as partes, conforme pelas mesmas declarado no Considerando a) do Compromisso Arbitral subscrito.

Conforme o vertido no arts. 20º, nº 1 e 21º, ambos do Regulamento do CAAD, sem prejuízo de iniciativa oficiosa, as provas são produzidas pelas partes e indicadas nos seus respetivos articulados.

No caso sub judice, tendo em conta as questões a decidir, entende o Tribunal Arbitral que os autos reúnem os elementos necessários, mormente documentais, para conhecer desde já do mérito da causa, mostrando-se para este efeito desnecessária, por isso, a produção da prova adicional requerida nos articulados, concretamente por declarações de parte da Demandante e a testemunhal arrolada, bem como a concessão de prazo para alegações, já que aquela foi dispensada e as posições das partes se encontram espelhadas nos respetivos articulados, com os quais foi junta a prova documental relevante.

Nestes termos, decide-se pela dispensa da realização da audiência e, consequentemente, dessas diligências e procede-se de imediato infra à prolação da sentença arbitral.

 

SENTENÇA ARBITRAL

 

I.         RELATÓRIO

 

 

A Demandante A... Lda. submeteu à apreciação do presente Tribunal Arbitral o litígio que detém contra a Demandada B..., S.A., peticionando:

i) a declaração de ilegalidade da Cláusula n.º 12.ª, n.º 2, alínea a), do caderno de encargos conducente à celebração do mesmo contrato, no qual se estribou a decisão cuja invalidade se requereu no ponto anterior, por violação do disposto nos art.ºs 1.º-A e 51.º do CCP, quando interpretada no sentido de obviar à integração na equipa técnica de fiscalização de bacharéis inscritos na ordem dos engenheiros técnicos;

iii) a interpretação da mesma Cláusula n.º 12.ª, n.º 2, alínea a), do caderno de encargos no sentido em que “licenciado em engenharia civil” engloba igualmente o titular de habilitação académica e profissional equivalente, ou seja, os bacharéis devidamente inscritos na ordem dos engenheiros técnicos; e

iv) a condenação da Ré, em função da procedência dos pedidos i), ii) e iii), no pagamento à Autora da quantia de €30.975,02, respeitante aos lucros que esta teria obtido caso, como deveria ter ocorrido, o contrato lhe houvesse sido adjudicado.

 

Para tal, em suma, a Demandante alegou que foi indevidamente excluída do concurso público aberto pela Demandada com o objeto da “Aquisição de serviços de assessoria, fiscalização e coordenação de segurança em obra das empreitadas “Empreitadas Geral e Complementar do Parque de Material e Oficinas do Sistema de Mobilidade ...” e da “Empreitada de Execução De Postos De Transformação Do Sistema De Mobilidade ...” com fundamento na aplicação da cláusula 12º, nº 2, al. a) do caderno de encargos ao abrigo da qual os engenheiros civis que a demandante propôs para os cargos de Engenheiros Civis a contratar para a execução das funções relativas às prestações do contrato não reuniam as condições técnicas por titulares de bacharelato ao invés do grau de licenciatura, conforme constava na redação daquela cláusula. Defende que tal interpretação da referida cláusula plasmada no ato de exclusão da sua proposta é ilegal, em decorrência do que peticiona a condenação da Demandada na condenação do valor que diz corresponder ao lucro que obteria pela adjudicação do contrato, que lhe aconteceria não fora aquela exclusão ilegal.

Tudo conforme melhor resulta da Petição Inicial.

Regularmente citada, a Demandada contestou, impugnando as alegações e conclusões de Direito tecidas pela Autora e defendendo-se, sumariamente, chamando à colação a sua discricionariedade e margem de autonomia para conformação das peças do procedimento, as quais, nesta medida, exigiam como um dos requisitos técnicos, para os Engenheiros Civis a contratar, a licenciatura em engenharia civil, sendo que o Engenheiro contemplado na proposta da Demandada não detém, em face do que, pugna, assim pela total improcedência da arbitragem.

