Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 1287/2019-A
Data da decisão: 2020-03-04  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 30.000,01
Tema: Relação jurídica de emprego público - Direito a férias - Ato adminis¬trativo inimpugnável - Nu¬li¬¬dade de ato administrativo - Conteúdo essencial de um direito fundamental.
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DECISÃO ARBITRAL

 

— I —

A..., especialista superior do quadro da C... veio em 26 de julho de 2019 deduzir contra B... a presente ação arbitral peticionando que fosse declarado que o Demandante teria direito a gozar 14 dias úteis de férias vencidos a 1 de janeiro de 2017 e a condenação da Entidade Demandada a facultar-lhe o gozo desses dias.

Alegou, em síntese, que é funcionário da C... e que no ano de 2017 tinha direito a gozar 24 dias úteis de férias, tendo faltado justificadamente entre 19-10-2016 e 03-07-2017; porém, a Entidade Demandada apenas lhe reconheceu o direito ao gozo de 14 dias de férias nesse referido ano. Juntou 3 documentos.

                Regularmente citada, a Entidade Demandada apresentou contestação, na qual se defendeu por exceção e por impugnação. Por exceção sustentou que o ofício subscrito pela Diretora da Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas da C..., expedido a 14 de fevereiro de 2017, que juntou, configuraria um ato administrativo definidor do quadro aplicável no que concerne às férias cujo gozo o Demandante reclama na presente a ação e que, desde então e até à propositura desta arbitragem, já decorreram mais de dois anos, pelo que se verificaria a exceção dilatória prevista no art. 89.º, n.º 4, al. k), do CPTA. Por impugnação, sustentou ser aplicável à situação do Demandante o disposto nos arts. 127.º, 129.º, n.º 3, e 278.º da Lei-Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) que obstariam à procedência da sua pretensão.

Juntou 5 documentos, uma informação jurídica e o processo administrativo.

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                O Tribunal Arbitral foi nomeado por decisão do Conselho Deontológico do CAAD, tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 17.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem Administrativa deste CAAD. Nada tendo sido suscitado pelas Partes, o Tribunal Arbitral ficou definitivamente constituído em 26 de setembro de 2019.

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                Por despacho do Tribunal Arbitral foi notificado o Demandante para, querendo, responder à questão excetiva suscitada na contestação da Entidade Demandada, bem como para se pronunciar, querendo, acerca da factualidade invocada em tal exceção à luz do regime previsto no art. 38.º, n.º 2, do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

                Respondendo, sustentou o Demandante que na presente ação não foi deduzida qualquer pretensão de natureza impugnatória e que o ofício de 14 de fevereiro de 2017 referido pela Entidade Demandada não configuraria um ato administrativo e, em qualquer caso, ainda que o fosse seria nulo por violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, no caso por violação do direito fundamental ao gozo de férias periódicas pagas  previsto no art. 59.º, n.º 1, al. d), in fine, da Constituição (CRP).

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                Por despacho de 15 de outubro de 2019 o Tribunal Arbitral convidou o Demandante a, querendo, corrigir a petição inicial, deduzindo a título subsidiário ou alternativo o correspondente o pedido de declaração de nulidade de um tal (hipotético) ato administrativo.

                Nessa sequência, o Demandante apresentou uma petição inicial corrigida na qual concluía peticionado que fosse declarado que o Demandante teria direito a gozar 14 dias úteis de férias vencidos a 1 de janeiro de 2017 e a condenação da Entidade Demandada a facultar-lhe o gozo desses dias ou, subsidiariamente, a entender-se que o documento n.º 3 junto com a contestação configuraria um ato administrativo, que fosse declarada a sua nulidade.

                Notificada da apresentação da petição inicial corrigida, a Entidade Demandada não apresentou qualquer resposta.

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Por despacho de 8 de novembro de 2019, o Tribunal Arbitral declarou encerrada a instru¬ção da causa e relegou para a sentença arbitral a decisão das questões obstativas do conhecimento do mérito da pretensão emergentes da eventual qualificação como ato administrativo do ofício subscrito pela Diretora da Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas da C..., com data de 14 de fevereiro de 2017, atendendo a que se trata de matéria que se conexiona de modo muito estreito com a própria questão de fundo discutida nos autos.

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                Por despacho de 19 de novembro de 2019 foram as Partes convidadas a, querendo, apresentar alegações escritas, nenhuma delas as tendo produzido.

 

— II —

As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.

