DEMANDANTE: STML – SINDICATO DOS TRABALHADORES DO MUNICÍPIO DE LISBOA
DEMANDADA: FREGUESIA A...
DECISÃO ARBITRAL
Sumário:
A norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do Acordo Coletivo de Trabalho n.º 9/2019, Acordo Coletivo de Empregador Público entre a Freguesia de ... e o STML – Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa, feito em 26 de julho de 2018, depositado em 3 de agosto de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 1 – 2 de janeiro de 2019, páginas 119 a 123, tem de interpretar-se, à luz dos cânones gerais da interpretação jurídica, em linha com o n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP, significando isto que a expressão “correspondente pagamento”, contida no inciso final “caso não opte pelo correspondente pagamento”, só pode referir-se à remuneração acrescida prevista no artigo 162.º da LGTFP pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado e não, como preconiza o Demandante, ao “impedimento do gozo do descanso compensatório”, o que implicaria, aliás, efeitos incompatíveis com a delimitação taxativa das matérias sobre as quais pode dispor o instrumento de regulamentação coletiva do trabalho em funções públicas, constante do n.º 1 do artigo 355.º da LGTFP, naquela que é uma restrição do conteúdo possível desse instrumento perfeitamente proporcionada, por necessária, adequada e proporcional.
I – Das Partes, do Tribunal Arbitral, do saneamento processual, do valor da causa e da tramitação da presente ação arbitral
I.1 – É Demandante na presente ação arbitral o STML – Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa, cuja legitimidade ativa, não contestada pela Demandada, assenta nos invocados direitos sub judice, respeitantes a interesses coletivos que representa [cfr. artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT)].
É Demandada, sem que a sua legitimidade passiva seja também questionável, a Freguesia ..., pertencente ao Município de Lisboa.
Para além das referidas legitimidades, as Partes têm capacidade judiciária e interesse processual, estando regularmente representadas.
I.2 – A presente arbitragem em matéria administrativa relativa a relação jurídica de emprego público decorre junto do CAAD, na Avenida Duque de Loulé, n.º 72 A, 1050-091 Lisboa.
Não oferece dúvida a legitimidade do CAAD, enquanto centro de arbitragem institucionalizada, em intervir na matéria que constitui o objeto da presente ação arbitral [cfr. artigo 3.º, n.º 2, dos Estatutos do CAAD (disponíveis em www.caad.org.pt/), Despachos n.º 5097/2009, de 27 de janeiro de 2009, no Diário da República, 2.ª série – N.º 30 – 12 de Fevereiro de 2009, página 6113, e n.º 5880/2018, de 1 de junho de 2018, no Diário da República, 2.ª série – N.º 114 – 15 de junho de 2018, página 16782, e artigo 180.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)].
Inexistindo, in casu, uma vinculação prévia à jurisdição do CAAD, o Demandante invoca nesse sentido, sem qualquer contestação por parte da Demandada, a “cláusula compromissória” constante da Cláusula 29.ª (sob a epígrafe “Resolução de conflitos coletivos”), n.º 1 (“As partes adotam, na resolução dos conflitos coletivos emergentes do presente Acordo, os meios e termos legalmente previstos de conciliação, mediação e arbitragem.”), do Acordo Coletivo de Trabalho n.º 9/2019, o Acordo Coletivo de Empregador Público entre a Freguesia ... e o STML – Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa, feito em 26 de julho de 2018, depositado em 3 de agosto de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 1 – 2 de janeiro de 2019, páginas 119 a 123, constante do Documento 1 junto à petição inicial e que passará, nesta sede, a ser referenciado simplesmente como ACEP.
Estando inequivocamente em causa na presente ação arbitral, como melhor se verá, um dissídio emergente da interpretação e aplicação de uma norma desse ACEP, e tendo o mesmo, incluindo a referida “cláusula compromissória”, sido subscrito em conformidade com a previsão do artigo 184.º, n.º 2, do CPTA, declara-se a competência do CAAD para o julgamento da presente ação arbitral.
Este concreto Tribunal Arbitral, constituído em 28 de novembro de 2024, é composto por um Árbitro, conforme previsto nos artigos 15.º, n.º 2, e 17.º do Regulamento da Arbitragem [cfr. “Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa”, aplicável à arbitragem em matéria administrativa que decorre no CAAD, disponível em www.caad.org.pt/].
Nos termos dos artigos 15.º, n.º 3, e 16.º, n.º 1, do mesmo Regulamento, o signatário foi o Árbitro designado para apreciar e decidir a presente causa, devendo fazê-lo segundo o direito constituído, conforme estatuem, seja os artigos 5.º, n.º 1, alínea f), e 26.º, n.º 1, também desse Regulamento, seja o artigo 185.º, n.º 2, do CPTA: “Nos litígios sobre questões de legalidade, os árbitros decidem estritamente segundo o direito constituído, não podendo pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da atuação administrativa, nem julgar segundo a equidade.”
I.3 – Foi logo no Despacho n.º 1 (“SANEAMENTO E TRAMITAÇÃO PROCESSUAL”), de 4 de fevereiro de 2025, que, nos termos acabados de enunciar, se declarou a legitimidade e a capacidade judiciárias das Partes, o seu interesse em agir processualmente, a sua regular representação e a competência do Tribunal Arbitral.
Nesse mesmo Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025 (cfr. III.1), declarou-se inexistirem nulidades processuais ou questões prévias por decidir, já que o Tribunal Arbitral nele tomara logo posição (cfr. II.3 e II.3.1) quanto à invocação pela Demandada de ineptidão da petição inicial, tendo-o feito nos termos que aqui se transcrevem:
Contudo, antes da referida defesa por impugnação, a Demandada pronuncia-se pela ineptidão da petição inicial, dizendo que a causa de pedir quanto a um crédito pelo trabalho suplementar prestado em dia feriado implica – o que, segundo ela, a petição inicial não faz – a identificação dos feriados em causa, das horas de trabalho suplementar neles prestadas e dos trabalhadores envolvidos e respetivos horários, bem como a demonstração de que esse trabalho suplementar foi prévia e expressamente ordenado pela Demandada ou por esta consentido.
Não podemos dar razão à Demandada nesta arguição da ineptidão da petição inicial. Vejamos porquê.