Tudo conforme melhor resulta da Contestação.

 

 

 

II.        SANEAMENTO

i.  Foi paga a taxa de arbitragem devida.

ii. O Tribunal Arbitral é competente.

iii. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas em juízo.

iv. O processo não enferma de nenhum vício e inexiste nenhuma questão, maxime incidental, e/ou exceção que obste ao conhecimento da causa, mantendo-se a instância válida e regular.

v.  O valor da causa é fixado em € 30.975,02 (trinta mil, novecentos e setenta e cinco euros e dois cêntimos), correspondente ao peticionado pela Demandante.

 

III.       QUESTÕES A DECIDIR

 

i)  Da legalidade ou ilegalidade exclusão, com os fundamentos que constam do Relatório final, da proposta da A..., Lda., no concurso público lançado pela B..., S.A. para “Aquisição de Serviços de Assessoria Fiscalização e Coordenação de Segurança em Obra das Empreitadas Geral e Complementar de Construção do Parque de Material e Oficinas e Empreitada de Execução de Postos de Transformação do Sistema de Mobilidade ...”;

ii) Dos direitos indemnizatórios ou compensatórios da A..., Lda. caso a exclusão referida na alínea anterior tenha sido ilegal.

 

 

IV.      MATÉRIA DE FACTO

No estribar do julgamento da matéria de facto, o Tribunal Arbitral baseou-se nos factos admitidos por acordo das partes e no procedimento administrativo e demais documentos juntos, na medida em que corroboravam os factos e constituíam-se meio apto à sua prova.

Assim, com relevo para a decisão da causa, o Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:

1.  A Demandada procedeu à abertura de um concurso público com o objeto de “Aquisição de serviços de assessoria, fiscalização e coordenação de segurança em obra das empreitadas “Empreitadas Geral e Complementar do Parque de Material e Oficinas do Sistema de Mobilidade ...” e da “Empreitada de Execução De Postos De Transformação Do Sistema De Mobilidade ...”

2.  O objeto do contrato a celebrar incluía contratar dois cargos de engenheiros civil para funções de fiscalização da obra.

3.  Quanto aos requisitos técnicos destes, a cláusula 12º, nº 2, al. a) do caderno de encargos do referido concurso público dispõe o seguinte - cfr. PA:

12. Requisitos dos técnicos a mobilizar (…)

2.  Dois Engenheiros Civis de fiscalização

Deve cumprir os seguintes requisitos mínimos com uma afetação de 100% cada um:

a)    Ser licenciado em engenharia civil com experiência comprovada, um com

5 (cinco) anos e outro com 10 (dez), em obras de envergadura e complexidade comparáveis à presente empreitada, com as qualificações profissionais exigíveis nos termos da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, na redação dada pela Lei 40/2015 de 1 de junho, e da Portaria n.º 1379/2009, de 30 de Outubro, atendendo à tipologia e categorias específicas das obras a fiscalizar, conforme descrito na cláusula 1.ª (Objeto) do presente Caderno de Encargos.

4. O critério de adjudicação fixado era o da proposta economicamente mais vantajosa, com o critério de adjudicação densificado apenas pelo monofator preço.

5. A Demandada apresentou tempestiva e validamente proposta no referido concurso público, a qual incluía para ocupação de um daqueles cargos de engenheiro civil para as funções de fiscalização da obra o Sr. Engenheiro H... .

6. O Sr. Engenheiro H... preenchia todos os demais requisitos técnicos exigidos, mas, quanto à formação académica, era titular de bacharelato e não de licenciatura.

7. Em 10/11/2022, a Demandante emite o primeiro relatório preliminar, no qual propõe a seguinte ordenação das propostas admitidas:

Em primeiro lugar a proposta n.º 10, do concorrente A..., Lda. com um valor global de 362.532,00 Euros;

Em segundo lugar a proposta n.º 3, do concorrente C..., LDA, com um valor global de 484.886,88 Euros;

Em terceiro lugar a proposta n.º 6, do concorrente D..., S.A.; F..., Lda, com um valor global de 486.995,00 Euros;

Em quarto lugar a proposta n.º 5, do concorrente E..., com um valor global de 564.500,00 Euros.