O presente Tribunal Arbitral é competente por força da vinculação à arbitragem institucionalizada do CAAD por parte da Entidade Demandada constante da Portaria n.º 1120/2009 e, em especial, do disposto no art. 1.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) deste instrumento regulamentar.

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Encontram-se suscitadas duas questões prévias que, se procedentes, obstam ao conhecimento do pedido deduzido a título principal. Por um lado, a Entidade Demandada invocou a existência de ato administrativo cujo direito de impugnação já teria caducado; por outro lado, o Tribunal Arbitral suscitou de ofício a eventual aplicação a essa mesma factualidade da disciplina resultante do art. 38.º, n.º 2, do CPTA.

Ora, ambas estas questões excetivas prendem-se com a natureza jurídica a reconhecer ao ofício subscrito pela Diretora da Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas da C..., com data de 14 de fevereiro de 2017, e das consequência que daí poderão resultar quanto à viabilidade da apreciação do ou dos pedidos deduzidos pelo Demandante.

Porque se trata de matéria que se conexiona de modo muito estreito com a própria questão de fundo discutida nos autos, relega-se para final a decisão daquelas duas questões.

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Inexistem quaisquer outras questões prejudiciais ou obstativas do conhecimento do objeto da causa ou nulidades processuais que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas Partes, quer ainda por serem do conhecimento oficioso.

 

— III —

FACTOS PROVADOS

                Com relevância para a decisão da presente causa, segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito suscitadas nos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

1.            O Demandante é especialista superior do quadro de pessoal da C... desde 11 de novembro de 2004.

2.            O Demandante está provido naquela categoria e carreira em regime de nomeação.

3.            O Demandante faltou, justificadamente, ao serviço no período compreendido entre 19-10-2016 e 03-07-2017.

4.            Através do ofício n.º..., expedido em 14-02-2017, cujo teor integral consta do PA eletrónico junto aos autos e se dá aqui por integralmente reproduzido, a Diretora da Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas da C... comunicou ao Demandante que “uma vez que V.Exca. se encontra a faltar ao serviço por motivo de doença desde 19.10.2016, os 12 dias de férias não gozados em 2016 não poderão ser acumulados, pelo que, iremos proceder ao seu pagamento, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 129.º da LTFP” (doravante abreviadamente referido por “Ofício ...”)

5.            O Ofício ... em 5. foi notificado ao Demandante em 17-02-2017.

6.            O Demandante gozou férias entre 17-08-2017 e 18-08-2017, entre 21-12-2017 e 22-12-20107 e entre 27-12-2019 e 29-12-2017.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

                Inexistem quaisquer factos relevantes para a boa decisão da causa, segundo as diversas soluções plausíveis das questões de direito suscitadas nos autos, que devam considerar-se como não provados.

 

FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A convicção do Tribunal Arbitral em relação aos pontos 1. a 3., 5. e 6. da matéria de facto dada como provada alicerçou-se na prova documental junta aos autos e constante do PA eletrónico, bem como do acordo das partes.

O ponto 4. da matéria de facto dada como provada resulta da presunção legal prevista no art. 113.º, n.º 1, do CPA: tendo ficado provada a expedição de tal ofício em 14-02-2017, e não tendo sido feita prova (nem tão-pouco sido alegado qualquer facto) que abalasse a conclu-são proba¬tória resultante da referida presunção legal, há que concluir, como resulta daquela norma, que a referida notificação se efetuou no terceiro dia útil posterior ao da sua expedição.

 

— IV —

QUESTÕES DECIDENDAS

                Apresentam-se ao Tribunal Arbitral duas questões excetivas cujo conhecimento foi relegado para esta fase e, no plano do mérito da causa, duas questões nucleares: por um lado, determinar se o Demandante tem direito ao gozo de 14 dias de férias vencidos em 1 de janeiro de 2017; por outro lado, e subsidiariamente, determinar se o (hipotético) ato administrativo consubstanciado no Ofício ..., cujo teor integral consta do PA eletrónico junto aos autos e se dá aqui por integralmente reproduzido, deverá ser declarado nulo.

                No entanto, como facilmente se compreenderá, a metodologia na abordagem das questões decidendas não deverá seguir a sequência enunciada no parágrafo antecedente. Com efeito, todas as questões (de mérito e excetivas) suscitadas nos autos dependem, de um modo ou de outro, da qualificação jurídica a dar ao Ofício ... .