É seguro que o Demandante reconduz expressamente a presente ação à espécie declarativa de condenação, não se tratando, portanto, de uma ação visando obter unicamente a declaração da existência de um direito, como ocorre nas ações de simples apreciação, tratando-se, isso sim, de uma ação destinada a exigir uma prestação, pressupondo a violação do direito dos trabalhadores da Demandada que o Demandante afirma fluir da norma do n.º 6 do artigo 14.º do ACEP [cfr. artigo 10.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Civil (CPC)].
Daí que no seu pedido, (...), o Demandante preconize a condenação da Demandada “a cumprir o n.º 6 do artigo 14.º do ACEP”, assim repondo a legalidade e assim permitindo, desde o momento (a determinar) em que deixou de o fazer e para futuro, o gozo por parte dos seus trabalhadores do descanso compensatório (remunerado) por prestação de trabalho suplementar em dia feriado.
Um tal pedido não pode qualificar-se de “genérico” (cfr. artigo 556.º do CPC), embora pressuponha a necessidade de, no momento do cumprimento da decisão proferida na presente ação, se determinar os termos concretos da reposição pretérita dos direitos que venham, sendo o caso, a declarar-se terem sido violados.
Um tal pedido é, aliás, perfeitamente conforme à tutela jurisdicional efetiva preconizada pelo CPTA e, apesar de poder suscitar a referida determinação, está suficientemente concretizado para tornar possível e útil a apreciação e decisão reclamadas na presente ação.
Na verdade, o pedido formulado pelo Demandante reconduz-se ao reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de norma jurídico-administrativa, cumulativamente com a condenação da Demandada à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos violados e ao cumprimento dos deveres de prestar diretamente decorrentes de tal norma [cfr. artigo 2.º, n.º 2, alíneas f), i) e j), artigo 4.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, e artigo 37.º n.º 1, alíneas f), i) e j), do CPTA].
Por outro lado, atentando no teor integral da contestação, e conferindo especial enfoque ao que se afirma, conjugadamente, nos artigos 2.º e 9.º da mesma, extrai-se, à saciedade, que a Demandada “interpretou convenientemente a petição inicial” (cfr. artigo 186.º, n.º 3, do CPC), fazendo-o, aliás, em plena conformidade com a interpretação da petição inicial feita pelo próprio Tribunal Arbitral, ou seja, que o Demandante pretende que a Demandada seja condenada a cumprir a norma do n.º 6 do artigo 14.º do ACEP, fazendo-o em conformidade com o entendimento daquele no sentido de que esta norma “atribui aos trabalhadores da Freguesia ... o direito de gozarem um descanso compensatório acrescido de uma remuneração pelo trabalho suplementar caso trabalhassem em dia feriado”.
Nesta perspetiva – (...) –, não poderá reconhecer-se qualquer nulidade decorrente de uma ineptidão da petição inicial causada por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir.
Anote-se que, em II.3.1 e III.2 do mesmo Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025, o Tribunal Arbitral suscitou a pronúncia do Demandante, no sentido de esclarecer expressamente “se a interpretação feita pelo Tribunal Arbitral do seu pedido e da causa de pedir é por si considerada correta”; tendo o Demandante, no seu requerimento de 24/25 de fevereiro de 2025, esclarecido que “confirma a interpretação feita pelo Tribunal Arbitral”.
I.4 – Também no Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025, fixou-se fundamentadamente (cfr. II.4) o valor da presente causa em € 30 000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), superior ao da alçada do Tribunal Central Administrativo, à luz do artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, conjugado com o artigo 6.º, n.º 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o artigo 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
I.5 – E em III do mesmo Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025, o Tribunal Arbitral, considerando “poder prescindir da produção de qualquer outra prova, para além da que já consta dos autos, e, bem assim, da realização de qualquer audiência”, aduzindo que “tem por suficiente a prova documental já disponível nos autos para a apreciação e decisão de mérito que lhe competem”, suscitou a pronúncia das Partes, à luz dos artigos 18.º, n.ºs 1 e 4, e 24.º do Regulamento da Arbitragem, quer sobre “a possibilidade de condução do presente processo arbitral unicamente ‘com base na prova documental e nos restantes elementos juntos ao processo’”, quer sobre, “se delas não prescindirem expressamente, a ‘produção de alegações finais, escritas ou orais, sucessivas ou simultâneas’”.
Tendo a Demandada, no seu requerimento de 10 de fevereiro de 2025, dito que “o tema em discussão se resume a uma questão de interpretação do direito, pelo que a documentação junta e os articulados das partes são mais do que suficientes para a apreciação jurídica por parte do CAAD, não sendo inteligível que interesse poderá ter a audição de testemunhas”, acrescentando que “declara prescindir da produção de alegações finais em face da simplicidade da matéria em causa, i.e., resumir-se a uma questão de interpretação do Direito, sendo que as partes mediante os seus articulados já expuseram na íntegra a sua argumentação”; e tendo o Demandante, no seu requerimento de 24/25 de fevereiro de 2025, dito que “o tema em discussão se resume a uma questão de interpretação do direito, pelo que a documentação junta e os articulados das partes são mais do que suficientes para a apreciação jurídica por parte do CAAD”, acrescentando que “declara prescindir da produção de alegações finais em face da simplicidade da matéria em causa, e a resumir-se a uma questão de interpretação do Direito, sendo que as partes mediante os seus articulados já expuseram na íntegra a sua argumentação”.
Face a tais pronúncias, perfeitamente coincidentes, de ambas as Partes, estão, pois, reunidas as condições para a prolação, sem mais, da presente Decisão Arbitral.
II – Do objeto da presente ação arbitral
II.1 – O Demandante termina a petição inicial – que deu entrada no CAAD em 26 de setembro de 2024, tempestivamente, face ao disposto no artigo 41.º do CPTA – formulando o seguinte pedido:
Nestes termos e nos demais de direito deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
a)Ser o Réu condenado a cumprir o n.º 6 do artigo 14.º do ACEP n.º 9/2019 e publicado no Diário da República n.º 1, 2.ª série a 2 de Janeiro de 2019;
b)Em consequência, ser o Réu condenado a repor a legalidade, e mediante apuramento da data do efetivo início do incumprimento desta cláusula, permitir o gozo por parte dos trabalhadores de todos os dias de descanso compensatório que não foram gozados por prestação de trabalho suplementar em dia de feriado.
