Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 11/2014-A
Data da decisão: 2015-03-09  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 221.972,92
Tema: Reposição de vencimentos – Restituição de retribuições
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

 

  1. Em 3 de Julho de 2014, os Demandantes,

 

A…, NIF …, residente na …;

B…, NIF …, residente na …;

C…, NIF …, residente na …;

D…, NIF …, residente no …;

E…, NIF …, residente na …;

F…, NIF …, residente na …;

G…, NIF …, residente na …;

H…, NIF …, residente na …;

I…, NIF …, residente na …;

J…, NIF …, residente na …;

K…, NIF …, residente na …;

L…, NIF …, residente na …;

 

apresentaram petição inicial nos termos do artigo 15.º do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante, Regulamento do CAAD) contra o Demandado,

 

M…, I.P. (doravante, “M…, I.P.), com sede na ….

 

  1. Nesse articulado, peticionaram os Demandantes:

a. A anulação ou a declaração de nulidade do despacho do Vice-Presidente do M…, I.P. que determinou:

  1. Que os vencimentos dos Demandantes fossem processados em montantes abaixo dos auferidos, processamento a efectivar a partir do mês de Novembro de 2012;
  2. Que fosse restituído o equivalente aos últimos cinco anos de retribuições alegadamente recebidas de modo indevido.

b. A condenação do Demandado na devolução de todos os descontos feitos aos Demandantes “desde Novembro de 2012, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde as datas em que os mesmos foram efectuados”.

 

  1. Os Demandantes imputam os seguintes vícios ao acto impugnado:
  1. O acto é viciado de incompetência em razão de atribuições;
  2. O acto configura um confisco;
  3. O acto viola normas sobre a prescrição de créditos laborais, relativamente à Demandante K…;
  4. O acto viola o artigo 219.º do RCTFP;
  5. O acto viola o artigo 141.º CPA;
  6. O acto enferma de erro sobre os pressupostos de facto na reconstituição da situação fiscal dos Demandantes;
  7. O acto viola as normas enunciadas nos artigos 52.º, 53.º, n.º 5, 54.º, n.º 5, 59.º, n.º 3, 61.º e 63.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro e das normas das Portarias n.º 940/99 e 942/99, de 27 de Outubro e do artigo 4.º da Portaria n.º 1448/2001.

 

  1. Devidamente citado o Demandado, nos termos do artigo 16.º do Regulamento do CAAD, veio este apresentar contestação, pugnando pela improcedência de todos os pedidos dos Demandantes.

 

  1. Nos termos do Regulamento do CAAD, foi o signatário designado como Árbitro para o processo, considerando-se o Tribunal Arbitral constituído, após aceitação do referido árbitro, em 24 de Setembro de 2014.

 

  1. Saneamento do Processo

 

O Tribunal é competente. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas. Não existem nulidades. O Demandado deduziu excepção de caso julgado e de inimpugnabilidade de acto meramente confirmativo, nos termos e para os efeitos do artigo 89.º, n.º 1, alínea i) e alínea c) do CPTA, respectivamente. Tratando-se de excepções materiais que pressupõem a apreciação factual, serão analisadas infra em IV.A.

 

Os Demandantes requereram prova pericial para prova do alegado no artigo 119.º da petição inicial, cujo teor é o seguinte: “partindo das notas de receitas e encargos mensais de Janeiro a Outubro de 2001, da extinta …, do quadro de funcionários ali existente e, ainda, dos vencimentos de categoria dos diferentes funcionários, verifica-se que os valores que foram pagos aos aqui Autores estão correctos, estando incorrectos os cálculos efectuados na Informação que fundamenta o acto impugnado.” O Demandado pugnou pelo indeferimento do requerimento, “considerando todo o exposto no presente processo e o facto de tal matéria não ter sido refutada pelos AA. anteriormente”.

 

Por despacho de 1.10.2014, foram os Demandantes convidados a esclarecer, nos termos do referido despacho, o âmbito da perícia requerida, concretamente quais as questões de facto que integram o seu objecto (artigo 14.º, n.º 5, do Regulamento de Arbitragem do CAAD). Os Demandantes vieram posteriormente, por requerimento de 10.10.2014, a desistir da perícia requerida.

 

Por despacho de 1.10.2014, as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre projecto de dispensa de audiência. Ambas as partes prescindiram da produção de qualquer prova a acrescer à prova documental.