                Com efeito, se aquele ofício se configurar na verdade como um ato administrativo as duas questões excetivas, se procedentes, obstarão ao conhecimento de mérito do pedido principal, obrigando a que se conheça do pedido subsidiário. Por outro lado, não se tratando de ato administrativo, as questões excetivas terão necessariamente de improceder.

                Por esse motivo, as questões decidendas deverão ser elencadas segundo a seguinte ordem metodológica:

— Natureza jurídica do Ofício ... e, no caso de se concluir por se lhe reconhecer a natureza de ato administrativo, conhecimento das questões excetivas invocadas nos autos;

— Pedido principal de declaração do direito do Demandante a gozar 14 dias úteis de férias vencidos a 1 de janeiro de 2017 e de condenação da Entidade Demandada a facultar-lhe o gozo de tais dias, se o conhecimento desta questão não ficar entretanto prejudicado pela decisão dada à questão anterior;

— Pedido subsidiário de declaração de nulidade do ato administrativo constante do Ofício ..., se o conhecimento desta questão não ficar entretanto prejudicado pela decisão dada às questões antecedentes.

 

QUANTO À NATUREZA JURÍDICA DO OFÍCIO ...

                A título principal — seja na versão originária da petição inicial, seja na versão corrigida entretanto apresentada na sequência de convite do Tribunal Arbitral — peticiona o Demandante que seja declarado que o Demandante teria direito a gozar 14 dias úteis de férias vencidos a 1 de janeiro de 2017 e condenada a Entidade Demandada a facultar-lhe o gozo de tais dias.

                A esse pedido excecionou a Entidade Demandada a existência de ato administrativo cujo prazo de impugnação estaria há muito caducado aquando da propositura da presente ação arbitral. De ofício, o Tribunal Arbitral suscitou igualmente a eventual aplicabilidade do regime constante do art. 38.º, n.º 2, do CPTA.

Ambas as exceções dependem, por conseguinte, da qualificação jurídica a dar ao Ofício ... .

A resposta a esta última questão passa pelo disposto no art. 148.º do CPA, preceito segundo o qual “[se] consideram atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”. Esta norma, como é amplamente reconhecido na doutrina, promoveu uma significativa alteração do conceito legal em relação ao anterior CPA. O acento tónico do conceito de ato administrativo reside na decisão individual e concreta que, adotada no exercício de poderes administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos — isto é, a decisão administrativa, individual e concreta cujos efeitos se projetam no âmbito de uma relação administrativa de direito substantivo.

É hoje perfeitamente consensual que os atos praticados no contexto de relações jurídicas de emprego público são, para este e outros efeitos, considerados como atos que se projetam externamente e que definem o conteúdo de relações jurídicas administrativas de direito substantivo, na medida em que, no plano da relação de emprego, o trabalhador em funções públicas não surge junto da Administração pública investido numa posição de capitis diminutio.

Afigura-se assim que a factualidade dada como provada no ponto 4. do probatório permite, com segurança, concluir pela qualificação do documento melhor descrito nesse ponto como um verdadeiro ato administrativo.

É inequívoco que se está perante um ato decisório: os dizeres constantes daquele ofício são claríssimos no sentido da formulação de uma estatuição autoritária; trata-se também de uma decisão destinada a produzir efeitos numa situação individual e concreta. Por outro lado, foi um ato emitido ao abrigo de poderes jurídico-administrativos, com invocação de vários preceitos legais no domínio do Direito do Emprego Público, que mais não é do que um ramo especial de Direito Administrativo.

Acresce que no sentido dessa mesma conclusão aponta também o disposto no art. 155.º, n.º 2, do CPA. De acordo com esta preceito legal, “[o] ato [administrativo] considera-se praticado quando seja emitida uma decisão que identifique o autor e indique o destinatário, se for o caso, e o objeto a que se refere o seu conteúdo.” Este preceito legal “dá resposta à importante questão de saber quando deve entender-se que existe um ato administrativo e, portanto, quando deve falar-se da existência […] dos atos administrativos” (FAUSTO DE QUADROS ET ALLI, Comentários à revisão do Código de Procedimento Administrativo, Almedina, 2016, p. 307) e, nessa medida, os indícios que nele se descrevem, quando verificados, fazem presumir a existência de um ato administrativo — mas já não, bem entendido, a sua validade.