Anote-se que a redação da norma do referido n.º 6 do artigo (Cláusula) 14.º, sob a epígrafe “Trabalho Suplementar”, do ACEP é a seguinte:
Sem prejuízo do descanso compensatório conferido por lei, a prestação de trabalho suplementar em dia feriado confere ao trabalhador o direito a descanso compensatório por igual período de tempo, que deverá ser gozado nos três dias seguintes, por acordo com o trabalhador, ou na sua falta, no mesmo período, em dia a designar pelo empregador público, caso não opte pelo correspondente pagamento.
O essencial da posição do Demandante sobre esta norma do ACEP está expresso no artigo 8.º (com reincidência no artigo 10.º) da petição inicial, aí dizendo entender “que o trabalhador tem direito tanto ao descanso compensatório como à remuneração pelo trabalho suplementar realizado em dia feriado, conforme estabelecido no artigo 162.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas”, logo acrescentando o seguinte: “O acordo entre o empregador público e o trabalhador pode determinar se a remuneração será substituída pelo descanso compensatório, mas isso não implica a exclusão de um ou outro benefício.”
No Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025, sublinhou-se (cfr. II.1) que a presente ação não incide, de todo, sobre o trabalho normal prestado em dia feriado, mas sim sobre o trabalho suplementar prestado em tal dia.
E então sublinhou-se, ainda, que nenhuma das Partes põe em causa que os trabalhadores da Demandada têm sido remunerados, efetiva e devidamente, pelo trabalho suplementar prestado em dia feriado, pretendendo o Demandante – a isso verdadeiramente se reconduzindo o thema decidendum – que, para além dessa remuneração, de que não prescinde, seja reconhecido aos mesmos trabalhadores o direito a usufruírem ainda de descanso compensatório (remunerado, subentenda-se) com duração idêntica ao tempo de trabalho suplementar prestado.
É neste contexto que deve conceber-se o alcance do que o Demandante afirma no artigo 3.º da petição inicial, a saber: “Inicialmente, até determinado momento, os trabalhadores gozaram este descanso compensatório por trabalho suplementar realizado em dia feriado, contudo, a partir de determinado momento, que está a ser apurado e se protesta juntar a informação em 15 dias, decidiu a JF impedir o seu usufruto.”
Neste preciso ponto, faça-se um parêntesis para anotar que – na sequência da pronúncia que lhe foi suscitada em II.3.3 e III.2 do Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025 – o Demandante esclareceu, no seu requerimento de 24/25 de fevereiro de 2025, qual “o momento a partir do qual a Demandada deixou de permitir aos seus trabalhadores que acumulassem a retribuição relativa ao trabalho suplementar prestado em dia feriado com o gozo de descanso compensatório (remunerado)”, tendo afirmado coincidir tal momento com o mês de julho de 2022 (corrigindo a data primeiramente indicada de julho de 2023), o primeiro mês em que, para além do pagamento do trabalho suplementar em dia feriado, terá deixado de ser permitido aos trabalhadores acumularem esse pagamento com o gozo de descanso compensatório (remunerado), juntado para o comprovar um seu comunicado aos trabalhadores da Demandada datado de 15 de dezembro de 2022, no qual se pode ler o seguinte:
Havendo dúvidas quanto à aplicação do n.º 6 da Cláusula 14.ª – Trabalho Suplementar (descanso compensatório), ficou o STML de enviar uma proposta de alteração de forma a tornar mais claro a aplicação deste direito aos trabalhadores (entretanto já enviada).
Por seu lado, o Executivo comprometeu-se a fazer o levantamento dos dias de folga acumulados que os trabalhadores têm pelo trabalho suplementar (extraordinário) nos dias-feriado. Numa fase seguinte, a Junta irá negociar com os trabalhadores a forma de compensação dos mesmos (gozados e/ou pagos em função do acordo entre as partes).
É também naquele mesmo contexto que deve conceber-se o alcance da invocação pelo Demandante, desta feita no artigo 9.º da petição inicial, do direito ao repouso e ao lazer, que estariam “a ser desproporcionalmente afetados pois o descanso compensatório tem na sua ratio a contrapartida pelo desgaste físico e psicológico provocado pelas horas a mais”.
Assinale-se que o Demandante suporta a necessidade da presente ação numa posição expressa da Demandada que contraria a sua pretensão, posição expressa essa que se contém na seguinte parcela da comunicação que o Demandante recebeu da Demandada com a referência 1039/DAG/JFPF/2023, de 06-12-2023, junta à petição inicial como Documento 2:
Quanto à possibilidade de descanso compensatório remunerado nos casos em que é realizado trabalho suplementar em dia feriado, importa dizer que, quando um trabalhador exerce funções num dia de descanso complementar num feriado, pode optar entre receber o acréscimo percentual relativo ao trabalho suplementar ou o descanso compensatório. É entendimento da Junta que o trabalhador não poderá acumular o aludido acréscimo com descanso compensatório. Das duas, uma: opta pela remuneração do trabalho suplementar prestado num feriado; ou opta pelo descanso compensatório, a gozar em dia a aprovar pela Junta, e não recebe pelo trabalho suplementar.
Não há possibilidade de derrogar o regime jurídico vigente nesta matéria através de ACEP, sendo que o incumprimento dos normativos legais aplicáveis é suscetível de gerar responsabilidade financeira, sem prejuízo das sanções previstas no regime de tutela administrativa.
Face a esta afirmação da Demandada de que se não pode “derrogar o regime jurídico vigente nesta matéria através de ACEP”, o Demandante – para além de invocar uma violação do direito à negociação coletiva, aqui sem razão, como assinalado pela Demandada no artigo 15.º da contestação – esforça-se adicionalmente por demonstrar que os referidos efeitos que pretende retirar da interpretação que faz daquela norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP podem validamente integrar o objeto de um acordo coletivo de empregador público, maxime por se tratar de matéria relativa à “organização do tempo de trabalho” [remetendo neste ponto para o artigo 14.º, n.º 2, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP ou LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho].
