DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. Os Demandantes, A… e B… (doravante, “os Demandantes”), apresentaram petição inicial de acção arbitral contra o Demandado, C… (doravante, “o Demandado”) , a 28/06/2016.
2. Nesse articulado, peticionaram a declaração de que os Demandantes têm direito a receber suplemento de risco a que se reporta o artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 302/98, de 7 de Outubro, e mantido em vigor pelos artigos 91.º e 161.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro, em montante igual ao auferido pelos especialistas adjuntos de telecomunicações da Directoria do Sul e DIC’s de Aveiro e Guarda, desde 01/12/2007 e 20/04/2009 até 31/10/2015, acrescido de juros de mora à taxa legal.
3. De acordo com os Demandantes, o direito ao pagamento do suplemento de risco referido decorre do seguinte quadro fáctico e legal:
a) Os Demandantes intentaram uma acção arbitral contra o Demandado no Centro de Arbitragem Administrativa que corresponde ao processo n.º 66/2015-A;
b) A decisão arbitral do referido processo, de 7 de Outubro de 2015, determinou a procedência do pedido dos Demandantes, nos seguintes termos: “os Demandantes têm direito a receber o suplemento de risco, a que se reporta o artigo 99.º do Decreto Lei n.º 295-A/90, de 21/09, alterado pelo Decreto Lei n.º 302/98, de 7/10 e mantido em vigor pelos artigos 91.º e 161.º n.º 3, do Decreto Lei n.º 275- A/2000, de 9/11, em montante igual ao auferido pelos especialistas adjuntos de telecomunicações da Directoria do Sul e DIC’s de Aveiro e Guarda, condenando-se o Requerido a pagar aos Demandantes o referido suplemento”;
c) A referida decisão arbitral transitou em julgado;
d) Em consequência, o Demandado começou, em Novembro de 2015 a pagar mensalmente o referido suplemento;
e) Porém, os Demandantes iniciaram funções no Sector de Telecomunicações e Informática na Directoria do Norte em 01/12/2007 e 20/04/2009, exercendo, desde então, para além de funções na área de informática, funções no âmbito das telecomunicações, a saber, gestão/manutenção de redes informáticas, leitura de BTS (Base Transceiver Station), peritagens a telemóveis e prevenção no Sector de Telecomunicações e Informática;
f) Nos termos do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21/09, alterado pelo Decreto Lei n.º 302/98, de 7/10 e mantido em vigor pelos artigos 91.º e 161.º, n.º 3, do Decreto Lei n.º 275-A/2000, de 9/11, os trabalhadores ao serviço da D… têm direito a um suplemento de risco, graduado de acordo com o ónus da função dos diferentes grupos de pessoal, sendo tal subsídio atribuído em áreas funcionais específicas, como sendo a das telecomunicações e da carreira de especialista adjunto na área funcional das telecomunicações – cf. artigo 99.º, n.º 4, do mesmo diploma;
g) Estando os Demandantes abrangidos pela norma que lhes confere o direito a tal suplemento desde a data em que iniciaram funções., o mesmo dever-lhes-ia ser pago mensalmente desde que iniciaram funções em 01/12/2007 e 20/04/2009, respectivamente.
4. Devidamente citado, o Demandado veio esta apresentar contestação em 21/07/2016, pugnando pela improcedência do pedido apresentado pelos Demandantes com os seguintes argumentos:
a) Alega uma excepção dilatória de caso julgado por identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir com o processo n.º 66/2015-A, o que determinaria a absolvição da instância de acordo com o artigo 89.º, n.º 4, alínea l), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;
b) Defende que o prazo de impugnação dos actos de processamento de vencimento em questão teria caducado nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e que os Autores teriam aceitado os referidos actos, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, do mesmo diploma, determinando assim a absolvição da instância de acordo com o artigo 89.º, n.º 4, alínea i), do referido código;
c) Entende que, não se conformando com o teor da sentença prolatada no processo n.º 66/2015-A, deveriam ter os Autores recorrido jurisdicionalmente da mesma ou requerido a respectiva execução.
5. Em réplica datada de 13/09/2016, vieram os Demandantes responder às excepções suscitadas pelo Demandado na sua contestação, nos seguintes termos:
a) Não se verificaria excepção dilatória de caso julgado visto que este pressuporia concomitante identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir e, no processo decidendo, o pedido e a causa de pedir seriam diferentes pois não estaria em causa a condenação no pagamento do suplemento mas a data a partir do qual este é devido, o que não integraria a causa de pedir nem o pedido da acção anterior;
b) Não poderiam os Demandados ter intentado a correspondente acção de execução, visto que a decisão arbitral no processo n.º 66/2015-A não teria fixado a data a partir da qual o suplemento era devido, motivo pelo qual não constituiria título executivo bastante para o efeito, não se podendo assim executar o que dela não resultasse;
c) Não se verificaria excepção dilatória de inimpugnabilidade dos actos de processamento de vencimento visto que os mesmos não teriam sido notificados aos Demandados nos termos do artigo 68.º do Código do Procedimento Administrativo, o que seria necessário para o início do prazo de impugnação dos mesmos, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;
d) Acresceria ser o direito à retribuição um direito fundamental nos termos do artigo 59.º da Constituição (e sendo os suplementos parte da retribuição por força dos artigos 66.º e 67.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro), pelo que a respectiva violação por acto administrativo determinaria a respectiva nulidade e não anulabilidade, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo;
e) Por fim, o facto de os Demandantes terem transitado para a vinculação mediante contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado e a natureza administrativa desse contrato determinaria, nos termos do artigo 307.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos, que as respectivas determinações teriam a natureza não de actos administrativos, mas de declarações negociais interpretativas impugnáveis até se perfazer um ano seguinte à data da cessação do vínculo juslaboral, nos termos do artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e do artigo 337.º do Código do Trabalho.
