Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 54/2024-A
Data da decisão: 2025-03-17  Contratos 
Valor do pedido: € 194.768,84
Tema: Contrato de empreitada de obra pública
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Contrato de empreitada de obra pública

 

 

 

SUMÁRIO: Processo arbitral em tribunal singular, com litígio submetido ao CAAD por via de compromisso arbitral outorgado entre as partes, constituídas pelo Município A... (entidade demandada) e B..., Lda. (entidade demandante), em 18 de junho de 2024, materializado por via de petição da demandante reclamando da demandada o pagamento da quantia global de €194.768,84, a título de indemnização por danos emergentes e lucros cessantes, resultante de declaração judicial de anulação (confirmada em segunda instância) da decisão de adjudicação da qual resultou o contrato de empreitada de obra pública celebrado entre ambas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I - Enquadramento de partida do litígio

 

1.     No âmbito do concurso público para a empreitada de “Reparação e Beneficiação dos Paços do Concelho (Instalação de Serviços), lançado pelo Município de A..., adiante também designado por demandada, mediante deliberação da respetiva Câmara Municipal datada de 03.09.2021, foi a proposta do operador económico “B..., Lda.”, adiante também designada por B... ou demandante, graduada em primeiro lugar.

 

2.     Tendo-lhe sido adjudicada a obra em causa, por deliberação tomada em reunião de Câmara de 02.12.2021.

 

3.     Posteriormente, a 07.01.2022, o operador económico igualmente concorrente ao concurso supra identificado “C..., Lda.”, cuja proposta havia sido ordenada em segundo lugar, intentou ação de contencioso pré-contratual urgente, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, tendo por objeto a deliberação de adjudicação da obra à B... .

 

4.     A propositura da ação identificada no ponto anterior, não determinou a suspensão automática dos efeitos do ato impugnado (deliberação de adjudicação da obra à B...), tendo sido outorgado entre o Município de A... e a B..., em 14.01.2022, o respetivo contrato de empreitada.

 

5.     Em 11.02.2022, as partes assinaram o auto de consignação da obra.

 

6.     A 23.03.2022 procedeu-se à suspensão da execução da obra, mediante respetivo auto assinado entre as partes.

 

7.     Em pleno período de suspensão da obra, o Tribunal Central Administrativo Norte, mediante acórdão de 16.09.2022, transitado em julgado a 04.10.2022, confirmou a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que havia anulado a deliberação de adjudicação à B... tomada em 02.12.2021, e condenando o Município de A... a adjudicar o contrato à “ C..., Lda.”.

 

8.     Nessa sequência, vieram as partes ora litigantes, voluntariamente, submeter ao CAAD compromisso arbitral para resolução do litígio relacionado com o apuramento dos danos eventualmente sofridos pela B... pela não execução da empreitada que lhe foi adjudicada, no período compreendido entre 14.01.2022 e 04.10.2022 (cfr. cláusula primeira do compromisso arbitral junto aos autos).

 

9.     Mais acordaram as partes, em sede do compromisso arbitral, que a decisão a proferir pelo tribunal arbitral será insuscetível de recurso, conquanto se pronuncie sobre o mérito da causa, obrigando-se, nesse caso, a acatar a decisão que vier a ser proferida no processo.

 

10.  Tendo-se constituído o tribunal arbitral, veio a B... dirigir petição ao mesmo reclamando o direito a uma indemnização pelos prejuízos que alegadamente terá sofrido com a não execução da obra, contados desde a data de celebração do contrato, os quais, no entendimento daquela, abrangem danos emergentes e lucros cessantes, num valor total peticionado de €194.768,84, correspondendo €92.978,69 a danos emergentes e €101.790,15 a lucros cessantes.

 

11.  O Município de A..., em sede de contestação, pede a improcedência total da ação, por não provada, contrariamente à posição que havia manifestado em sede do compromisso arbitral, no qual reconheceu que poderia haver o direito ao ressarcimento de alguns dos danos alegados pela B... (então em sede de pré-contencioso), discordando, contudo, dos valores peticionados e respetiva fundamentação de suporte.

 

II - Da tentativa de conciliação

 

Nos termos e ao abrigo do disposto no nº 3, do artigo 18.º, do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa (“NRAA”), o tribunal agendou reunião com as partes para tentativa de conciliação, procurando alcançar um acordo de transação.