Ora, é inequívoco que o documento mencionado no ponto 4. do probatório preenche, sem hesitações ou ambiguidades, a factispécie daquela norma do CPA: há uma decisão (uma estatuição autoritária) que identifica o seu autor (um órgão dirigente intermédio da C...), indica o seu destinatário (o Demandante) e o objeto do seu conteúdo (o direito a gozo de férias no ano de 2017).

E a própria jurisprudência que o Demandante invoca na sua petição inicial acaba por conduzir à mesma conclusão: quer na Sentença CAAD Proc.º 65/2015-A, quer no Ac. STA 28-09-2017 (Proc.º n.º 109/17) labora-se sempre no pressuposto de que está em causa um ato administrativo e, num e noutro aresto, o dispositivo não deixou de se centrar num juízo acerca da validade de um ato proferido pela Diretora Unidade Orgânica de Recursos Humanos da C... que é, em todos os seus termos, perfeitamente análogo àquele de que agora se cuida nos presentes autos. Em nenhum momento, quer no CAAD, quer nos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, se colocou em causa — e tratava-se de questão que seria do conhecimento oficioso — a natureza de ato administrativo que naquele litígio se atribuiu ao documento emitido pela referida dirigente da C... .

Por outro lado, não se afigura procedente a invocação, feita pelo Demandante, de que o ato da Diretora da Unidade de Recursos Humanos teria natureza opinativa por ter sido proferido no contexto de uma relação contratual: é que, na verdade, o vínculo de emprego público que liga Demandante e Entidade Demandada não tem natureza contratual. Como ficou demonstrado no ponto 2 do probatório — e de resto é pacificamente aceite por ambas as Partes —, o Demandante não se encontra provido no posto de trabalho que ocupa ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas (ou de um contrato de qualquer outro tipo legal), mas sim ao abrigo de um vínculo de nomeação decorrente de ato administrativo. Não cabe assim qualquer apelo a uma pretensa natureza contratual da relação jurídica de emprego público que, em boa verdade, não existe no caso presente.

A conclusão não pode assim ser outra senão a de que o ofício datado de 14-02-2017 subscrito pela Diretora da Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas da C... configura um ato administrativo que veio definir unilateralmente o quadro aplicável ao Demandante em matéria de gozo do direito a férias no ano em causa nos presentes autos.

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Face à qualificação como ato administrativo acabada de se efetuar, importa então averiguar se é processualmente possível obter-se por via de uma ação de condenação os efeitos que resultariam da anulação daquele ato administrativo.

Antes de mais, afigura-se como consensual que já não é processualmente viável, na presente ação arbitral, a pretensão de anulação judicial de tal ato. Com efeito, do confronto da data em que se considera efetuada a notificação desse ato (v. ponto 4. do probatório) com a data de propositura da presente ação (26-07-2019) resulta inequívoco que há muito que se esgotou o prazo para deduzir em juízo uma pretensão anulatória. Mesmo tendo em consideração o prazo mais dilatado previsto na lei [o prazo de um ano a que se referem o art. 58.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. c), do CPTA] sempre se teria de concluir que o direito a deduzir a pretensão judicial de anulação do ato administrativo se encontrava já caducado à data da propositura da presente ação.

Por outro lado, e como o Tribunal Arbitral oficiosamente suscitou junto das Partes, é também necessário ter presente o regime resultante do art. 38.º, n.º 2, do CPTA, preceito segundo o qual “[n]ão pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do ato inimpugnável.” Conforme vem sendo o entendimento jurisprudencial dominante, neste preceito legal prevê-se uma questão impeditiva do conhecimento do mérito da causa e que, processualmente, se manifesta como uma exceção dilatória inominada cuja verificação impõe a absolvição do réu da instância — nesse sentido, cfr. Ac. STA 24-09-2015 (in Diário da República, 2.ª série, Apêndice de 23-09-2016, p. 1643).

Também VIEIRA DE ANDRADE reconhece que a caducidade do direito de propositura da ação de impugnação de um ato administrativo “obsta ao conhecimento do processo” (A Justiça Administrativa — Lições, 16.ª ed., Almedina, 2017, p. 297, n. 733), reforçando assim a ideia de que os efeitos que caracteristicamente estão associados ao juízo de invalidação de um ato — “sejam, por exemplo, os relativos ao restabelecimento in natura da situação jurídica ilegalmente criada” — não podem ser obtidos numa ação cujo objeto não consista na impugnação desse mesmo ato administrativo “porque isso corresponderia ou pressuporia uma verdadeira anulação do ato [e] a sua eliminação da ordem jurídica” (MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA / RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Almedina, 2004, p. 278).