8. No decurso da audiência prévia subsequente ao primeiro relatório preliminar, a concorrente “G... Lda.” apresentou pronúncia no sentido da exclusão da Demandante, alegando que: um dos engenheiros civis de fiscalização proposto pela empresa não cumpre com as habilitações literárias mínimas exigidas em CE (em anexo), nomeadamente “licenciatura”. Na alínea

a) do ponto 2 da Cláusula 12.ª é indicado “Ser licenciado em engenharia civil com experiência comprovada (…)”. O Decreto-Lei n.º 76/2006, de 24 de março, que aprovou o regime jurídico dos graus académicos e diplomas do ensino superior atualmente em vigor e já adaptado ao "processo de Bolonha", como referido pela Ordem dos Engenheiros, não inclui regras de equivalência entre os antigos graus e os atuais. Se a habilitação 8 académica exigida era a licenciatura, isso engloba licenciados pré e pós Bolonha, embora estes últimos tenham menos anos de escolaridade. Desta forma, não havendo equiparação, o grau de Bacharel não permitirá preencher esse requisito.

9. Em 25/11/2022, foi notificado aos concorrentes o segundo relatório preliminar.

10. O segundo relatório propôs a exclusão da proposta Demandante nos termos do art. 70º, nº 2, al. a) do CCP, com os seguintes e fundamentos: O júri decidiu propor a exclusão da proposta com os seguintes fundamentos: Engenheiro Civil Fiscal (com 10 anos de experiência): o concorrente propõe um técnico que não cumpre com o disposto no caderno de encargos, nomeadamente na alínea a) do n.º 2 da Cláusula 12.ª – Não apresenta um técnico licenciado e, consequentemente, propôs a consequente à segunda proposta ordenada, apresentada pela concorrente C..., LDA..

11. A Demandante apresentou, no exercício do direito de audiência prévia subsequente uma pronúncia no sentido da contestação da licitude da sua exclusão.

12. Em 22/12/2022, os concorrentes foram notificados do relatório final, o qual efetivou a decisão de exclusão da Demandante, nos seguintes termos: A A..., Lda., defende, em síntese, a existência de uma “equivalência legal entre licenciatura e mestrado”, o que afastaria a possibilidade de exclusão da sua proposta com o fundamento de propor um Engenheiro Civil com Bacharelato, quando o caderno de encargos exigia um Licenciado. Sem prejuízo da bondade da argumentação expendida pelo concorrente, verifica-se que a legislação aplicável, em nenhum ponto estabelece essa equivalência, e a Portaria n.º 782/2009, de 23 de julho, apenas coloca a licenciatura e o bacharelato no mesmo nível de qualificação, o que não corresponde a equivalência legal dos referidos graus académicos. Uma vez que o Caderno de Encargos exigia expressamente “licenciado em engenharia”, a proposta não cumpre com o solicitado. Mantém-se a proposta de exclusão da proposta ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.

13. Nessa mesma data de 22/12/2022, foram os concorrentes notificados da decisão do Conselho de Administração da Demandada de adjudicação do contrato à concorrente C..., LDA..

14. As partes subscreveram entre si a 17/1/2023 o Compromisso Arbitral constante dos autos, tendo nele declarado pretender obter uma resolução célere, e que não afete o interesse público da implementação do Sistema de Mobilidade ..., do litígio em apreciação no Proc. n.º11/23.8BECBR que corre termos no TAF de Coimbra.