 

A opção do tribunal por tentar esta via conciliatória, teve em consideração a natureza do litígio e a tipologia da factualidade a apreciar, bem como o facto de a demandada, em sede de compromisso arbitral, ter reconhecido a possibilidade de existência do direito ao ressarcimento de alguns dos danos invocados pela demandante, abrindo assim caminho à viabilidade de um aprofundamento entre as partes da matéria controvertida, que poderia ajudar a um desfecho mais célere do processo e a contento de ambas.

 

Essa diligência acabou por se materializar em três sessões, não tendo as partes, a final, chegado a acordo para efeitos de formalização de transação que colocasse termo ao processo.

 

Tendo sido, no decurso das reuniões, reconhecida a dificuldade probatória em diversos dos artigos peticionados, o que levou o tribunal, ouvidas as partes, a concluir pela necessidade de recurso a prova pericial.

 

Não obstante a inexistência de acordo foram, ainda assim, alcançados alguns avanços numa perspetiva conciliatória e que permitem, conforme se passa a expor, encurtar a vertente litigiosa, por um lado, e melhor esclarecer o tribunal quanto à perspetiva reclamatória global da demandante, por outro.

 

Assim, no que toca ao encurtamento do âmbito do litígio, regista-se a aceitação pela demandada  dos valores peticionados nos artigos 16.º, 17.º, 21.º e 39.º da petição da demandante, perfazendo um valor total de € 3.472,56 (cfr. ata da reunião conciliatória de 05.12.2024, junta aos autos).

 

O que, no entender deste tribunal, e pela própria anuência transmitida nessa componente por parte da demandante, faz com que esse montante aceite pela demandada se constitua, como matéria assente a retirar dos temas de prova a apreciar, e com o resultado decisório vertido adiante na presente peça.

 

Por sua vez, da parte da demandante, verificou-se a disposição em reduzir o pedido, alterando a percentagem de lucros cessantes reclamados de 15% para 10%, e abdicando dos pontos peticionados para além dos acima indicados como aceites pele demandada, perfazendo um total de valor proposto para transação de € 71.332,56 (cfr. ata da reunião conciliatória de 05.12.2024, junta aos autos).

 

Ora, neste último aspeto, ainda que a posição final veiculada pela demandante tenha de ser entendida num pressuposto prévio de acordo global para o litígio (não podendo, por essa razão, constituir-se como matéria assente), o que não veio a verificar-se conforme supra aludido, o certo é que, não poderá ainda assim deixar de relevar para a boa decisão da causa no sentido de colocar perante o tribunal uma certa perspetiva de decaimento do valor total peticionado e por aquela percecionado.

 

III – Da prova

 

a)     Ponto prévio

 

Face à natureza da matéria controvertida e à tipologia da factualidade alegada, por via da qual a demandante procura demonstrar os montantes indemnizatórios reclamados, entende este tribunal, ouvidas que foram as partes e atentas as discussões havidas em sede de tentativa de conciliação, que a condução do processo e a presente decisão aqui prolatada, são adequada e suficientemente asseguradas com base na prova documental junta em sede de articulados, bem como no posterior relatório pericial elaborado pelo perito único designado e datado de 11.03.2025, o qual se encontra junto aos autos e aqui se dá como integralmente reproduzido por questão de economia processual.

 

Registando-se, quanto ao relatório pericial, que o mesmo cumpriu com o objetivo subjacente à sua determinação por parte do tribunal, contribuindo de forma organizada e esclarecedora para a formação da convicção do mesmo e para o resultado da decisão aqui proferida.

 

Dispensando-se, assim, outros meios de prova que se entende insuscetíveis de carrear elementos ao processo que acrescentassem esclarecimentos objetivos e fidedignos ao mesmo, tendo apenas como consequência, com forte juízo de probabilidade, a perturbação e maior morosidade do litígio, retardando-se desnecessariamente o desfecho do mesmo sem que daí adviesse melhor justiça.

 

O que, se revelaria contrário à lógica subjacente à opção pela via de um tribunal arbitral, o qual, por natureza, se constitui e rege de forma mais desburocratizada e célere face aos tribunais comuns.