 

III. Dos factos

 

Analisados os articulados, bem como os documentos juntos e demais elementos probatórios do processo, é convicção deste Tribunal Arbitral deverem ser considerados provados e não provados, com interesse para o processo, os seguintes factos:

 

(i) Factos dados como provados

 

  1. Os Demandantes, com excepção da Autora K…, entretanto aposentada, estão vinculados ao Réu por contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.
  2. A Demandante K… foi aposentada por Aviso publicado pela Caixa Geral das Aposentações, I.P., no Diário da República, II Série, n.º …, de .. de Maio de 2011.
  3. A Demandante K… aposentou-se no dia 1 de Junho de 2011.
  4. Os Demandantes estiveram providos no quadro da, entretanto extinta, ….
  5. Uma trabalhadora, integrada nos quadros de uma …, apresentou um pedido de apreciação relativamente ao montante da participação … por esta então auferida, como consequência do despacho do Exmo. Vice-Presidente do M..., I.P., de 22.03.2012.
  6. Em razão do pedido de apreciação, foi requerida pelo Demandado a conferência das participações … auferidas por todos os trabalhadores, entre os quais os Demandantes, pertencentes ao quadro de pessoal da referida ….
  7. Efectuada a conferência das participações …, foi elaborada Informação que mereceu despacho de concordância do Vice-Presidente do M..., I.P., de 29 de Agosto de 2012.
  8. Dessa Informação resulta a obrigação de reposição do excesso de participações indevidamente auferido por alguns trabalhadores, entre os quais os Demandantes.
  9. Os Demandantes, assim como os restantes trabalhadores, em resultado da conferência referida, foram notificados do Ofício n.º …/….2012, Ref.ª …, e da Informação a que foi aposto o despacho de “Concordo” do Exmo. Vice-Presidente do M..., I.P., de 25 de Agosto de 2012.
  10. A referida Informação foi notificada aos interessados, para efeitos de exercício do direito de audiência prévia.
  11. Em 24 de Setembro de 2012, os Demandantes exerceram, neste âmbito, o referido direito de audiência prévia.
  12. O requerimento de audiência prévia foi objecto da Informação de 5 de Novembro de 2012, sobre a qual foi aposto o despacho de “Concordo” do Exmo. Presidente do M..., I.P..
  13. Em 12 de Novembro de 2012, os Demandantes foram notificados da decisão final do procedimento então em curso, através do Ofício n.º …/...2012 (Proc. n.º …).
  14. Do teor do ofício em apreço – uma comunicação remetida pelo Demandado à Exma. Directora da …, a fim de que esta notificasse cada um dos aqui Demandantes – resulta ainda a solicitação “...que no próximo processamento de vencimentos que venha a ser realizado por este serviço, sejam já observados os valores que resultam do acto ora comunicado”.
  15. E, bem assim, “...e no que se refere aos trabalhadores que tenham verbas a repor, informa-se que nesta data se procedeu à comunicação desses valores ao Departamento Financeiro deste Instituto, o qual, após dedução dos descontos que tenham sido pagos, promoverá a liquidação do remanescente por meio de emissão de guia”.
  16. Em 26 de Novembro de 2012, os Demandantes submeteram à apreciação do CAAD um procedimento cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo (Proc. n.º 68/2012).
  17. Na mesma data, os Demandantes apresentaram um pedido de constituição de Tribunal Arbitral (que deu origem ao Proc. n.º 67/2012), no âmbito do qual os Demandantes requereram a impugnação do acto administrativo ínsito no Ofício n.º …/….2012.
  18. Em 18 de Dezembro de 2012, o pedido cautelar foi julgado totalmente improcedente.
  19. Em 11 de Junho de 2013, a acção principal foi julgada procedente com a anulação do acto administrativo impugnado, por padecer de vício de insuficiência de fundamentação.
  20. Foi elaborada uma informação que obteve despacho de concordância do Vice-Presidente do Conselho Diretivo, em 2 de Outubro de 2013, visando reconstituir a situação que existiria se o acto não tivesse sido anulado por falta ou insuficiência de fundamentação, retomando-se o procedimento na fase de elaboração do projecto de decisão.
  21. Nos termos dessa informação, os Demandantes teriam recebido retribuições a mais, devendo repor as seguintes quantias:
  1. A…: 32.101,00 €;
  2. B…: 23.168,56 €;
  1. C…: 23.147,83 €;
  2. D…: 20.537,56 €;
  3. E…: 13.095,75 €;
  4. F…: 6.496,14 €;
  5. G…: 20.515,30 €;
  6. H…: 13.024,02€;
  7. I…: 13.085,04 €;
  8. J…: 13.078,43 €;
  9. K…: 23.147,83 €;
  10. L…: 20.575,46 €;
  1. O projecto de decisão foi notificado aos Demandantes, de modo a que estes pudessem exercer o direito de audiência prévia.
  2. Os Demandantes não se pronunciaram em sede de audiência prévia.
  3. Em 25 de Março de 2014 foi proferida, por despacho, decisão final – Ofício n.º …/….2013, Proc. n.º ….
  4. A 3 de Julho de 2014, os Demandantes submeteram à apreciação do CAAD um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, que deu origem ao presente processo, através do qual requereram a impugnação do acto administrativo – decisão final notificada pelo Ofício n.º …/….2013.
  5. Os Demandantes peticionaram que o Demandado fosse condenado a devolver os descontos supostamente efectuados aos Demandantes desde Novembro de 2012, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde as datas em que os mesmos foram efectuados.

