Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 1308/2019-A
Data da decisão: 2020-05-26  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 30.000,01
Tema: Suspensão das férias por morte de um familiar; Incompetência do Tribunal Arbitral
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DECISÃO ARBITRAL

I.    RELATÓRIO

 

A.    Partes e objecto do litígio

 

Manuel Joaquim Gomes Pereira, com domicílio profissional no Tribunal de Família e Menores do Núcleo de Matosinhos, sito na Rua Augusto Gomes, 4450-053 Matosinhos, a exercer funções de escrivão de direito no Núcleo de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, demandou o Ministério da Justiça, com domicílio na Praça do Comércio, 1149-019 Lisboa, junto do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).

 

Peticiona o Demandante que seja anulado, por vício de violação de lei, o Despacho do Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto, consubstanciado no indeferimento da alteração dos 2 (dois) dias de férias por motivo de falecimento de familiar, e a condenação à prática de acto devido que defira o direito ao gozo dos 2 (dois) dias de férias.

 

Alega, em síntese, o Demandante que o artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (“LGTFP”) – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho –, faz uma remissão genérica para o Código do Trabalho, verificando-se ainda uma remissão específica para o mesmo diploma em matéria de tempos de não trabalho.

 

O Demandado apresentou contestação suscitando a incompetência absoluta do CAAD para decidir sobre o litígio, na medida em que a decisão de indeferimento de pedido de férias por motivo de falecimento da mãe do Demandante insere-se expressamente no acervo de competências próprias do administrador judiciário, dado que respeita ao gozo de férias dos oficiais de justiça, cuja decisão carece de recurso necessário para o Conselho Superior de Magistratura (cfr. 106.º, n.º 1, alínea b) e n.º 6 da Lei de Organização do Sistema Judiciário. Mais suscita a inutilidade superveniente da lide conquanto já foi proporcionado o direito ao gozo de 2 (dois) dias de férias do Demandante.

 

B.     Tribunal Arbitral

 

A Direcção-Geral da Administração da Justiça encontra-se vinculada à jurisdição do CAAD no que respeita à composição de litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros que tenham por objecto questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional (cfr. artigos 1.º, n.º 1, alínea. e) e n.º 2, alínea. a), da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de Setembro).

 

Este Tribunal Arbitral foi constituído, com a aceitação e notificação da composição em

05-02-2020, nos termos previstos no artigo 17.º do Regulamento do CAAD (cfr. Despacho do Secretário de Estado da Justiça n.º 5097/2009, de 12 de Fevereiro e demais legislação ali citada).

 

Foi aceite pelas partes a nomeação do signatário, que integra a lista de árbitros do CAAD, para, como árbitro único, nos termos do artigo 15.º, n.º 3 do Regulamento do CAAD apreciar e decidir o litígio.

 

 

 

 

 

C.    Tramitação e despachos

 

Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade e flexibilidade processual (artigos 5.º e 18.º, n.º 1 do Regulamento do CAAD), por despacho de 02-03-2020, o Tribunal Arbitral determinou que o processo prosseguisse com alegações escritas por um período simultâneo de 10 dias.

 

O Demandado não apresentou alegações escritas.

 

Em 23-03-2020, o Demandante veio invocar, ao abrigo do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, a suspensão dos prazos dos processos que correm termos nos tribunais arbitrais, entidades de resolução alternativa de litígios, com efeitos ao dia 09-03-2020 (cfr. artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março).

 

Por despacho de 27-03-2020, o Tribunal Arbitral determinou suspenso o prazo que corria a favor do Demandante, desde o dia 09-03-2020, até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública, considerando sem efeito a decisão arbitral entretanto proferida.

 

Em 26-05-2020, o Demandante veio informar que após ter sido citado, o Demandado alterou o seu entendimento e deferiu o pedido de alteração do gozo das férias por motivo do falecimento da mãe do Demandante, tendo o Demandante gozado os 2 dias de férias a que tinha direito nos dias 05-03-2020 e 06-03-2020, pelo que deve declarar-se extinta a instância a que o Demandado deu causa, por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 287.º do CPC, devendo as custas processo ser da responsabilidade do Demandado.