O Demandante acrescenta mesmo, por referência ao Acórdão n.º 602/2013, de 20 de setembro, do Tribunal Constitucional, que “o preceito do descanso compensatório incide sobre matéria que integra a reserva constitucional de contratação coletiva”, sendo, pois, perfeitamente válida aquela norma do ACEP “por ser matéria do domínio da reserva de convenção coletiva”, não passível de revogação por lei imperativa (anote-se que neste ponto tem de retificar-se que o Acórdão a que o Demandante se refere no artigo 18.º da petição inicial corresponde, afinal, ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2018, no Processo n.º 735/17.9T8CBR.C1.S1).
II.2 – Recebida a respetiva citação em 2 de outubro de 2024, a Demandada contestou a presente ação – em 21 de outubro de 2024, tempestivamente, face ao disposto no artigo 12.º, n.º 1, do Regulamento da Arbitragem –, defendendo-se por impugnação, afirmando, em síntese, o seguinte:
a)A própria norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP, ao prever, in fine, uma opção pelo “correspondente pagamento”, parece evidenciar que não se verifica a possibilidade da pretendida acumulação do descanso compensatório com a remuneração relativa ao trabalho suplementar em dia feriado, pois, “se existe uma opção, os direitos não são cumulativos, mas alternativos”;
b)Tanto que o Demandante pretendeu, em final de 2023, “alterar o ACEP retirando cirurgicamente essa frase final, o que não foi aceite”, remetendo neste ponto para o Documento 3 junto à contestação;
c)Aliás, uma tal acumulação não é legalmente possível, remetendo neste ponto para os Documentos 1 e 2 juntos à contestação e aludindo ao n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP e à evolução verificada no artigo 229.º do Código do Trabalho (e também ao artigo 269.º do Código do Trabalho, embora sem que possa descortinar-se a razão desta referência);
d)E o ACEP, sob pena de estar “ferido de morte”, não pode alterar uma norma legal imperativa, remetendo neste ponto para a alínea a) do n.º 2 do artigo 355.º da LGTFP;
e)As entidades públicas “têm as suas competências materiais e de funcionamento balizadas pela Lei, não competindo aos seus dirigentes fazer interpretações legais por analogia ou extensivas que representem um aumento de encargos para o respetivo erário que gerem, sob pena de responsabilidade financeira”, remetendo neste ponto para os artigos 59.º, 60.º e 61.º, n.º 2, da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC);
f)“Pelo que a postura prudente e baseada numa interpretação literal dos preceitos legais da Demandada tem plena justificação, em face de pretensões de legalidade duvidosa e bom senso diminuto.”;
g)“Em resumo, a pretensão do Demandante em como os trabalhadores podem ‘ter sol na eira e chuva no nabal’ não tem qualquer fundamento legal.”.
Cumpre, pois, apreciar e decidir a presente ação arbitral.
III – Da decisão e fundamentação da matéria de facto
III.1 – O Tribunal Arbitral decide considerar provados os factos que, tendo sido alegados e relevando para a decisão da presente causa, a seguir se especificam, inexistindo outros factos, nas mesmas circunstâncias, considerados não provados:
1.º - Em 26 de julho de 2018, as Partes na presente ação arbitral subscreveram o Acordo Coletivo de Trabalho n.º 9/2019, Acordo Coletivo de Empregador Público entre a Freguesia ... e o STML – Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa, depositado em 3 de agosto de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 1 – 2 de janeiro de 2019, páginas 119 a 123, constante do Documento 1 junto à petição inicial e referenciado na presente Decisão Arbitral simplesmente como ACEP.
2.º - Desse ACEP, consta a seguinte norma (cfr. n.º 6 da Cláusula 14.ª, sob a epígrafe “Trabalho Suplementar”):
Sem prejuízo do descanso compensatório conferido por lei, a prestação de trabalho suplementar em dia feriado confere ao trabalhador o direito a descanso compensatório por igual período de tempo, que deverá ser gozado nos três dias seguintes, por acordo com o trabalhador, ou na sua falta, no mesmo período, em dia a designar pelo empregador público, caso não opte pelo correspondente pagamento.
3.º - Com início nunca antes do mês de julho de 2022, em data nunca anterior a apurar, vindo isso a revelar-se necessário, no momento do cumprimento da Decisão Arbitral proferida na presente ação, terá deixado de ser permitido aos trabalhadores da Demandada acumularem o pagamento do trabalho suplementar em dia feriado com o gozo de descanso compensatório (remunerado).
4.º - Com data de 15 dezembro de 2022, o Demandante enviou aos trabalhadores da Demandada um comunicado, no qual pode ler-se o seguinte:
Havendo dúvidas quanto à aplicação do n.º 6 da Cláusula 14.ª – Trabalho Suplementar (descanso compensatório), ficou o STML de enviar uma proposta de alteração de forma a tornar mais claro a aplicação deste direito aos trabalhadores (entretanto já enviada).
Por seu lado, o Executivo comprometeu-se a fazer o levantamento dos dias de folga acumulados que os trabalhadores têm pelo trabalho suplementar (extraordinário) nos dias-feriado. Numa fase seguinte, a Junta irá negociar com os trabalhadores a forma de compensação dos mesmos (gozados e/ou pagos em função do acordo entre as partes).
5.º - Em data não especificada, de 2022 ou de 2023, o Demandante propôs à Demandada a alteração da referida norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP, a qual, segundo essa proposta, constante do Documento 3 junto à contestação, passaria a ter a seguinte redação (traduzindo-se, pois, tal nova redação proposta na supressão da sua anterior parte final: “ou na sua falta, no mesmo período, em dia a designar pelo empregador público, caso não opte pelo correspondente pagamento.”):
Sem prejuízo do descanso compensatório conferido por lei, a prestação de trabalho suplementar em dia feriado confere ao trabalhador o direito a descanso compensatório por igual período de tempo, que deverá ser gozado nos três dias seguintes, por acordo com o trabalhador.
6.º - Em resposta a um pedido da Demandada de 25 de agosto de 2023, foi emitido pela ANAFRE – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE FREGUESIAS um parecer jurídico, com a Referência CJ/LA/1795/2023, de 1 de setembro de 2023, constante do Documento 2 junto à contestação, no qual pode ler-se o seguinte:
O trabalho suplementar prestado aos sábados e feriados dá direito ao acréscimo remuneratório, mas não dá direito a um dia de descanso compensatório.
De facto, os n.ºs 1, 2 e 6 do artigo 229.º do CT que conferiam tal direito sempre que o trabalhador prestasse trabalho suplementar em dia feriado, foram revogados pelo artigo 9.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho.