 

Este entendimento, é legitimado pelo princípio da autonomia do tribunal na condução do processo e na determinação das regras aplicáveis (cfr. alínea b), do nº 1, do artigo 5.º do NRAA, conjugado com o nº 4 do seu artigo 18.º).

 

b)    Apreciação da prova

 

Com referência aos artigos peticionados pela demandante, e conforme o entendimento deste tribunal expresso no ponto prévio do presente capítulo, a apreciação da prova tendo em conta a matéria controvertida que releva e interessa à decisão, é feita nos termos que abaixo se indicam.

 

Sendo que, para além da apreciação dos artigos da petição inicial que aqui é produzida numa perspetiva estrita de: i) provado; ii) provado parcialmente; ou iii) não provado, existe ainda outra factualidade relevante materializada em diferentes artigos da petição inicial cuja apreciação, por questão de natureza, é vertida no capítulo IV (Do direito) da presente decisão, e que respeita aos custos reclamados pela demandante relacionados com um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado com advogado e com dois contratos de subempreitada (cfr. artigo 18.º e artigos 31.º a 38.º, todos da p.i.).

 

i)               Matéria assente

 

Artigos 16.º, 17.º, 21.º, 39.º, todos da petição inicial.

 

Este resultado decorre da aceitação por parte da demandada do peticionado pela demandante, em sede da reunião conciliatória realizada em 05.12.2024 (cfr. ata junta aos autos).

 

ii)             Factos não provados

 

Artigos 19.º, 20.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 29.º, 30.º, 45.º. 46.º, todos da petição inicial.

 

Este resultado assenta na convicção e entendimento do tribunal quanto à ausência total de prova ou manifesta insuficiência da mesma, que resulta da apreciação rigorosa da documentação probatória junta aos autos na p.i. da demandante, conforme amplamente fundamentado no relatório pericial para o qual aqui se remete e que é acompanhado por este mesmo tribunal.

 

Realçando-se a apreciação pericial que evidencia objetivamente, em muitos dos casos, a falta de prova no tocante à ligação/afetação dos custos alegados à empreitada em causa.

 

 

iii)           Factos provados parcialmente

 

Artigo 27.º, 28.º, 47.º, todos da petição inicial.

 

Este resultado, assenta no acompanhamento pelo tribunal da apreciação que é feita pelo perito único e para a qual aqui igualmente se remete, com a ressalva da nota inserida na apreciação infra dos danos emergentes (capítulo IV da presente decisão).

 

IV - Do direito

 

a)     Da questão prévia da anulabilidade do contrato de empreitada outorgado entre as partes

 

Resultando o presente litígio da decisão de anulação do ato de adjudicação do qual resultou a outorga entre as partes do contrato de empreitada de obra pública em discussão, não poderá deixar de se tecer um juízo de consideração quanto à aplicabilidade e efeitos, in casu, do regime de invalidade consequente de atos procedimentais inválidos, previsto no artigo 283.º do Código dos Contratos Públicos (“CCP”).

 

Com efeito, face ao teor do acórdão proferido pelo TCA Norte que confirmou a anulação da adjudicação efetuada pela demandada à demandante, determina o nº 2 do supracitado artigo 283.º do CCP, que daí resulta a anulabilidade do contrato celebrado na sequência dessa mesma adjudicação.

 

Mais, estipula ainda a mesma norma, que se deve demonstrar que o vício identificado é causa adequada e suficiente da invalidade do contrato, designadamente por implicar uma modificação subjetiva daquele ou uma alteração do seu conteúdo essencial.

 

Por sua vez, o nº 4 do mesmo artigo 283.º, determina que o efeito anulatório pode ser afastado por decisão judicial ou arbitral, quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício do ato procedimental em causa, a anulação do contrato se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.

 

Sendo que, em sede da reunião conciliatória realizada em 05.12.2024, e conforme consta da respetiva ata junta aos autos, colocadas as partes perante esta questão pelo próprio tribunal, foi admitido pela mandatária da demandada que, atendendo à celebração do compromisso arbitral e à sua delimitação, e considerando a boa-fé do Município ora demandado demonstrada ao longo do diferendo que tem vindo a desenrolar-se entre as partes, foi entendido poder haver lugar ao apuramento de algum valor indemnizatório a ser apurado judicialmente.