 

 

 

 

D.     Saneamento

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, cumprindo averiguar se o Tribunal Arbitral é competente.

 

E.     Questão decidenda

 

A questão que a este Tribunal Arbitral cabe resolver é de Direito e prende-se com a eventual possibilidade de suspensão do período de gozo de férias devido a facto superveniente que não lhe é imputável – falecimento de familiar.

 

 

II.    FUNDAMENTAÇÃO

 

A.    Factos

 

Com relevância para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            O Demandante exerce funções no UP1 do Juízo de Família e Menores do Núcleo de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto;

 

b)           O Senhor Administrador Judiciário do Tribunal Judicial da Comarca do Porto autorizou o gozo de férias do Demandante entre os dias 15-07-2019 e 26-07-2019;

 

c)            A mãe do Demandante faleceu no dia 25-07-2019;

 

d)           O Demandante comunicou à Senhora Secretária de Justiça o falecimento da sua mãe e requereu a alteração do período de férias de 25-07-2019 e 26-07-2019 para os dias 16-09-2019 e 17-09-2019, por motivo do falecimento de familiar;

 

e)           No seguimento do pedido do Demandante, a Senhora Secretária de Justiça enviou, o seguinte correio electrónico, para o Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto, no dia 30-07-2019, o requerimento do Demandante e fez constar o seguinte):

 

“... remete-se o requerimento anexo, no qual o Sr. Escrivão de Direito, Manuel Joaquim Gomes Pereira (FJ 27847), a exercer funções no Juízo de Família e Menores, requer a alteração do período de férias de 25 e 26 de Julho para 16 e 17 de Setembro, consignando-se que, atentos os motivos alegados e que o serviço se encontra devidamente assegurado, tal alteração não é inconveniente para os serviços.”.

 

f)            No dia 01-08-2019, o Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto comunicou à Senhora Secretária de Justiça o seguinte:

 

“Depois informar V.Exa que, atendendo à natureza das faltas por falecimento de familiar, constata-se que tal direito não é imperativo mas sim facultativo, pois o seu gozo depende da opção de cada trabalhador, logo não consubstancia um impedimento por facto não imputável ao trabalhador, e como tal o seu gozo não se encontra expressamente e especialmente previsto na lei, como se verifica no direito ao gozo de férias nas situações de faltas por doença, não determinando, por consequência, a suspensão do gozo de férias, como decorre da parte final do n.º 1 do art.º 244.º do CT aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, aplicável por via do n.º 1 do art.º 122.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.”.

 

g)            Posteriormente, o Demandante, enviou no dia 06-08-2019, um e-mail para o Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto:

 

“Quanto ao meu pedido de alteração de 2 dias de Férias em face do falecimento de familiar, desde já solicito a V. Exa. que seja novamente reapreciado o referido pedido, em face da nota Técnica no 7 da Autoridade para as Condições do Trabalho de que se junta em anexo, em que esclarece que “O falecimento de familiar adia ou suspende o gozo das férias, na medida em que não depende da vontade do trabalhador e impossibilita o gozo do direito a férias que visa o descanso e recuperação física do Trabalhador”. Mais informo V.Exa. que é de opinião do Sindicato dos Funcionários Judiciais, que o falecimento de familiar suspende o gozo de férias, tendo o referido Sindicato aconselhado a comunicar a V. Exa. que caso esta reapreciação seja desfavorável, a mesma poderá seguir via contencioso.”.