Resulta assim inequívoco que é vedado obter-se o efeito que resultaria da anulação de ato administrativo já inimpugnável através de uma ação cujo objeto não consista na impug¬na-ção de tal ato administrativo.

Ora, assente que está que o Ofício ... configura um ato administrativo que veio definir a situação jurídica do Demandante no que diz respeito ao conteúdo do seu direito ao gozo de férias — ato esse que, de resto, já se afigura como inimpugnável —, a pretensão de ver reconhecido, ao arrepio do determinado em tal ato administrativo, o direito a gozar 14 dias úteis de férias e a condenação da Entidade Demandada a facultar-lhe o gozo desses dias bule diretamente com o caso decidido administrativo formado pelo Ofício ... .Esse resultado, que mais não seria do que uma forma de reconstituição in natura emergente da ilegalidade assacada ao ato, apenas poderia ser obtida no quadro, e na sequência, de uma decisão judicial de invalidação daquele ato.

Note-se que o decurso do prazo de impugnação não torna inatacável a eventual ilega-lidade de que o ato padeça: o art. 38.º, n.º 1, do CPTA permite que a ilegalidade de um ato admi¬nis¬trativo já inimpugnável possa servir de causa de pedir a uma pretensão de natureza res¬-sar¬citória. Porém, não é esse o objeto da presente arbitragem.

Não sendo presentemente admissível a dedução de uma pretensão anulatória, face à consolidação daquele ato na ordem jurídica administrativa, é vedado ao Demandante obter, por via de uma ação não impugnatória, o resultado que só através de uma ação de anulação poderia lograr obter.

Assim, julgo procedente a exceção dilatória inominada prevista no art. 38.º, n.º 2, do CPTA impeditiva do conhecimento do mérito no que diz respeito ao pedido principal e, em consequência, absolvo a Entidade Demandada da instância quanto ao pedido principal deduzido na presente arbitragem.

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Com a procedência desta questão excetiva fica prejudicado o conhecimento da exceção de intempestividade da prática de ato processual (ou caducidade do direito de propositura da ação) suscitada pela Entidade Demandada na sua contestação.

 

QUANTO AO PEDIDO SUBSIDIÁRIO

                Decidida a absolvição da instância quanto ao pedido principal importa conhecer do pedido subsidiariamente formulado pelo Demandante na petição corrigida que fez atravessar nos autos, no qual peticiona, prevenindo a eventualidade de se vir a concluir — como, de facto, se concluiu — que o Ofício ... configura um ato administrativo, a sua declaração de nulidade com fundamento na ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos previstos no art. 161.º, n.º 2, al. d), do CPA.

                Antes de mais importa frisar que não está em causa a apreciação da legalidade do ato consubstanciado no Ofício ...: os vícios geradores de mera anulabilidade de que aquele ato eventualmente padeça não podem agora ser conhecidos nos presentes autos arbitrais, como se deixou acima demonstrado. Em causa está, portanto, verificar se o referido ato padece de vício que determine a respetiva nulidade, a qual como é sabido pode ser conhecida a todo o tempo.

                Não é assim qualquer ilegalidade do ato que pode determinar a sua nulidade. Nesta sede não se cuida de averiguar se o ato está ferido de todas ou alguma das ilegalidades que o Demandante lhe assaca e que se reconheceram, quanto a um ato em tudo análogo àquele em crise nos presentes autos, quer na Sentença CAAD Proc.º 65/2015-A, quer no Ac. STA 28-09-2017 (Proc.º n.º 109/17). Essas questões de ilegalidade, por mais relevantes que possam ser do ponto de vista doutrinário, têm neste processo um interesse meramente académico, na medida em que, como se viu e decidiu, o direito a pedir a anulação do ato já caducou.

                Cabe, apenas e somente, averiguar se o ato padece de um vício que o ordenamento jurídico reconhece como sendo de tal modo grave a ponto de lhe fazer corresponder o desvalor jurídico da nulidade.

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Em causa está, portanto, apurar se, ao regular os termos em que o Demandante poderia gozar o seu direito a férias vencidas no ano de 2016, o Ofício ... ofendeu o conteúdo essencial do seu direito fundamental ao gozo de férias, previsto no art. 59.º, n.º 1, al. d), in fine, da CRP.