15. No objeto do Compromisso Arbitral estão fixadas as seguintes questões a dirimir:

a) Da legalidade ou ilegalidade exclusão, com os fundamentos que constam do Relatório final, da proposta da A..., Lda., no concurso público lançado pela B..., S.A. para “Aquisição de Serviços de Assessoria Fiscalização e Coordenação de Segurança em Obra das Empreitadas Geral e Complementar de Construção do Parque de Material e Oficinas e Empreitada de Execução de Postos de Transformação do Sistema de Mobilidade ...”;

b) Dos direitos indemnizatórios ou compensatórios da A..., Lda. caso a exclusão referida na alínea anterior tenha sido ilegal.

16. O contrato referente ao referido concurso público foi celebrado entre a Demandada e a C..., LDA. a 17/2/2023.

17. O contrato referente ao referido concurso público tem um prazo de execução de 480 dias.

 

 

Tudo o mais não constante neste elenco dos factos provados foi considerado como não relevante, por conclusivo, constituir matéria de Direito, ser inaplicável e/ou inócuo.

 

V.        FUNDAMENTAÇÃO

 

Em primeiro lugar, cumpre realçar que a competência objetiva do Tribunal Arbitral se circunscreve exclusivamente ao âmbito do Compromisso Arbitral celebrado e resulta delimitado pela configuração do litígio dada pelas partes.

A Demandante não impugnou a norma constante da cláusula 12º, nº 2, al. a) do caderno de encargos oportunamente nos termos e para os efeitos do disposto no art. 100º, nº 2 do CPTA nem se encontra na presente arbitragem a impugnar o ato de exclusão da sua proposta plasmado relatório final do júri do concurso público e a decisão de adjudicação à contrainteressada C..., Lda., com vista à sua anulação e à condenação da Demandada a proferir decisão de adjudicação a seu favor, por manutenção da ordenação da sua proposta em primeiro lugar no primeiro relatório preliminar em detrimento das restantes.

Neste caso, peticiona da Demandada o pagamento de uma indemnização pela perda da adjudicação em face da sua preterição ilegal - configuração esta do litígio preferida tendo em conta o desiderato da resolução célere do litígio, o imperativo do interesse público e os efeitos já produzidos decorrentes da execução do contrato celebrado entre a Demandada e a adjudicatária (cfr. artigo 10 da petição inicial).

A decisão arbitral tem, nos termos do art. 28º, nº 3 do Regulamento do CAAD, idêntica força executiva às decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância. Assim, poder-se-ia equacionar se, havendo uma decisão do Tribunal Arbitral no sentido da anulação do ato – a qual teria de ser requerida e não foi - haveria, in casu, causa legítima para a inexecução da mesma, por aplicação do art. 163º, nº 1 do CPTA, com as devidas adaptações, que preceitua que só constituem causa legítima de inexecução a impossibilidade absoluta e o excecional prejuízo para o interesse público na execução da sentença. Como decorre clara e objetivamente da letra dessa norma, seria exigível a impossibilidade absoluta, entendendo-se esta como um impedimento irremovível de natureza física ou legal, o que não só se pode considerar que não sucede presentemente (o contrato entre a Demandada e a adjudicatária ainda não foi plenamente executado e as partes não provaram, nem sequer alegaram, existir tal impedimento absoluto), como ainda não estamos sequer em fase executória de decisão, não sendo possível ao Tribunal Arbitral fazer a jusante o juízo de prognose de inexequibilidade da decisão a proferir. Além disso, também por força do vertido no art. 283º do CCP, o efeito anulatório poderia ser afastado por decisão arbitral quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício do acto procedimental em causa, a anulação do contrato se revele desproporcionada ou contrária à boa fé ou quando se demonstre inequivocamente que o vício não implicaria uma modificação subjectiva no contrato celebrado nem uma alteração do seu conteúdo essencial. Tal conclusão também decorreria do art. 566º, n.º 1, in fine, do CC, aplicável subsidiariamente, que estabelece o princípio geral do indemnizatório e de acordo com o qual não há obrigação de reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo (reconstituição natural) quando tal seja excessivamente oneroso para o devedor.