 

h)           O e-mail que o Demandante enviou para o Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto foi reencaminhado para a Direcção-Geral da Administração da Justiça:

 

“Exmo. Sr. Dr. Lourenço Torres

M.I. Diretor de Serviços de Recursos Humanos:

A seguir tenho a honra de remeter a VaExa troca de correspondência sobre questão, apresentada como controvertida pelo interessado Manuel Joaquim Gomes Pereira, Escrivão de Direito do Núcleo de Matosinhos, sobre a eventual possibilidade de suspensão do período de gozo de férias devido a facto superveniente que não lhe é imputável - falecimento de familiar - sendo certo que, havendo sido oportunamente interpelado, pronunciámo-nos no sentido e em consonância com o teor do parecer que nos havia sido transmitido pelos serviços que Va Exa muito bem dirige (cfr. Email de 01/09/2017; 17:47 h, que se anexa) solicitando a VaExa que, atendendo às aparentes conflituantes interpretações, interesses e direitos em causa, se digne mandar efetuar a competente análise técnica e jurídica capaz de informar uma decisão compatível com todo o quadro legal aplicável.”.

 

i)             No seguimento do pedido do Senhor Administradora Judiciário foi elaborada pela Direcção-geral da Administração da Justiça a informação n.º INT- DGAJ/2019/1687, datada de 12.8.2019, onde é referido:

 

“Sobre a matéria em causa no pedido efectuado pelo Sr Escrivão de Direito – suspensão/interrupção de férias por falecimento de familiar – teve esta Direcção- geral oportunidade de se pronunciar informado sempre, e acompanhando a interpretação veiculada pela DGAEP, que a razão de ser da atribuição ao trabalhador do direito a faltar por falecimento de familiar, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art. 134º da ... (LTFP),...., e cito “...é tornar o trabalhador disponível para a dor que o atinge. Ora, este objectivo está, por natureza, atingido se o falecimento de familiar ocorre durante o período de férias, sem que para tal seja necessário um direito autónomo (...)”.

Interpretação contrária daria origem à sobreposição de 2 regimes – de férias e de faltas (justificadas e injustificadas) – regimes estes que o legislador autonomizou no capítulo respeitante aos tempos de não trabalho (art.s 126º e ss e art.s 133º e ss), igualmente com expressão no Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009...

Observe-se que a LTFP apenas prevê que a situação de doença, durante o período de férias, suspenda o gozo destas, e desde que a entidade empregadora pública seja de tal facto informada (n.º 1 art. 128), sendo certo, por outro lado que a situação em apreço não é subsumível no conceito de falta por facto imputável ao trabalhador, desde logo porque o trabalhador se encontra em gozo de férias.

Assim, no caso concreto, estando o Sr Escrivão de Direito, no dia 25/7/2019, no pleno gozo das suas férias legalmente autorizadas, parece-nos, salvo melhor opinião, que a circunstância de falecimento de familiar, no caso, de parente de 1o grau na linha recta, não lhe dá direito à interrupção das mesmas, uma vez que o propósito ou a finalidade do direito a faltar (caso estivesse a trabalhar), já está alcançado por efeito das férias que está a gozar, sendo certo que a Lei não prevê a suspensão destas por outra circunstância que não a doença, conforme o disposto no n.º 1 do artº 128º da LTFP.”.

 

j)             Esta informação obteve o parecer do Senhor Director de Serviços de 16-09-2019 nos seguintes termos:

 

“Concordo.

Nas situações em que o trabalhador se encontre em gozo de férias previamente autorizadas, o falecimento de familiar deste, não dá direito à interrupção das férias de acordo com o entendimento da DGAEP e da Secretária-geral do Ministério da Justiça, posição que nos parece que deva ser acolhido pela DGAJ...”

 

k)            Na sequência do parecer do Senhor Director de Serviços, o Senhor Subdirector-geral da Administração da Justiça proferiu despacho, datado de 16-09-2019, a concordar com a informação e com o parecer do Sr. Director de Serviços;

 

l)             No dia 19-09-2019, o Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto enviou um e-mail à Senhora Secretária de Justiça, que o reencaminhou para o Demandante, a indeferir a alteração do período de férias por motivo do falecimento da mãe do Demandante:

 

“Reportando-me ao teor da comunicação que segue, mediante a qual foi pedido parecer à DGAJ sobre o assunto em epígrafe, em anexo tenho a honra de remeter a Va Exa a comunicação recebida que acompanha o oficio n.º 4995/DSRH/DARH da DGAJ, de cujo teor tenho a honra de solicitar a Vª Exª seja levado ao conhecimento do interessado Manuel Joaquim Gomes Pereira informando complementarmente que consideramos esgotada a nossa participação neste procedimento.”.