Não se hesita por um instante em reconhecer naquele preceito constitucional a consagração de um direito fundamental que, não obstante sistematicamente inserido no título dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, se reveste de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, nessa exata medida, goza de aplicabilidade direta e se impõe diretamente a entidades públicas e privadas (nesse sentido, cfr., entre outros, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 1984, pp. 129, 322; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 1988, pp. 143-144; cfr. tb. Ac. TC n.º 373/91, Ac. TC n.º 52/03 e Ac. TC n.º 827/14).

A questão porém, é a de saber se o ato administrativo aqui em causa ofende o conteúdo essencial do direito fundamental ao gozo de férias periódicas pagas. E apenas essa.

É certo que faltam coordenadas doutrinas jurisprudenciais e doutrinárias precisas e consensuais quanto à exata delimitação do conceito de conteúdo essencial de um direito fundamental, em particular enquanto parâmetro da validade de atos administrativos. Porém, é possível identificar nesta figura uma função de preservação de um sentido útil a cada direito fundamental e de um mínimo de autonomia da posição jurídica do seu titular. Como reconhecem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “[a] garantia do conteúdo essencial é uma baliza última de defesa dos direitos, liberdades e garantias, delimitando um núcleo que em nenhum caso deverá ser invadido […] porque, em última análise, para não existir aniquilação do núcleo essencial, é necessário que haja sempre um resto substancial de direito, liberdade e garantia que assegure a sua utilidade constitucional” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Ed., 2007, p. 395).

Na mesma linha de entendimento, pode afirmar-se que “o conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito” (JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3.ª ed., 2000, p. 341).

Terá o ato administrativo agora em crise ferido esta reserva última de sentido útil do direito fundamental a gozo de férias na esfera jurídica do Demandante?

Crê-se na verdade que não.

Antes de mais é forçoso ter em conta que o direito fundamental ao gozo de férias periódicas pagas confere ao legislador uma ampla margem de conformação em relação ao quantum de férias que cada trabalhador pode ou deve gozar, assim se compreendendo que o regime jurídico das férias dos trabalhadores tenha variado significativamente ao longo dos tempos, quer ainda em função dos concretos setores económicos ou natureza jurídica dos vínculos de provimento. Nessa medida, não se pode concluir que preceito constitucional proteja no seu núcleo essencial e derradeira reserva o direito do trabalhador a gozar exatamente o número de dias de férias que, em cada momento, para ele resultariam da aplicação dos preceitos da lei ordinária.

Esta reserva última de sentido útil do direito a férias protege a expectativa dos trabalhadores a usufruir de um período remunerado de ausência da prestação de trabalho — e, portanto, rejeita liminarmente soluções em que o direito a férias seja pura e simplesmente suprimido in totum — com periodicidade regular e de modo a garantir um adequado repouso e lazer, conciliando a vida profissional com a vida pessoal e familiar.

Neste enquadramento o ato administrativo consubstanciado no Ofício ... não suprimiu o direito do Demandante ao gozo de férias periódicas pagas no ano de 2017 nem o afetou em termos que tenham negado qualquer alcance útil ou que representassem, na verdade, uma efetiva aniquilação desse direito. É certo que o ato impugnado reconheceu o exercício do direito a férias em moldes que, a ter por boa a interpretação do quadro legislativo aplicável sufragada pelo Demandante, implicaram uma redução não negligenciável do número de dias de férias que o Demandante teria legalmente direito a gozar. Mas ainda assim o ato impugnado reconheceu-lhe o direito a gozar férias em termos que se afiguram compatíveis com o sentido útil e a reserva última do direito fundamental ao gozo de férias periódicas pagas. E, não é de somenos, em termos que correspondem à configuração que o direito a gozo de férias tem quando aplicado aos trabalhadores em funções públicas não integrados no regime de proteção social convergente.

Repetindo: não está em causa apurar se a determinação efetuada pela Entidade Demandada quanto ao número de dias de férias a gozar pelo Demandante está ferida de ilegalidade. Essa apreciação está precludida e é nesta ação processualmente vedada. O que releva aqui e agora se cuida é saber se essa determinação fere o conteúdo essencial do direito fundamental previsto no art. 59.º, n.º 1, al. d), in fine, da CRP.

E a essa questão, e pelos fundamentos acima expostos, a resposta é negativa.