 

Tendo, ambas as partes, considerado que a questão prévia da anulabilidade do contrato de empreitada celebrado se encontraria prejudicada por via do compromisso arbitral subscrito, e, por essa mesma razão, ultrapassada.

 

Perante o entendimento e vontade das partes, considerados os interesses em presença e atentos os princípios da proporcionalidade, da boa-fé, e da justiça e razoabilidade, aplicáveis à atividade administrativa em geral, considerou (em sede conciliatória) e considera (em sede decisória) este tribunal que, in casu, se encontra afastado o efeito anulatório do contrato celebrado, na justa medida em que tal impossibilitasse a atribuição à entidade demandante do direito a qualquer quantia a título indemnizatório nos termos por aquela peticionados.

 

 

 

 

b)    Da legitimidade dos montantes reclamados

 

Como base legal para o reconhecimento ao direito indemnizatório reclamado pela demandante, esta invoca o nº 2 do artigo 283.º do CCP e o nº 2 do artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (cfr. artigo 11.º da p.i.).

 

Ora, em primeiro lugar, importa desde já afirmar que quanto à invocação do nº 2 do artigo 283.º do CCP, a mesma revela-se absolutamente ilegítima e inócua, na medida em que aquela norma versa a estatuição de um efeito anulatório dos contratos (matéria supra apreciada), não fixando nem regulando qualquer regime de responsabilidade e consequente obrigação de reparação ou de indemnização.

 

Feita esta primeira correção cabe, então, ater àqueles que sejam os fundamentos legais que, efetivamente, confiram o direito à demandante de se ver ressarcida por via dos efeitos negativos provocados na sua esfera jurídica e patrimonial como consequência da anulação da decisão de adjudicação que lhe havia sido dirigida, e consequente nova adjudicação a uma outra entidade.

 

Está em causa, segundo a demandante, uma componente de dano emergente que aquela sustenta e procura demonstrar por via de custos alegadamente sofridos com a sua apresentação a concurso e com a preparação da obra, bem como uma componente de lucro cessante assente no alegado benefício que a mesma deixou de obter pela não realização daquela mesma obra.

 

Neste enquadramento, e atento o objeto do litígio, afigura-se aplicável o regime estatuído no nº 2 do artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, conforme invocado pela demandante.

 

Porquanto, estipula aquela disposição legal, que é concedida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de acordo com os requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário.

 

Sendo que, por sua vez, o artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, refere-se, nomeadamente, à formação de contratos de empreitada de obras públicas.

 

Nessa medida, tendo a decisão do Tribunal Central Administrativo Norte supra mencionada confirmado o entendimento perfilhado em primeira instância quanto à violação dos artigos 361.º e 361.º-A, ambos do CCP, bem como quanto à violação do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 4.º do Programa do Procedimento, todos no âmbito do procedimento pré-contratual do qual resulta o presente litígio, dúvidas não restam de que se encontram verificados os pressupostos de aplicação do regime de indemnização estatuído no nº 2 do artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.

 

Não obstante, em bom rigor e sem prejuízo da aplicação in casu do regime supra citado, esta responsabilidade encerrar em si mesma uma vertente obrigacional (contratual), porquanto é originada na fase de formação do contrato.

 

Não se encontrando, por sua vez, no CCP, norma específica que regule o caso dos presentes autos, ainda assim o direito a uma indemnização atribuído aos operadores económicos que sejam parte na formação e na execução dos contratos públicos, encontra-se plasmado em situações sobre as quais se poderá efetuar um juízo de proximidade conceptual com o diferendo em apreciação, como sejam os casos do nº 4, do artigo 79.º (indemnização em virtude de decisão de não adjudicação), bem como dos artigos 334.º e 335.º (indemnização decorrente de resolução do contrato pelo contraente público), todos daquele código.

 

Sendo que, no caso do nº 2, do artigo 334.º do CCP (resolução por razões de interesse público), se estipula que o cocontratante tem direito a uma indemnização correspondente aos danos emergentes e aos lucros cessantes.