6. Nos termos do Regulamento de Arbitragem Administrativa, foi o signatário designado como Árbitro para o processo, considerando-se o Tribunal Arbitral constituído, após aceitação pelo signatário, em 07/09/2016.
II. Saneamento
7. Após a apresentação dos articulados iniciais, o processo desenrolou-se de acordo com a súmula que se expõe de seguida:
a) Em 02/02/2017, o Tribunal proferiu despacho no sentido de: (i) remeter para a decisão arbitral o conhecimento das questões prévias suscitadas, nos termos do artigo 18.º, n.º 4, do Regulamento de Arbitragem Administrativa; (ii) dispensar a realização de prova testemunhal, nos termos do artigo 18.º, n.º 3, do Regulamento de Arbitragem Administrativa; e (iii) dispensar a realização de audiência de julgamento e a produção de alegações finais, nos termos dos artigos 18.º, n.º 1, alínea c), e n.º 3, e 24.º do Regulamento de Arbitragem Administrativa;
b) Sem prejuízo desse entendimento, o Tribunal concedeu prazo de 10 dias às Partes para se pronunciarem sobre a dispensa de audiências para a produção de prova;
c) Em 09/02/2017, pronunciou-se o Demandado no sentido de não se opor ao determinado pelo Tribunal;
d) Os Demandantes não se pronunciaram.
8. O Tribunal é competente. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas. Não existem nulidades.
9. Foi alegada, contudo, uma excepção dilatória de caso julgado – que sempre seria de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – que, caso se verifique, obsta ao conhecimento da causa por parte do Tribunal. Vejamos.
10. “A excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”. A mesma é uma decorrência da força de caso julgado material, ou seja, “uma proibição de contradição de uma decisão de mérito num processo posterior que, em conjugação com uma permissão de repetição, gera a autoridade de caso julgado e que em ligação com uma proibição de repetição, origina a excepção de caso julgado” – cfr. M. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, pp. 49 ss. e 179 e ss..
11. Como bem sumariou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2012, “a excepção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas decisões – estando uma delas já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, a outra respeitante à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida […] sobre a matéria em discussão, que se prende com a sua força vinculativa”.
12. Ora, nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07 de Dezembro de 2011, no proc. n.º 0419/11, “a operatividade da excepção de caso julgado depende pois da relação subsistente entre o que já foi julgado e o que está submetido a decisão como a nova acção. Como a sentença deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à apreciação do juiz, e só essas, salvo as de conhecimento oficioso (cfr. arts. [608.º] n.º 2 do Código de Processo Civil), a eficácia de caso julgado deve limitar-se à decisão que for tomada sobre tais questões”.
13. É isso mesmo que prescreve o artigo 581.º do Código de Processo Civil, de acordo com o qual os requisitos da litispendência e do caso julgado exigem que se intente “uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e causa de pedir” (n.º 1), sendo que:
a) Há “identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (n.º 2);
b) Há “identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico” (n.º 3); e
c) Há “identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” (n.º 4).
14. Resta verificar, então, se entre o caso sub judice e o do processo n.º 66/2015-A se verifica a referida tríplice identidade.
15. É manifesto que se existe (a) identidade de sujeitos, pois as partes são as mesmas.
16. Quanto (b) ao pedido, há que comparar os dois processos em causa. No processo n.º 66/2015-A, os Demandantes solicitaram que se “[declarasse] que […] têm direito a receber o suplemento de risco, a que se reporta o artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21/09, alterado pelo Decreto Lei n.º 302/98, de 7/10 e mantido em vigor pelos artigos 91.º e 161.º, n.º 3, do Decreto Lei n.º 275-A/2000, de 9/11, em montante igual ao auferido pelos especialistas adjuntos das telecomunicações noutras Unidades, Directorias e DIC's, nomeadamente na Directoria do Sul e DIC's de Aveiro e da Guarda, e que se [condenasse] o Requerido a pagá-lo”. Já no presente processo, os Demandantes requerem que se “[declare] que os Demandantes têm direito a receber suplemento de risco, desde 1/12/2007 e 20/04/2009 condenando-se o Demandado a pagá-lo, acrescido de juros de mora, á taxa legal”.