Assim, em face da pretensão da Demandante – que não se alicerça no pedido de anulação, mas no pagamento de uma indemnização, o enquadramento jurídico a ponderar é o da responsabilidade civil da Demandada e, concretamente - já que inexiste contrato entre as partes cujo incumprimento se esteja a apreciar - o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas publicado em anexo da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, aplicável subjetivamente à Demandada em virtude a mesma ser uma empresa pública composta por capitais exclusivamente públicos (facto este notório acessível ao conhecimento do Tribunal Arbitral).

Bem conhecemos o amplo debate acerca das especificidades da responsabilidade civil do Estado relativamente à responsabilidade civil do Direito Privado, sobretudo no âmbito da contratação pública, não sendo esta a sede apropriada para contributo e inovação nessa discussão[1].

Cabe, deste modo, apreciar se a pretensão da Demandante tem cabimento neste quadro e se estão reunidos os pressupostos para a sua procedência, a saber: ilicitude, dano, nexo de causalidade e culpa.

A priori, importa apreciar para tal verificar se foi cometida pela Demandada a ilegalidade invocada pela Demandante.

Atendendo a que o critério de adjudicação fixado era o do mais baixo preço, dúvidas não há que o preço era o único atributo da proposta sujeito a avaliação e, neste aspeto, a proposta da Demandante contemplava o preço mais baixo de todas as propostas apresentadas (motivo pelo qual, aliás, a sua proposta ficou primeiramente ordenada no primeiro relatório preliminar). De onde decorre que a exigência de licenciatura consubstanciaria para a Demandada um aspeto da execução do contrato não submetido à concorrência.

A Demandada não logrou justificar a discriminação positiva do grau académico de licenciatura relativamente ao bacharelato, que fez, invocando apenas a sua discricionariedade e margem de livre conformação das peças do procedimento que, a este respeito, exigiam exclusivamente licenciatura. Sem prejuízo disso, essa discriminação também não seria passível de justificação na medida em que, para estes efeitos e funções em causa, o grau académico de bacharelato é equiparável ao grau académico de licenciatura. O grau de bacharel foi suprimido com o vulgarmente designado “processo de Bolonha”. O Decreto-Lei 74/2006, de 24 de março, que aprova o regime jurídico dos graus e diplomas do ensino superior, operacionalizou o “processo de Bolonha” e procedeu a reformulação dos graus conferidos pelas instituições de ensino superior, passando desde então estes a ser unicamente a licenciatura, o mestrado e o doutoramento (cfr. art.º 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de março). No seu art. 17º, o Decreto-Lei admite expressamente a existência de outras qualificações equiparáveis à licenciatura, quando, no seu nº 1, al. a), faz constar que se podem candidatar ao ciclo de estudos conducente ao grau de mestre titulares do grau de licenciado ou equivalente legal. Contudo, o citado Decreto-Lei não prevê nenhuma equiparação ou incompatibilidade de equivalência entre os graus académicos anteriores com os posteriores ao “processo de Bolonha” e, concretamente entre o bacharelato e a licenciatura. Por sua vez, a Portaria n.º 782/2009, de 23 de julho, que regulamenta o Quadro Nacional de Qualificações (art.1º), inclui o bacharelato no mesmo nível de qualificação da Licenciatura – o nível 6 (cfr. Anexo III da Portaria n.º 782/2009, de 23 de julho). De acordo com o art. 2º da Portaria n.º 782/2009, de 23 de julho, são objetivos do Quadro Nacional de Qualificações, nomeadamente: integrar e articular as qualificações obtidas no âmbito dos diferentes subsistemas de educação e formação nacionais e por via da experiência profissional e melhorar a transparência das qualificações, possibilitando a identificação e comparabilidade do seu valor no mercado de trabalho, na educação e formação e noutros contextos da vida pessoal e social (als. a) e b), respetivamente). Isso mesmo se verifica no estatuto da Ordem dos Engenheiros Técnicos, a qual tem por missão o controlo do acesso e o exercício da atividade profissional e cuja ingressão é permitida aos bacharéis nos mesmos termos que aos licenciados em engenharia pós-Bolonha (cfr. anexo da Lei n.º 157/2015, de 17 de setembro). Quer isto dizer que, quer para ingresso no ciclo de estudos subsequente quer para acesso e exercício da profissão de engenheiro-técnico não existe discriminação entre os titulares de bacharelato e os titulares de licenciatura pós-Bolonha, encontrando-se os mesmos, para estes efeitos, em situação de paridade. No caderno de encargos do concurso público em apreço, não se fez constar como sendo exigível ser “Engenheiro” ou “Engenheiro Técnico”, o que, desde logo, nos permite escusar de debruçar em demasia na discussão da querela existente a este respeito, a não ser para referir que o regime jurídico que estabelece a qualificação profissional e técnica exigível aos técnicos responsáveis pela elaboração e subscrição de projetos, fiscalização de obra e pela direção de obra consta da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, complementando pela Portaria n.º 1379/2009, de 30 de outubro; cujo regime permite, entre as demais condições aí constantes, o exercício de funções de fiscalização de obra – que são as que estão causa – quer a Engenheiros quer a Engenheiros-Técnicos, com inscrição válida na associação profissional (cfr. Anexo II da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho e arts. 17º, nº 1 e 18º, nº 1 da Portaria n.º 1379/2009, de 30 de outubro). Assim sendo, as prestações de “engenharia civil” objeto do referido concurso público para o desempenho das funções de fiscalização podiam, nos termos da Lei, quanto à qualidade, ser desempenhadas quer por um engenheiro quer por um engenheiro técnico.