Nesta conformidade, no âmbito do Código do Trabalho, cujo regime na matéria em análise, se considera aplicável, com as devidas adaptações e sem prejuízo do disposto na LTFP, por remissão do artigo 4.º e do n.º 1 do artigo 120.º da LTFP, já não se encontra em vigor o normativo que reconhecia o direito ao descanso compensatório remunerado pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado.
Assim, tal como se conclui no parecer com a referência DSAJAL 10907/2021, consideramos “não ser possível, mediante instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, conferir o direito a descanso compensatório remunerado pelo trabalho prestado em dia feriado, sem prejuízo do disposto no n.º 7 do artigo 162.º da LTFP”.
Efetivamente, face a tal entendimento, o trabalhador apenas poderá vir a ter direito a descanso compensatório pelo trabalho prestado em dia feriado, nos termos previstos no n.º 7 do artigo 162.º da LTFP, ou seja, em alternativa ao pagamento da remuneração devida pela prestação de trabalho suplementar nesse dia e mediante acordo entre trabalhador e empregador público.
Face a tudo o que supra se deixa explanado e atento o facto de ter sido expressamente revogada a previsão legal existente que conferia aos trabalhadores o direito ao descanso compensatório pela realização de trabalho suplementar em dia feriado, consideramos não ser possível a previsão do mesmo em sede de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 355.º da LTFP.
(...)
Face ao explicitado, concluímos em consonância com o entendimento expresso pela autarquia, ou seja, o da impossibilidade de incluir num instrumento de regulamentação coletiva de trabalho uma cláusula que viabilize o gozo de descanso compensatório pela realização de trabalho suplementar em dia feriado, em simultâneo com o pagamento da respetiva remuneração, face a disposição legal imperativa que veda tal situação.
7.º - Na comunicação que a Demandada enviou ao Demandante como ofício n.º .../DAG/JFPF/2023, de 07 de novembro de 2023, constante do Documento 1 junto à contestação, pode ler-se o seguinte:
Em resposta à vossa missiva melhor identificada no assunto do presente ofício, cumpre-nos dizer o seguinte:
Na vossa missiva V/Exas. indicam que entendemos que o artigo 14.º, n.º 6 do ACEP contraria as normas legais vigentes, ora se verificarmos o ofício enviado por nós, em parte alguma foi referido tal observação, até porque o que se encontra regulado neste artigo é o descanso compensatório, mantendo-se a alternativa entre a escolha da remuneração ou do descanso compensatório, que o legislador sempre pretendeu.
Neste caso em particular, pretendem V/Exas. que a remuneração seja efetuada mesmo que o trabalhador goze os seus dias de descanso compensatório, retirando a alternativa de o trabalhador poder escolher entre um ou outro.
Ora, como já referimos, o artigo 162.º da LTFP, (...), estatui (...) que “Por acordo entre o empregador público e o trabalhador, a remuneração por trabalho suplementar pode ser substituída por descanso compensatório.”
Assim, resulta das disposições legais vigentes que quando é efetuado trabalho suplementar em dia feriado, o trabalhador tem direito a um descanso compensatório ou, em alternativa, à remuneração pelo trabalho prestado nesse dia.
Ora, o facto de se decidir acordar em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho a obrigatoriedade do pagamento da remuneração mesmo que o trabalhador goze os dias de descanso compensatório é que contraria as normas legais imperativas já citadas [o que se encontra expressamente vedado pelo artigo 355.º, n.º 2, alínea a), da LTFP] e estaríamos a regular matérias cuja regulamentação lhe está igualmente vedada por força do disposto no artigo 14.º, n.º 2, in fine, da LTFP.
Contudo, e uma vez que não é nossa intenção prejudicar os nossos trabalhadores, remetemos um pedido de parecer à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional bem como à Anafre, de modo a que nos auxiliem e confirmem ou não esta nossa visão.
Ora, até à data somente rececionámos o parecer da Anafre, o qual anexamos ao presente ofício, encontrando-se, ainda, em falta o parecer da CCDR.
O parecer rececionado vem de encontro àquilo que temos vindo a defender, razão pela qual não podemos corresponder ao pedido.
8.º - Na comunicação que o Demandante recebeu da Demandada com a referência .../DAG/JFPF/2023, de 06-12-2023, constante do Documento 2 junto à petição inicial, pode ler-se o seguinte:
Quanto à possibilidade de descanso compensatório remunerado nos casos em que é realizado trabalho suplementar em dia feriado, importa dizer que, quando um trabalhador exerce funções num dia de descanso complementar num feriado, pode optar entre receber o acréscimo percentual relativo ao trabalho suplementar ou o descanso compensatório. É entendimento da Junta que o trabalhador não poderá acumular o aludido acréscimo com descanso compensatório. Das duas, uma: opta pela remuneração do trabalho suplementar prestado num feriado; ou opta pelo descanso compensatório, a gozar em dia a aprovar pela Junta, e não recebe pelo trabalho suplementar.
Não há possibilidade de derrogar o regime jurídico vigente nesta matéria através de ACEP, sendo que o incumprimento dos normativos legais aplicáveis é suscetível de gerar responsabilidade financeira, sem prejuízo das sanções previstas no regime de tutela administrativa.
9.º - Em 26 de setembro de 2024, iniciou-se a presente instância arbitral, com a entrada no CAAD, por iniciativa do Demandante, da petição inicial.
III.2 – Todos estes factos considerados provados constituem, objetivamente e entre as Partes, que o assumem, factos incontroversos, resultando diretamente da documentação junta aos autos.
Ainda assim, importa detalhar, especificamente quanto ao 3.º facto considerado provado, que não pode considerar-se assente se foi com início no mês de julho de 2023 ou antes no mês de julho de 2022 [aquela a data inicialmente indicada pelo Demandante e depois corrigida para esta outra (cfr. seu requerimento de 24/25 de fevereiro de 2025)] que terá deixado de ser permitido aos trabalhadores da Demandada acumularem o pagamento do trabalho suplementar em dia feriado com o gozo de descanso compensatório (remunerado).