17. No que concerne, por fim, (c) à causa de pedir é também necessário comparar ambos os processos. No processo n.º 66/2015-A, os Demandantes alicerçaram o seu pedido no factos “de estarem providos em carreira de apoio à investigação criminal e a prestar funções na área funcional das telecomunicações, tendo por isso direito ao peticionado suplemento de risco nos termos das disposições legais aplicáveis”. No processo decidendo, por sua vez, fundamentaram o pedido nos factos de estarem integrados na referida carreira e de exercerem funções na área das telecomunicações desde 01/12/2007 e 20/04/2009, respectivamente, o que lhes conferiria direito ao referido suplemento nos termos legais.
18. A forma de tutela jurisdicional requerida pelos Demandantes é, na verdade, a mesma nos dois processos: em ambos requerem a atribuição do suplemento de risco. Da mesma forma, também alicerçam o pedido nos mesmos factos constitutivos: no facto de terem sido providos na carreira de apoio à investigação criminal e de exercerem funções na área das telecomunicações.
19. Alegam os Demandantes que, no processo decidendo, estaria “em causa apenas a determinação da data a partir do qual o [suplemento] [seria] devido. Em suma, não [estaria], pois, em causa a condenação no pagamento do suplemento mas a data a partir do qual este [seria] devido, a saber, a data a partir da qual os aqui Autores começaram a exercer as funções que legalmente conferem direito ao suplemento. O que não integrava a causa de pedir nem o pedido da acção” anterior.
20. Não é assim. Repare-se que, como referiu o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 08 de Março de 2007, “a identidade dos pedidos é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado”. Ou, de outra perspectiva, “para que ocorra identidade daquele nas duas acções não é necessária uma rigorosa identidade formal entre um e outro, basta que seja coincidente o objectivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas – cfr. J. Calvão da Silva, Estudos de Direito Civil e Processual Civil, 1996, p. 234.
21. Na verdade, ao formular o pedido nos termos amplos em que foi formulado no processo n.º 66/2015-A, solicitando que se “[declarasse] que os Demandantes têm direito a receber o suplemento de risco […] e que se [condenasse] o Requerido a pagá-lo”, sem qualquer delimitação temporal, está nele abrangido o período anterior. O que é corroborado pelo facto de a causa de pedir ser, precisamente, o provimento na carreira e o exercício de funções na área das telecomunicações. Dito de outra forma: os Demandantes requereram, naquele processo, a declaração da titularidade do direito ao pagamento do suplemento, sem terem especificado que o faziam apenas para o futuro. E foi isso que o Tribunal fez, também sem qualquer delimitação temporal. O que significa que o pedido no processo decidendo estava já contido no pedido do processo n.º 66/2015-A, havendo por isso uma coincidência.
22. Da mesma forma, como se referiu, a causa de pedir é precisamente a mesma e relaciona-se com a constituição do vínculo e com a prestação de trabalho numa determinada área funcional. Nos dois processos, os Demandantes partem dos mesmos factos para tentarem obter o mesmo efeito jurídico. Não há quaisquer diferenças nas duas acções quanto aos factos de que emerge o pedido.
23. Os Demandantes alegam, enfim, que “a sentença em apreço [no processo n.º 66/2015-A] não teria fixado a data a partir da qual o suplemento era devido”. Como já se referiu, o Tribunal reconheceu, no processo anterior, a titularidade do direito, sem qualquer restrição temporal. Ora, caso tivessem ficado insatisfeitos com o conteúdo da sentença, os Demandantes tinham ao seu dispor os recursos jurisdicionais previstos nos termos e prazos dos artigos 140.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ou a reforma da sentença prevista no artigo do Código de Processo Civil. Caso tivessem ficado satisfeitos com o conteúdo da sentença, mas insatisfeitos com as medidas de execução por parte do Demandado, os Demandantes tinham ao seu dispor os processos de execução de sentenças, nos termos e prazos previstos nos artigos 157.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
24. Em suma, a pretensão dos Demandantes é a mesma no processo n.º 66/2015-A e no presente processo, e, já se tendo o Tribunal pronunciado sobre ela, esgotou-se o seu poder jurisdicional sobre a matéria, motivo pelo qual se verifica, efectivamente, uma excepção dilatória de caso julgado que obsta ao conhecimento da causa por parte do Tribunal e determina a absolvição do Demandado da instância.
III. Decisão
Em razão do supra exposto, absolve-se o Demandado da instância por se verificar excepção dilatória de caso julgado por identidade com a decisão arbitral proferida no processo n.º 66/2015-A, nos termos do artigo 89.º, n.º 4, alínea l), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Notifiquem-se as partes, com cópia, e deposite-se o original da decisão (artigo 28.º, n.º 1 do Regulamento de Arbitragem Administrativa).
Fixa-se o valor da causa para efeitos de encargos processuais no montante € 30.000,01 por aplicação subsidiária do artigo 34.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Encargos processuais na importância de € 150,00 por cada sujeito processual, nos termos da tabela aplicável.
Lisboa, CAAD, 7 de Março de 2016
O árbitro,
Tiago Fidalgo de Freitas