Apreciando também as demais condições necessárias constantes deste regime jurídico, verifica-se que, independentemente do enquadramento do tipo de obra subjacente ao concurso público em apreço (se de natureza predominante de edifício ou não e, neste caso, que categoria), as demais condições legais técnicas necessárias, designadamente a experiência profissional de, no mínimo, de 5 anos se encontram reunidas (pela análise do currículo do Sr. Engenheiro H...).

Verificado, pois, que o Sr. H... apresentado na proposta da Demandante reunia todas condições necessárias por Lei para o desempenho das funções de fiscalização que se pretendiam contratar por meio do referido concurso público; não se identifica nenhuma justificação válida para exclusão da proposta da Demandante.

A discricionariedade e margem de livre conformação das peças do procedimento pela entidade adjudicante não é absoluta, antes quedando perante o princípio da legalidade a que a Demandada está vinculada.

No que concerne à contratação pública, impende sobre as entidades adjudicantes a obrigação de, entre outras, assegurarem a concorrência e a igualdade efetiva dos operadores económicos, quer aquando da elaboração dos documentos conformadores do procedimento quer no decurso do procedimento pré-contratual, em cumprimento do Direito da União Europeia e do Direito Nacional neste âmbito. Nessa decorrência, a exigência de certas habilitações aos operadores económicos só se pode admitir quanto tal se mostre objetivamente justificado em função do quadro normativo disciplinado das atividades profissionais em causa e especialmente aplicável e da específica natureza das prestações objeto do contrato, pois, de outra forma, estaremos perante uma desconformidade com o princípio da proporcionalidade e uma restrição indevida da concorrência.

No presente caso, é isso que o Tribunal Arbitral considera existir, na medida em que a Demandada se arrogou fazer uma discriminação em função da formação académica entre o bacharelato e a licenciatura pós-Bolonha, não efetuada pela Lei ou permitida pela mesma - que, aliás, nas situações académicas e profissionais acima descritas de nível de qualificação nacional, de acesso ao ciclo de estudos superior subsequente (mestrado) e acesso e exercício à profissão de engenheiro-técnico, através da inscrição válida na respetiva Ordem dos Engenheiros-Técnicos, a Lei compatibiliza – e, por isso, ilícita.