 

m)          O Demandante apresentou a sua petição inicial no CAAD em 20-12-2019;

 

n)           No dia 20-01-2020, o Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto enviou um e-mail ao Demandante:

 

“Exmo. Sr. Manuel Joaquim Gomes Pereira

M.I. Escrivão de Direito do Núcleo de Matosinhos

Reportando‐me à comunicação que segue, tenho a honra de solicitar a Va Exa se digne tomar conhecimento da informação em referência que acolhe o novo entendimento recentemente veiculado pela DGAEP e sufragado pela DGAJ.

Assim sendo, solicita‐se a Vª Exª que, com a maior brevidade possível, se digne indicar o período em que pretende exercer o seu direito a dois dias de férias.”

 

o)           No dia 20-01-2020, o Demandante fez saber o período de férias pretendido, tendo a Secretária de Justiça do Núcleo de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto enviado um e-mail ao Senhor Administrador Judiciário da Comarca do Porto:

 

“Exmo. Sr. Administrador Judiciário da Comarca do Porto

Remete‐se o requerimento infra, no qual o Sr. Escrivão de Direito, Manuel Joaquim Gomes Pereira, com o NM 27847, requer o gozo dos 2 dias de férias referentes ao ano de 2019.

Assim, tomando‐se em consideração o pretendido, não havendo inconveniência para os serviços e encontrando‐se assegurada a sua substituição, concorda‐se com o requerido.”.

 

p)           O Demandante gozou os 2 dias de férias a que tinha direito nos dias 05-03-2020 e 06-

-03-2020.

 

 

 

 

 

B.     Direito

 

Da incompetência do CAAD

 

De acordo com o disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de Setembro, estão vinculados à jurisdição do CAAD os seguintes serviços centrais, pessoas coletivas públicas e entidades que funcionam no âmbito do Ministério da Justiça:

 

a)            A Direcção-Geral da Política de Justiça;

b)           A Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça;

c)            A Secretaria-Geral;

d)           A Polícia Judiciária;

e)           A Direcção-Geral da Administração da Justiça;

f)            A Direcção-Geral dos Serviços Prisionais;

g)            A Direcção-Geral de Reinserção Social;

h)           O Gabinete para a Resolução Alternativa de Litígios;

i)             O Instituto de Gestão Financeira e de Infra -Estruturas da Justiça, I. P.;

j)             O Instituto dos Registos e do Notariado, I. P.;

k)            O Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça, I. P.;

l)             O Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P.;

m)          O Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P.;

n)           O Centro de Estudos Judiciários.

 

Com efeito, tendo presente a LOSJ, nem o estatuto do administrador judiciário, nem a função nem os actos praticados pelo administrador judiciário se inserem em alguma das entidades vinculadas ao CAAD.

 

Assim como o Conselho Superior de Magistratura e/ou o Conselho Superior do Ministério Público, – órgãos a que se refere o artigo 106.º, n.º 6, da LOSJ, com competência para decidir as impugnações administrativas dos actos do administrador judiciário, em sede de recurso hierárquico necessário – também não integram o elenco de entidades vinculadas ao CAAD, identificadas no artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de Setembro.

 

 

III.    DECISÃO

 

Atento o exposto, verifica-se a incompetência absoluta do CAAD para decidir sobre o litígio em apreço, qual constitui excepção dilatória, nos termos do artigo 89.º, n.º 4, alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), dando lugar à absolvição da instância, nos termos do artigo 89.º, n.º 2 do CPTA.

 

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

 

Fixa-se o valor da acção em 30.000,01 euros (cfr. artigo 34.º do CPTA ex vi do artigo 29.º do Regulamento de Arbitragem do CAAD). Os encargos serão suportados pelo Demandante.

 

Deposite-se, registe-se e notifiquem-se as partes, com cópia.

 

Lisboa, 26 de Maio de 2020

 

O Árbitro

 

(Hélder Faustino)