Daí a forma rigorosa como se enunciou esse 3.º facto considerado provado [“Com início nunca antes do mês de julho de 2022, em data nunca anterior a apurar, vindo isso a revelar-se necessário, no momento do cumprimento da Decisão Arbitral proferida na presente ação, terá deixado de ser permitido aos trabalhadores da Demandada acumularem o pagamento do trabalho suplementar em dia feriado com o gozo de descanso compensatório (remunerado).”], pretendendo-se com tal redação deixar claro, por um lado, que a pretensão do Demandante em caso algum poderá relevar relativamente a período anterior ao mês de julho de 2022 (dado o limite inerente ao seu próprio pedido) e, por outro lado, que a data a ser definitivamente considerada (nunca anterior a julho de 2022) quanto a tal pretensão, caso isso venha a ser necessário em função do sentido da presente Decisão Arbitral, deve ser fixada aquando do cumprimento desta.
Por outro lado, agora quanto ao 5.º facto considerado provado, por não ter sido possível verificar documentalmente qual a data em que o Demandante propôs à Demandada a alteração da norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP – com a Demandada a referir (cfr. supra II.2) o final de 2023, algo coerente com a referência aos mais de cinco anos decorridos desde a assinatura do ACEP que consta logo no início da proposta, mas que não se ajusta ao teor e à data da comunicação referenciada no 4.º facto considerado provado –, utilizou-se a enunciação “Em data não especificada, de 2022 ou de 2023, (...)”, sendo que esta amplitude temporal não tem efeitos na apreciação e decisão da presente ação arbitral.
IV – Da decisão e fundamentação de Direito
IV.1 – Como se disse (cfr. supra II.1), nenhuma das Partes põe em causa que os trabalhadores da Demandada têm sido remunerados, efetiva e devidamente, pelo trabalho suplementar prestado em dia feriado, pretendendo o Demandante – a isso verdadeiramente se reconduzindo o thema decidendum – que, para além dessa remuneração, de que não prescinde, seja reconhecido aos mesmos trabalhadores o direito a usufruírem ainda de descanso compensatório (remunerado, subentenda-se) com duração idêntica ao tempo de trabalho suplementar prestado.
Assim sendo, e como se deixou expresso em III.1 do Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025, face à posição das Partes, antes descrita, bem vistas as coisas, o que tem de apreciar-se e decidir-se na presente ação arbitral – no que é uma estrita questão de Direito – é se a mais adequada interpretação jurídica da norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP permite concluir, como pretende o Demandante e contesta a Demandada, que os trabalhadores desta têm direito, caso prestem trabalho suplementar em dia feriado, a usufruir, para além da retribuição prevista na lei relativa a esse trabalho, de um período de descanso compensatório (remunerado) com duração idêntica ao tempo de trabalho suplementar prestado; e, se houver de concluir-se afirmativamente, se uma tal norma pode validamente ser erigida através de um acordo coletivo de empregador público, como o ACEP sub judice.
IV.2 – De molde a conhecer-se rigorosamente a interpretação preconizada pelo Demandante para a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP, em II.3.2 e III.2 do Despacho n.º 1, de 4 de fevereiro de 2025, dele se suscitou, nos termos seguintes, os adequados esclarecimentos:
(...), subsiste uma nebulosa no percurso argumentativo do Demandante que afeta a clareza das razões jurídicas por si invocadas como causa de pedir, tendo, por isso, de ser objeto de esclarecimento.
É que, (...), o Demandante entende que da norma do n.º 6 do artigo 14.º do ACEP emerge para o trabalhador que presta trabalho suplementar em dia feriado, quer o direito ao descanso compensatório (remunerado), quer o direito à retribuição especificamente prevista na lei para esse trabalho; mas logo acrescentando: “O acordo entre o empregador público e o trabalhador pode determinar se a remuneração será substituída pelo descanso compensatório, mas isso não implica a exclusão de um ou outro benefício.”
O que pretende o Demandante dizer com tal acrescento que se transcreveu? Que sem o acordo que aí refere ambos os direitos subsistem cumulativamente, ou seja, por outras palavras, que só o trabalhador pode dar o seu acordo a prescindir da retribuição relativa ao trabalho suplementar prestado em dia feriado, aceitando neste caso usufruir apenas do descanso compensatório (remunerado)? Ou o sentido pretendido é outro ainda?
No seu requerimento de 24/25 de fevereiro de 2025, o Demandante esclareceu, no que verdadeiramente releva, o seguinte, fazendo-o em dois parágrafos inseridos em momentos diferentes da sua pronúncia, que aqui se transcrevem invertendo, por razões lógicas, a ordem por que se apresentam naquele requerimento:
(...) com este acrescento, o demandante quis reiterar que, no âmbito do ACEP e em respeito pela negociação coletiva, pode, como foi, determinar-se que os trabalhadores têm direito, além do pagamento do trabalho suplementar prestado em dia de feriado previsto na lei, direito ao descanso compensatório estabelecido na cláusula 14.ª, n.º 6, do ACEP.
(...) como a demandada bem sabe, o pagamento a que a cláusula se reporta é em caso de impedimento do gozo do descanso compensatório e não o pagamento pelo trabalho suplementar em dia de feriado que já é pago nos termos do artigo 162.º da LGTFP.
Fica assim claro que a interpretação que o Demandante faz da norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP não é – ao contrário do que o Tribunal Arbitral equacionou – a de que só o trabalhador pode dar o seu acordo a prescindir da retribuição relativa ao trabalho suplementar prestado em dia feriado, aceitando neste caso usufruir apenas do descanso compensatório (remunerado).
A interpretação que o Demandante faz da norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP é, isso sim, a de que o trabalhador que presta trabalho suplementar em dia feriado tem direito, cumulativamente, quer à remuneração determinada de acordo com o artigo 162.º da LGTFP, quer a um período de descanso compensatório (sem perda de remuneração) com duração idêntica ao tempo de trabalho suplementar prestado nesse dia; sendo que o trabalhador pode optar por não gozar um tal período de descanso compensatório sem perda de remuneração, em troca do recebimento de uma remuneração adicional, correspondente à duração do período de descanso compensatório de que, por opção sua, prescindiu.
Pode aceitar-se esta interpretação preconizada pelo Demandante? É o que passaremos a apreciar e decidir.