De resto, mesmo fazendo apelo ao exemplo comparado da Sentença CAAD Proc.º 65/2015-A torna-se evidente que, no âmbito desse processo de assinalável analogia com o caso que se discute nos presentes autos, em momento algum se concluiu pela nulidade do ato administrativo cuja validade aí se discutia. Quer na sentença arbitral, quer mesmo nos acórdãos que sobre ela incidiram, a decisão foi sempre no sentido de anulação do ato administrativo proferido pela mesma dirigente da C... . Ora, sabendo-se que a declaração de nulidade de um ato administrativo oferece uma muito mais eficaz tutela da posição jurídica do impugnante do que a mera anulação, se de facto aquele ato estivesse ferido de nulidade qualquer um daqueles tribunais não teria hesitado em declará-la em substituição da decisão anulatória que veio a ser proferida.

Assim, que terá assim de improceder o pedido subsidiário de declaração de nulidade do ato administrativo consubstanciado no Ofício ... por ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental ao gozo de férias periódicas pagas.

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Poder-se-ia ainda colocar em causa a constitucionalidade do complexo normativo formado pelo art. 129.º da LTFP e do art. 15.º da Lei n.º 35/2014 na interpretação sufragada e aplicada pelo ato administrativo proferido pela Diretora da Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas da C... .

Essa questão, porém, seria ociosa.

Com efeito, e como é unanimemente reconhecido pela jurisprudência administrativa, o ato administrativo que aplica normas inconstitucionais está ferido de erro nos pressupostos de direito decorrente de vício de violação de lei gerador de mera anulabilidade: o conhecimento desse vício segue, portanto, o regime geral das invalidades de atos administrativos e, como tal, está sujeito ao prazo geral de caducidade do direito de impugnação contenciosa — assim cfr., entre muitos outros arestos, Ac. STA(P) 27-6-1995 (in Acórdãos Doutrinais, ano 35, n.º 304, pp. 75-ss.); e Ac. STA(P) 6-7-1999 (in Diário da República, 2.ª série, Apêndice de 09-05-2001, pp. 920-924).

Torna-se assim desnecessário apreciar a eventual inconstitucionalidade das normas aplicadas pelo ato administrativo consubstanciado no Ofício ... na medida em que qualquer que fosse o resultado dessa operação, dele não se poderia extrair consequência alguma para o desfecho da presente ação arbitral em virtude de estar já precludido o conhecimento do eventual vício resultante da aplicação de normas inconstitucionais por ato administrativo.

 

QUANTO À RESPONSABILIDADE PELOS ENCARGOS PROCESSUAIS,

                Na sua petição inicial o Demandante atribuiu à causa o valor de EUR 30.000,01, não tendo a Entidade Demandada oferecido qualquer oposição a esse montante.

                Uma vez que não é possível determinar o valor correspondente à utilidade económica imediata do pedido principal deduzido pelo Demandante, por aplicação supletiva do art. 34.º, n.º 2, do CPTA, será de se atribuir à presente causa o valor indicado pelas Partes.

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Conforme resulta do disposto no art. 29.º, n.º 5, do Regulamento de Arbitragem Administrativa do CAAD, nas arbitragens que tenham por objeto questões emergentes de relações jurídicas de emprego público não há lugar a fixação do critério de repartição de encargos processuais, sendo estes pagos por ambas as partes em função do valor fixado na tabela de encargos processuais.

Tendo presente o valor fixado à presente causa, e atendendo ao disposto na tabela I anexa ao referido Regulamento, fixo os encargos processuais devidos por cada uma das Partes em EUR 150,00, nesse montante se imputando os eventuais preparos ou adiantamentos que cada uma delas haja já realizado na presente arbitragem.

 

— V —

                Assim, pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação arbitral totalmente improcedente e em consequência:

a)            Absolvo a Entidade Demandada da instância quanto ao pedido principal;

b)           Absolvo a Entidade Demandada do pedido subsidiário;

c)            Fixo à presente ação o valor de EUR 30.000,01;

d)           Condeno ambas as Partes nas custas da presente ação, fixando em EUR 150,00 os en¬car¬gos processuais da responsabilidade de cada uma delas, nesse valor se impu-tan¬¬do os eventuais pagamentos ou adiantamentos que já hajam efetuado.

 

Notifiquem-se as Partes.

Publique-se no sítio do CAAD.

 

Porto, 4 de março de 2020.

 

O Juiz-Árbitro,

 

(Prof. Doutor Gustavo Gramaxo Rozeira)