 

 

Focando-nos, então, no regime do nº 2 do artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, ou seja, aquele que no entendimento deste tribunal regula direta e objetivamente os casos em que o presente litígio se enquadra, importa ater aos requisitos e ao âmbito da determinação do direito e amplitude, do cariz indemnizatório a salvaguardar.

 

Começando pelo alcance da obrigação de indemnização (verificados que sejam, previamente, os requisitos de aplicação do regime da responsabilidade), no caso dos autos, o mesmo é desde logo determinado pelo estatuído no artigo 3.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, o qual transcreve o princípio geral da lei civil (artigos 562.º e seguintes do Código Civil).

 

Destacando-se o disposto no nº 3 do supracitado artigo 3.º, do qual decorre que a indemnização deve cobrir não só os danos já produzidos, bem como os danos futuros.

 

Dispondo, no mesmo sentido, o nº 1, do artigo 564.º do Código Civil, que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado (dano emergente), como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes),

 

Assim, dúvidas não restam, de que: i) a indemnização será fixada em dinheiro e ii) abrangerá quer os danos já produzidos, quer os danos futuros, nos termos gerais de direito, conforme nºs 2 e 3 do artigo 3.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.

 

Quanto aos requisitos de aplicação deste regime de responsabilidade, conforme consabido e assente doutrinariamente, e resultante, designadamente, do artigo 483.º do Código Civil, são pressupostos cumulativos para que a responsabilidade se verifique, os seguintes:

 

i)               A existência de um facto voluntário (por ação ou omissão) praticado pelo agente lesante

ii)             A ilicitude desse facto

iii)           A culpa do agente

iv)            O dano

v)             O nexo de causalidade entre o facto e o dano

 

Temos então, com interesse para a presente decisão, a constatação do seguinte para cada um dos requisitos supra:

 

i)               Decisão de adjudicação da obra, por deliberação tomada em reunião de Câmara de 02.12.2021 (facto voluntário praticado por ação da entidade demandada);

 

ii)             Decisão de adjudicação tomada em violação de disposições legais aplicáveis ao procedimento, a saber, artigos 361.º e 361.º-A, ambos do CCP, e alínea c) do nº 1 do artigo 4.º do Programa do Procedimento (ilicitude do facto)

 

iii)           A decisão de adjudicação foi tomada de forma livre e consciente, e é da exclusiva responsabilidade da demandada (culpa do agente)

 

iv)            As partes reconhecem a existência de danos na esfera da demandante (o dano)

 

v)             Os danos que sejam comprovados, resultam da anulação da decisão de adjudicação em virtude da ilicitude da mesma, por impossibilidade de execução do contrato pela demandante (nexo de causalidade entre o facto e o dano)

 

Aqui chegados, confirmada que está a verificação cumulativa de todos os requisitos obrigatórios para imputação do dever de indemnização, conclui-se pelo direito que assiste à demandante de se ver ressarcida pelos danos emergentes e pelos lucros cessantes reclamados, que se encontrem efetivamente demonstrados.

 

Nessa medida, sem prejuízo das considerações subsequentes em sede do regime da culpa do lesado, e atenta a apreciação da prova contida no capítulo III da presente decisão, consideram-se devidos os seguintes prejuízos:

 

i)               Danos emergentes

 

- Custos com garantia bancária, no valor de €1.155,28;

- Custos com a preparação de documentação para efeitos de apresentação da proposta, no valor de €317,28;

- Custos com o Plano de Segurança e Saúde da obra, no valor de €250,00;

- Custos com a montagem e desmontagem de tubos de queda, no valor de €1.750,00;

- Custos com transporte, entrega e aluguer de contentor em ... no mês de fevereiro de 2022, no valor de €381,30.

 

Valor total de danos emergentes devidos: €3.853,86.

 

(Nota: não se acompanha a possibilidade aventada no relatório pericial quanto a considerar o valor de €501,23 referente a painéis de vedação, porquanto o perito faz depender o pagamento desse montante da entrega à demandada de materiais de sinalização, o que configura uma realidade que extravasa os termos do peticionado e que não foi objeto de reconvenção pela demandada)

 

ii)             Lucros cessantes

 

De acordo com o relatório pericial junto aos autos, o perito único é perentório ao afirmar que não considera realista que a realização da empreitada pudesse vir a gerar um lucro de 15% do valor do contrato, conforme reclamado pela demandante.