IV.3 – Retome-se a redação da norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª, sob a epígrafe “Trabalho Suplementar”, do ACEP:
Sem prejuízo do descanso compensatório conferido por lei, a prestação de trabalho suplementar em dia feriado confere ao trabalhador o direito a descanso compensatório por igual período de tempo, que deverá ser gozado nos três dias seguintes, por acordo com o trabalhador, ou na sua falta, no mesmo período, em dia a designar pelo empregador público, caso não opte pelo correspondente pagamento.
Trata-se de uma redação obviamente pouco inspirada, mas que, ainda assim, na falta de acordo das Partes que a negociaram quanto ao sentido que lhe deve ser atribuído, permite que, à luz dos cânones gerais da interpretação jurídica, lhe atribuamos um sentido preferencial, o sentido tido por mais adequado.
Na verdade, tem sido pacificamente entendido que, dada a sua generalidade, abstração e suscetibilidade de produção de efeitos na esfera jurídica de terceiros, as cláusulas das convenções coletivas devem ser interpretadas no respeito pelos referidos cânones gerais da interpretação jurídica (cfr. o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2018, no Processo n.º 735/17.9T8CBR.C1.S1).
Vejamos, pois.
A LGTFP não consagra qualquer direito ao descanso compensatório remunerado pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado; e, mesmo que na matéria não se questionasse uma remissão para o Código do Trabalho (cfr. artigos 4.º, n.º 1, e 120.º, n.º 1, da LGTFP), o certo é que um tal descanso compensatório deixou de estar previsto no Código do Trabalho com as alterações introduzidas no seu artigo 229.º pelo artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, alterações essas declaradas conformes à Constituição pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2013, de 20 de setembro.
Na verdade, anteriormente à entrada em vigor dessas alterações os n.ºs 1 e 6 do artigo 229.º do Código do Trabalho estatuíam que pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado o trabalhador adquiria o direito a descanso compensatório remunerado correspondente a 25% das horas de trabalho suplementar realizadas, sendo que um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho podia afastar tal regime, estabelecendo antes uma compensação mediante redução equivalente do tempo de trabalho, pagamento em dinheiro ou ambas as modalidades.
Sem necessidade de detalhar aqui as alterações nele introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 13/2024, de 10 de janeiro, é o artigo 162.º da LGTFP que estabelece os montantes remuneratórios acrescidos pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado, que aceita que tais montantes podem ser fixados em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (cfr. n.º 4) e que estatui que o empregador e o trabalhador podem acordar em substituir essa remuneração acrescida por descanso compensatório (cfr. n.º 7).
Este artigo 162.º da LGTFP tem paralelo no artigo 268.º do Código do Trabalho – também ele alterado pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, com tais alterações a serem declaradas conformes à Constituição pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2013, de 20 de setembro –, o qual dispunha inicialmente que a remuneração acrescida pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado podia, por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, ser afastada, estabelecendo-se antes uma compensação mediante redução equivalente do tempo de trabalho, pagamento em dinheiro ou ambas as modalidades; tendo esta disposição, com a Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, sido alterada no sentido de continuar a prever esse afastamento por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, mas agora sem qualquer limitação quanto ao conteúdo do mesmo (norma esta entretanto revogada, porventura por se ter considerado redundante, pela Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro).
Ou seja, onde o artigo 268.º do Código do Trabalho permitiu que instrumento de regulamentação coletiva de trabalho afastasse o seu regime de pagamento do trabalho suplementar em dia feriado (através da imposição, primeiro, de uma compensação mediante redução equivalente do tempo de trabalho, pagamento em dinheiro ou ambas as modalidades), o artigo 162.º da LGTFP aceita a fixação por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho dos montantes remuneratórios acrescidos para pagamento do trabalho suplementar em dia feriado (cfr. n.º 4) – no que, bem vistas as coisas, se traduz num aditamento sistemático ao n.º 1 do artigo 355.º da LGTFP – e mais aceita um acordo entre o empregador e o trabalhador para substituição de tais montantes remuneratórios acrescidos por um período de descanso compensatório (cfr. n.º 7).
Esta norma do n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP dispensa, pois, a intermediação normativa do instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, determinando, ex lege, a validade do acordo entre o empregador e o trabalhador para a imediata substituição do pagamento acrescido do trabalho suplementar prestado em dia feriado por descanso compensatório.
Anote-se que esta opção do n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP está logicamente em linha com a opção da norma do n.º 2 do artigo 165.º da mesma LGTFP, na qual se estatui que o trabalho normal prestado em dia feriado confere o direito a um determinado período de descanso compensatório ou a um determinado acréscimo da remuneração correspondente, numa alternativa a acordar entre o trabalhador e o empregador ou, na falta de acordo, escolhida por este; sendo que, por seu turno, esta norma do n.º 2 do artigo 165.º da LGTFP encontra também um paralelo no n.º 2 do artigo 269.º do Código do Trabalho – igualmente alterado pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, em termos declarados conformes à Constituição pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2013, de 20 de setembro –, o qual, contudo, remete a alternativa exclusivamente para a escolha do empregador.
O ponto aqui a sublinhar é o de que a norma do n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP, ao determinar imediatamente a validade do acordo entre o empregador e o trabalhador para a substituição do pagamento acrescido do trabalho suplementar prestado em dia feriado por descanso compensatório, deve ser entendida como uma norma imperativa, para efeitos da alínea a) do n.º 2 do artigo 355.º da LGTFP, pois seria simplesmente incompreensível que um qualquer instrumento de regulamentação coletiva de trabalho pudesse afastar ou condicionar a validade de um tal acordo.
Ora, se bem vistas as coisas, a interpretação preconizada pelo Demandante para a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP não seria compatível com a referida imperatividade do n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP, pela simples razão de que, se o trabalhador receberia sempre a remuneração acrescida prevista no artigo 162.º da LGTFP pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado e, cumulativamente, teria sempre direito (em alternativa e por opção sua) ou a um período de descanso compensatório sem perda de remuneração com duração idêntica ao tempo de trabalho suplementar prestado nesse dia ou a auferir uma remuneração adicional correspondente a tal período de descanso compensatório, seria seguro o total esvaziamento prático da norma do n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP, algo que não pode conceber-se nem aceitar-se.
Daí que a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP só possa interpretar-se em linha precisamente com o n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP, significando isto que a expressão “correspondente pagamento”, contida no inciso final “caso não opte pelo correspondente pagamento”, só pode referir-se à remuneração acrescida prevista no artigo 162.º da LGTFP pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado e não, como preconiza o Demandante, ao “impedimento do gozo do descanso compensatório”.