Por conseguinte, deve entender-se que a exclusão efetuada pela Demandada da proposta da Demandante do referido concurso público é desconforme com o Direito nacional e europeu da contratação pública, por violação do art. 58º, nº 1, da Diretiva 2014/24/EU e desconforme aos princípios da proporcionalidade e da concorrência e, ainda, ao princípio da igualdade e uma restrição injustificada do direito fundamental de liberdade de empresa constitucionalmente consagrados entre nós[2].

Por tudo o quanto exposto, considera-se que assiste razão à Demandante quanto à invocada violação de lei, a qual releva, agora, não para efeitos de anulação do ato de exclusão da sua proposta e seguintes, mas unicamente para efeitos de apreciação da pretensão indemnizatória reclamada, relativamente à qual aquela é implícita.

Sendo entendimento do Tribunal Arbitral que inexiste, no caso em apreço, culpa grave ou dolo; dá-se por assente a culpa leve da Demandada por não infirmada a presunção legal de culpa prevista no art. 10º, nº 2, in fine, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro. Com efeito, a presunção legal consagrada naquela norma acarreta uma inversão do ónus da prova de autor relativamente a réu, escusando aquele de provar a culpa de réu como genericamente sucede nas ações fundadas em responsabilidade civil extracontratual. No caso em apreço, o Tribunal Arbitral considera que a Demandada não logrou provar (nem alegar) factos que excluíssem a sua culpa ao nível de cumprimento do dever do dever de diligência e zelos nos termos do art. 8º, nº 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Atendendo a que o critério de adjudicação fixado era o do mais baixo preço, dúvidas não há que o preço era o único atributo da proposta sujeito a avaliação e, neste aspeto, a proposta da Demandada contemplava o preço mais baixo de todas as propostas apresentadas.

Não fosse, pois, a proposta da Demandante excluída nos termos em que foi, seria permitida à mesma permanecer no referido concurso público e tudo indica que a mesma manter-se-ia primeiramente ordenada no Relatório Final e, nesse seguimento, seria àquela à qual o contrato seria adjudicado.

Em tese, a adjudicação do contrato a seu favor, colocaria virtualmente a Demandante em posição de poder executar o objeto do contrato e, consequentemente, de receber o respetivo preço da Demandada – pois não se pode afirmar com total certeza que assim aconteceria (v.g. podiam não ser apresentados os documentos de habilitação, podia não ser prestada a caução exigida pela Demandante ou não cumprido o contrato por facto imputável à Demandante).

É inegável, assim, a frustração da expectativa, legitimamente criada na Demandante, e a perda de oportunidade e de obtenção de vantagem por esta nos termos sobreditos em consequência direta e adequada à exclusão, ilegal da sua proposta do concurso público pela Demandada.

A frustração da expectativa criada e a perda de oportunidade e de vantagem por Demandante nos termos sobreditos constitui um dano patrimonial na esfera jurídica da Demandante que merece a tutela do Direito, sendo autonomamente indemnizável[3], ao abrigo da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, designadamente do preceituado no art. 7º, nº 2 deste diploma.

Por conseguinte, tem a Demandante direito ao ressarcimento dos danos que sofreu em decorrência da exclusão ilícita do concurso público e consequente preterição da adjudicação do contrato.

Quanto à liquidação do dano sofrido pela Demandante e à via do seu ressarcimento, resta- nos, pois, apenas a fixação de uma indemnização em dinheiro, uma vez que a reconstituição natural, no caso sub judice, não sendo impossível, seria, contudo, excessivamente onerosa para a Demandada, nos termos do art. 566º do CC.

A este propósito, a Demandante peticiona o pagamento de uma indemnização de € 30.975,02, valor que alega ser o “lucro” que deixou de ter com a exclusão indevida do referido concurso público e preterição da adjudicação, com fundamento no documento junto como Doc. 3 junto à petição inicial.