 

Sendo que, em termos do percentual a aplicar, o perito estima como passível de ser obtida (ou seja, atendível) uma percentagem de 8% do valor dos trabalhos, considerando, contudo, para o cômputo desses mesmos trabalhos, apenas aqueles que se encontravam previstos executar no período indicado pelas partes em sede de compromisso arbitral, ou seja, entre 14.01.2022 (data de assinatura do contrato de empreitada) e 04.10.2022 (data do trânsito em julgado da decisão do TCA Norte), e não a totalidade dos trabalhos contratualmente previstos, conforme pretensão da demandante.

 

Decorrendo desse percentual, segundo os cálculos do perito, um valor de €29.486,35 correspondente aos lucros cessantes que aquele considera fundamentados para o período em causa.

 

Ora, nesta matéria, o tribunal considera que com a adjudicação e assinatura do contrato, se gerou automaticamente na esfera jurídica do empreiteiro, ora demandante, o direito pleno à execução da totalidade do seu objeto, independentemente de eventuais vicissitudes futuras condicionantes dessa mesma execução, nas quais se inclui a sua suspensão.

 

Assim se entende em virtude, desde logo, do dever que impende sobre os contraentes públicos de observância dos princípios da confiança e da responsabilidade, plasmados no artigo 1.º-A do CCP.

 

Princípios esses que encontram concretização material, por exemplo, no dever de adjudicação plasmado no artigo 76.º do CCP, do qual, no fundo, extrai a conclusão prática de que a adjudicação é uma obrigação e não uma “mera opção discricionária”.

 

Mas também em outros regimes muito rigorosos, como sejam, o regime das modificações objetivas do contrato (artigo 311.º e seguintes do CCP), ou ainda o regime da extinção do contrato (artigo 330º e seguintes do CCP).

 

Com efeito, resulta absolutamente evidente, que todos estes regimes revelam uma preocupação latente e muito vincada por parte do legislador no sentido de prevenir de forma abrangente quaisquer riscos de perturbação, interrupção ou impossibilidade definitiva de cumprir com o objetivo subjacente ao lançamento dos procedimentos pré-contratuais e à execução dos contratos.

 

Tudo, em ordem à melhor defesa e prossecução do interesse público, da forma mais justa e equilibrada possível com os interesses dos operadores económicos, seja enquanto interessados e proponentes aos procedimentos, seja enquanto cocontratantes.

 

Pelo que, em nosso entender, o facto de as partes terem circunscrito no compromisso arbitral o período a considerar para efeitos da apreciação dos danos eventualmente incorridos na esfera da demandante, ao espaço compreendido entre as datas de 14.01.2022 e 04.10.2022, não deve relevar para a componente de lucro cessante, na qual deve ser tido em consideração o valor total do contrato e não apenas o valor dos trabalhos previstos executar naquele intervalo de tempo.

 

Não se acompanhando, nesta componente, o entendimento perfilhado pelo perito único quanto à delimitação temporal em causa, ainda que se aceite, por razoável, o percentual proposto de 8%, mas a aplicar ao valor total do contrato, o que perfaz o valor de €54.288,07 (8% de 678.600,99).

 

Importa ainda, para esta componente de lucros cessantes, sublinhar o entendimento do tribunal no sentido de não concordar com o vertido nos artigos 99. a 101. da contestação apresentada pela demandada, porquanto a demandante, em sede de suspensão da obra, tinha toda a legitimidade em acatar os termos dessa mesma suspensão, não implicando uma não contestação ou impugnação do auto de suspensão uma qualquer espécie de renúncia à legítima expetativa de execução da obra.

 

Até porque, e desde logo, os motivos da suspensão eram “lisonjeiros”, no sentido em que não tinham a ver com condicionantes de natureza técnica ou de outro cariz com especial grau de complexidade, e não envolviam perigo iminente ou prejuízos graves para o interesse público (cfr. auto de suspensão junto aos autos).

 

O que sempre permitiria ajuizar por parte da demandante uma probabilidade razoável de levantamento da suspensão da execução da obra, de molde a não impedir o resultado visado com o contrato, e a consequente manutenção do seu interesse na execução do mesmo, afastando a vontade de exercer o direito (e não obrigação) à sua resolução.