E nem se diga que assim a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP perderia utilidade, pois que, para além do sentido de clarificação normativa que saudavelmente promove, erige um sentido preferencial para o descanso compensatório (aliás, em linha com as referidas preocupações afirmadas pelo Demandante quanto ao direito ao repouso e ao lazer), determina a sua duração, o momento em que deve ser gozado e os termos da fixação desse momento, bem como, com destaque, numa opção perfeitamente legítima de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, concede ao trabalhador (dispensando o acordo com o empregador) a tomada de opção entre o descanso compensatório ou a remuneração acrescida pela prestação de trabalho suplementar.
Por outro lado, é preciso não esquecer que a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP começa por salvaguardar o “descanso compensatório conferido por lei” (“Sem prejuízo do descanso compensatório conferido por lei,”), numa óbvia alusão à possibilidade de a lei (tal como ocorreu, como vimos, com a versão inicial do artigo 229.º do Código do Trabalho) impor um período de descanso compensatório pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado, sendo que este inciso inicial projeta, em termos literais e lógico-sistemáticos, um sentido normativo particular relativamente à segunda referência ao descanso compensatório feita nessa mesma norma, reportando-a, não já a uma tal possibilidade legal genérica, mas sim a uma específica alternativa à remuneração própria do trabalho suplementar em dia feriado, precisamente a única situação em que, quanto a este trabalho, a LGTFP se refere ao descanso compensatório, qual seja a prevista no n.º 7 do artigo 162.º (com paralelo no n.º 2 do artigo 165.º quanto ao trabalho normal em dia feriado).
Tem, pois, de considerar-se totalmente improcedente a presente ação arbitral, ficando prejudicada a apreciação da questão de saber se a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP – caso houvesse de ser interpretada no sentido, pretendido pelo Demandante, de que a prestação de trabalho suplementar em dia feriado conferia o direito à retribuição prevista na lei relativa a esse trabalho e cumulativamente o direito a um período de descanso compensatório (remunerado) com duração idêntica ao tempo de trabalho suplementar prestado – poderia validamente ser erigida através de um acordo coletivo de empregador público, como o ACEP sub judice.
IV.4 – Ainda assim – e ainda que possa entender-se este momento da presente Decisão Arbitral como tendo a natureza de um mero obiter dictum –, não será inútil nesta sede sublinhar, brevissimamente, que aquela interpretação preconizada pelo Demandante relativamente à norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP, a que ele procurou conferir (com a alteração que sugeriu para a mesma, referida supra em III.1, 5.º facto considerado provado) a firmeza inexistente na redação em vigor, se traduziria na recuperação, pela mão de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, de um sistema normativo próximo daquele que, anteriormente às alterações feitas pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, era constituído pelas disposições conjugadas dos artigos 229.º, n.ºs 1 e 6, e 268.º, n.ºs 1 e 3, do Código do Trabalho.
Ora, não se ignorando que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2013, de 20 de setembro (e, na sua esteira, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2018, no Processo n.º 735/17.9T8CBR.C1.S1), considerou as normas do Código do Trabalho relativas ao descanso compensatório por trabalho suplementar prestado em dia feriado como passíveis de constituírem objeto de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho [cfr. os juízos de (in)constitucionalidade dele constantes relativamente ao artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, por referência às disposições conjugadas dos artigos 56.º, n.ºs 3 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição], a verdade é que não podemos, de todo, ignorar a especificidade de ponderações paralelas de (in)constitucionalidade reclamadas pela natureza particular do trabalho em funções públicas, maxime no que se refere às especiais exigências de uniformidade e de legalidade dos regimes laborais e das despesas que lhes são inerentes.
Por isso mesmo, não pode deixar de considerar-se a delimitação taxativa (isto é, a tipicidade fechada) das matérias sobre as quais pode dispor o instrumento de regulamentação coletiva do trabalho em funções públicas, constante do n.º 1 do artigo 355.º da LGTFP, como traduzindo uma restrição do conteúdo possível desse instrumento perfeitamente proporcionada, por necessária, adequada e proporcional, sendo que a conformidade constitucional dessa norma se mantém íntegra.
E, face a tal delimitação taxativa, não cremos, de todo, que os efeitos que o Demandante pretende retirar da interpretação que faz da norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do ACEP possam validamente integrar o objeto de um acordo coletivo de empregador público, como o ACEP (cfr. artigo 13.º, n.ºs 5 e 7, da LGTFP), maxime sob o pretexto de se tratar de matéria relativa à “organização do tempo de trabalho” [cfr. artigo 355.º, n.º 1, alínea d), da LGTFP).
IV.5 – Em suma, a norma do n.º 6 da Cláusula 14.ª do Acordo Coletivo de Trabalho n.º 9/2019, Acordo Coletivo de Empregador Público entre a Freguesia ... e o STML – Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa, feito em 26 de julho de 2018, depositado em 3 de agosto de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 1 – 2 de janeiro de 2019, páginas 119 a 123, tem de interpretar-se, à luz dos cânones gerais da interpretação jurídica, em linha com o n.º 7 do artigo 162.º da LGTFP, significando isto que a expressão “correspondente pagamento”, contida no inciso final “caso não opte pelo correspondente pagamento”, só pode referir-se à remuneração acrescida prevista no artigo 162.º da LGTFP pela prestação de trabalho suplementar em dia feriado e não, como preconiza o Demandante, ao “impedimento do gozo do descanso compensatório”, o que implicaria, aliás, efeitos incompatíveis com a delimitação taxativa das matérias sobre as quais pode dispor o instrumento de regulamentação coletiva do trabalho em funções públicas, constante do n.º 1 do artigo 355.º da LGTFP, naquela que é uma restrição do conteúdo possível desse instrumento perfeitamente proporcionada, por necessária, adequada e proporcional.
V – Da Decisão Arbitral
À luz dos fundamentos expostos, declara-se totalmente improcedente a presente ação arbitral, absolvendo-se, consequentemente, a Demandada dos pedidos nela formulados pelo Demandante.
Registe e notifique.
29 de maio de 2025
O Árbitro,
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Abílio Manuel de Almeida Morgado