Quer isto dizer que a Demandante circunscreve o dano sofrido no quadro do interesse contratual positivo, pretendendo ser colocada, em parte, na posição de que lhe adviria se não fosse a sua exclusão indevida da sua proposta; não alegando mais danos se não estes, nomeadamente contendentes com o interesse contratual negativo (por exemplo, custos e despesas em que houvesse incorrido).

Nesta medida, não se mostra necessário discernir-se doutrinalmente acerca da incompatibilidade entre os dois critérios de ressarcimento, cabendo-nos apenas decidir qual dos dois tem merecimento e atender, ainda, a que fixação de indemnização pela equidade é uma ultima ratio (cfr. art. 566º, nº 3 do CC).

A este respeito, o Tribunal Arbitral também não é alheio às correntes, máxime, jurisprudenciais existentes, pendendo para aquela que visa ressarcir o interesse contratual positivo[4].

Como visto, compulsados os autos do PA, não havia motivos para exclusão da proposta da Demandante e à luz do único fator de avaliação (preço) a melhor proposta era a da Demandante; sendo, pois, forçoso concluir que o contrato ser-lhe-ia adjudicado.

O valor peticionado, circunscrevendo-se no interesse contratual positivo, é muito inferior ao valor da proposta apresentada pela Demandante (e, por sua vez, inferior ao valor-base do contrato), não se considerando o mesmo excessivo nos termos e para os efeitos do vertido no art. 566º, nº 1, do CC.

Além disso, de acordo nomeadamente com o princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 23º, nº 3 do Regulamento do CAAD), o Tribunal Arbitral entendeu atribuir relevo probatório ao documento junto como Doc.3 à petição inicia, na medida em que, ainda que se tratando de factos pessoais à Demandante, o seu teor, concretamente os valores aí constantes, e, com relevância, quanto ao invocado “lucro”, se mostram razoáveis, correspondendo, em média, aos preços e quantias comummente praticados/do mercado e à margem obtida pelos operadores económicos.

Ponderando esses fatores, assim como o limite de pronúncia do Tribunal Arbitral, balizado pelo princípio do pedido e princípio do dispositivo, afigura-se justo e adequado o arbitramento de uma indemnização à Demandante no valor que se liquida de € 30.975,02.

Ao valor de € 30.975,02 (trinta mil novecentos e setenta e cinco euros e dois cêntimos), devem acrescer juros moratórios comerciais à taxa legal prevista para empresas desde a data de citação para a presente ação arbitral até efetivo e integral pagamento - neste sentido, veja-se o Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 20.10.2021, processo n.º 657/11.7BELSB.

 

VI.      DISPOSITIVO

 

 

Em consequência, o Tribunal Arbitral decide:

A)   Julgar a ação totalmente procedente e, em consequência, condenar a B..., S.A., a pagar a A..., Lda. a quantia por esta peticionada de € 30.975,02 (trinta mil, novecentos e setenta e cinco euros e dois cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa comercial contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

B)   Determinar que, em consequência, as custas e os encargos do processo ficam integralmente a cargo da Demandada (cfr. artigo 29.º, n.º 6 do Regulamento do CAAD).

 

Após o expurgo dos elementos suscetíveis de permitir a identificação das Partes, publique-se conforme o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Regulamento do CAAD.

 

Notifique-se.

 

Porto, 9 de outubro de 2023

 

O árbitro único

(Pedro Cerqueira Gomes)



[1] Cfr., a este respeito, J.C. VIEIRA DE ANDRADE, “A responsabilidade indemnizatória dos poderes públicos em 3D: Estado de Direito, Estado Fiscal, Estado Social”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. I, Coimbra, pp. 55-7.

 

[2] A este propósito e neste sentido, atente-se no Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 05.05.2022, processo n.º 1834/21.8BELSB.

[3] Neste sentido, veja-se o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.02.2022, processo n.º 01543/11.6BEPRT.

 

[4] Neste sentido, a título meramente exemplificativo, o Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23.11.2017, processo n.º 13023/16 e o Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16.12.2015, processo n.º 10999/14, para cuja fundamentação se remete.