 

Pelo que, não se concorda que a demandante tenha dado causa à perda de chance, conforme alegado pela demandada.

 

iii)           Outros custos excluídos

 

Por sua vez, para além dos danos que constam dos artigos da p.i. dados como não provados nos termos supra explanados na presente decisão, considera-se excluído do cômputo indemnizatório a fixar a final, as seguintes componentes de prejuízos alegados:

 

- Contrato com advogado

 

Nesta componente de custos reclamada pela demandante no artigo 18.º da sua p.i., o tribunal começa por valorizar o entendimento da demandada vertido no artigo 25. da sua contestação, no sentido de considerar que, em abstrato e numa perspetiva doutrinária, as despesas com honorários de advogado e taxas de justiça pagas só podem ser compensadas através de custas de parte nos termos previstos no CPC e no Regulamento das Custas Processuais, conforme Acórdão do STA mencionado no mesmo artigo 18.º da p.i. e para o qual aqui se remete.

 

Em concreto e a montante, sempre se dirá que este tipo de custos representa uma componente de risco expectável no âmbito de qualquer procedimento de contratação pública, e que por isso se deverá “acomodar” numa certa previsão de custos de contexto a considerar pelos operadores económicos aquando da sua participação nos procedimentos de formação dos contratos e na execução dos mesmos.

 

Ademais, e sem conceder, regista-se que nos termos da cláusula 2.ª do contrato de avença para prestação de serviços de assessoria jurídica junto com a p.i., o mesmo não integra no seu âmbito a prática de atos jurídicos junto dos tribunais, nomeadamente a representação jurídica em quaisquer ações e por quaisquer conflitos entre a demandante e a demandada.

 

Razões pelas quais, se rejeita liminarmente, na íntegra e a qualquer título, o valor peticionado neste alegado dano.

 

- Contratos de subempreitada

 

Conforme alegado no artigo 70. da contestação da demandada e confirmado na mesma linha pelo relatório pericial (cfr. parte final da sua pág. 2), a demandante não faz prova de ter comunicado à demandada a assunção de compromissos contratuais com terceiros, tendo por objeto a subcontratação de trabalhos integrantes da obra adjudicada (nem, muito menos, demonstra ter promovido qualquer pedido de autorização).

 

Encontra-se, assim, claramente violado o dever de comunicação previsto no nº 3, do artigo 385.º do CCP, o que faz com que as subcontratações promovidas pela demandante, enquanto empreiteiro, não possam ser conhecidas da demandada, na qualidade de dono da obra, tornando as mesmas inexistentes e ineficazes perante esta, para todos e quaisquer efeitos legais que se pretenda imputar ou reclamar junto da mesma.

 

Razão pela qual, e sem necessidade de formular outro tipo de considerações quanto aos contornos objetivos e subjetivos relacionados com os contratos de subempreitada juntos aos autos, os custos peticionados pela demandante sobre esta componente, conforme descritivo dos artigos 31.º a 38.º da sua p.i., não podem ser aceites por este tribunal.

 

 

 

 

c)     Da culpa do lesado

 

Nos termos do disposto no artigo 4.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, já sobejamente aqui citado e decisivo na definição do direito a atribuir, e passamos a citar “Quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”.

 

Ora, relembrando o evento que dá causa ao presente litígio, ou seja, a decisão de adjudicação tomada em violação de disposições legais aplicáveis ao procedimento, a saber, artigos 361.º e 361.º-A, ambos do CCP, e alínea c) do nº 1 do artigo 4.º do Programa do Procedimento, vamos encontrar precisamente os termos em que se revela, in casu, um comportamento culposo por parta da demandante que concorreu para a produção dos danos pela mesma reclamados e demonstrados.

 

Com efeito, ao não ter respeitado, em sede de proposta, os precisos termos em que deveria ter elaborado e apresentado o seu plano de trabalhos para a obra, omitindo nesse documento elementos essenciais para a execução, acompanhamento e fiscalização da mesma, nos termos amplamente mencionados e apreciados em sede das decisões judiciais que antecederam o presente processo, a demandante, então na qualidade de proponente, incorreu numa atuação livre e consciente de teor ilícito.

 

Atuação essa que, num juízo de forte probabilidade que a demandante não podia desconhecer nem ignorar, e que tinha obrigação de antecipar, poderia implicar uma apreciação por parte do júri do procedimento no sentido de submeter ao órgão competente para a decisão de contratar uma proposta de exclusão da proposta apresentada no procedimento por parte dessa mesma demandante.

 

Para o que, e agravando a atuação da demandante, releva ainda o facto de as omissões ou incompletudes identificadas no seu plano de trabalhos, não poderem ser supridas por via do pedido de esclarecimentos aos concorrentes previsto no nº 1 do artigo 72.º do CCP, conforme esclarece o acórdão do STA, de 14-06-2018, processo nº 0395/18, mencionado na pag. 35 do acórdão do TCA Norte invocado nos presentes autos.

 

Isto é, o ato de adjudicação judicialmente qualificado como ilícito, resulta de um entendimento assumido pelo órgão competente para a decisão de contratar que é “inquinado”, na justa medida em que traz para a decisão uma factualidade da inteira responsabilidade da demandante, enquanto proponente, consubstanciada no modo desconforme como esta elaborou o plano de trabalhos apresentado.

 

Podendo concluir-se que, não fora a apresentação irregular do plano de trabalhos por parte da demandante, e a decisão de adjudicação àquela, tomada pela demandada, nunca teria sido considerada ilícita com base em tal facto, independentemente do dever que assistia ao júri do procedimento no sentido de procurar evitar essa mesma adjudicação por via da submissão ao órgão competente de proposta de exclusão.

 

O que resulta, na prática e no entender deste tribunal, num concurso de culpas sobre o ato ilícito praticado, ou seja, a decisão de adjudicação que não deveria ter ocorrido, a repartir entre a demandada e a demandante, porquanto ambas contribuíram para tal.

 

Quanto à demandada, em virtude de não ter decidido excluir a proposta da demandante, conforme deveria ter feito em cumprimento das normas procedimentais e imperativas aplicáveis e, em sentido totalmente oposto, ter adjudicado a mesma.

 

Quanto à demandante, em virtude dos termos irregulares em que consciente e indesculpavelmente elaborou o plano de trabalhos em sede de proposta (e cujas consequências não poderia ignorar), e que levou à ilicitude do ato de adjudicação.

 

Assim sendo, e nos termos da parte final do supracitado artigo 4.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, cabe a este tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

 

Feita essa apreciação, entende o tribunal que a maior percentagem de culpa recai sobre a demandada, porquanto é a esta a quem compete assegurar, em primeira instância, e enquanto entidade adjudicante, a legalidade do procedimento de formação do contrato, na defesa que se quer segura e intransigente do interesse público subjacente ao mesmo.

 

Recaindo sobre a demandante uma menor percentagem de culpa, mas ainda assim em expressão suficiente para fazer reduzir consideravelmente o cômputo do valor da indemnização a fixar, atenta a relevância da irregularidade da sua atuação.

 

Considerando-se, assim, com base nos critérios identificados na lei e num juízo de justa ponderação e de equidade, que o cômputo indemnizatório a atribuir deverá ser reduzido no percentual de 40%, face ao valor total alcançado.

 

Termos em que, se apresenta o enquadramento indemnizatório na seguinte base de cálculo:

 

Danos emergentes: ………………€3.853,86

Lucros cessantes: ………………. €54.288,07

Total dos danos a indemnizar: …. €58.141,93

 

Subtraindo ao total identificado o percentual de 40%, encontra-se o cômputo indemnizatório a considerar a final, no montante de €34.885,15.

 

 

V - Decisão

 

Tudo compulsado, condena-se a entidade demandada (Município de A...) ao pagamento à entidade demandante (B..., Lda.) da quantia total de €34.885,15 (trinta e quatro mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e quinze cêntimos).

 

 

Custas pelas partes, incluindo os encargos decorrentes da designação de perito, na respetiva proporção do vencimento e decaimento da ação, cabendo à demandante suportar 82% e à demandada 18%, respetivamente, do montante total das custas que forem apuradas (nº 6 do artigo 29.º do NRAA).

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 17 de março, de 2025

 

 

O árbitro

 

 

(Jorge Castilho Dores)