 

(ii) Factos dados como não provados

 

  1. O Demandado praticou o acto e encontra-se já a executá-lo (artigo 70.º da p.i.).
  2. O Demandado está a compensar a remuneração em dívida com créditos que tem sobre os trabalhadores (artigo 83.º da p.i.).

 

(iia) Fundamentação

 

O Demandado não se encontra a abater ao vencimento auferido pelos Demandantes as quantias alegadamente recebidas a mais. Ao invés, o Demandado encontra-se, outrossim, a processar os vencimentos no montante que entende correctos – cfr. infra –, mas sem realizar quaisquer abatimentos ao vencimento auferido pelos Demandantes: a reposição dos montantes alegadamente recebidos a mais ocorre por guia de reposição enviada pelo Demandado para o Serviço de Finanças competente e, por sua vez, notificada, por este último, aos Demandantes (cfr. doc. n.º 1 junto com a oposição do Demandado e notificações de reposição juntas pelos Demandantes com o seu requerimento inicial nos autos de procedimento cautelar n.º 11/2014-A).

 

 

Todos os demais factos articulados pelas partes foram considerados não provados, conclusivos, especulativos ou desprovidos de interesse para a causa em concreto.

 

IV. Do Direito

 

IV.A Das excepções

 

Como referido supra, o Demandado deduziu excepção de caso julgado e de inimpugnabilidade de acto meramente confirmativo, nos termos e para os efeitos do artigo 89.º, n.º 1, alínea i) e alínea c) do CPTA. Sustenta o Demandado o seguinte:

- “Requerem os AA., ao Tribunal Arbitral, que seja «(…) declarado nulo ou anulado o acto impugnado, com as legais consequências», consistindo esse ato na decisão final proferida em 24 de Março de 2014 pelo Vice-Presidente do Conselho Directivo deste instituto, no âmbito do processo n.º ….

- O acto em crise adveio da execução da sentença proferida no âmbito do processo n.º 67/2012, que correu termos no CAAD.

- Em 11 de Junho de 2013, foi prolatada sentença pela qual se julgou procedente o pedido de anulação da decisão proferida, em 6 de Novembro de 2012, pelo Presidente do Conselho Directivo do M..., I.P., por falta ou insuficiência de fundamentação.

- O meio processual legalmente previsto para atacar a falta de execução de sentença ou a desconformidade da atuação da Administração Pública perante uma decisão judicial proferida é o processo de execução de sentença (vide art.ºs 173.º e ss do CPTA).

- Uma nova acção só pode ser intentada se não houver identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, ou seja, se os motivos que fundamentam o novo pedido não forem idênticos aos que tiverem sido alegados noutra acção já transitada em julgado.

- De outro modo verifica-se a ofensa de caso julgado.

- No caso sub judice basta reparar na argumentação expendida pelos ora AA. para se concluir que são repetidos os mesmos argumentos já aduzidos na atrás mencionada acção n.º 67/2012.

- Na presente acção verifica-se a ofensa de caso julgado e o caso julgado configura um fundamento que obsta ao prosseguimento do processo.

- Ainda que assim não se entenda (...) o ato sob impugnação consubstancia-se num ato meramente confirmativo daqueloutro anulado no proc. n.º 67/2012, apenas expurgado do vício de falta ou insuficiência de fundamentação.

- É inequívoco que há identidade de lesão entre a anterior decisão (anulada) e a nova decisão ora impugnada, pois os efeitos decorrentes de ambos são precisamente os mesmos.

- Esta circunstância ressalta também do facto de os demandantes invocarem os mesmos argumentos explanados na indicada acção n.º 67/2012, acrescentando outros que poderiam igualmente ter sido aduzidos nessa acção já julgada, sendo que, no processo agora em causa, não são apontados em concreto, pelos AA., quaisquer (novos) vícios respeitantes ao próprio conteúdo da decisão.”

 

Vieram os Demandantes responder à excepção, alegando o seguinte:

- “Através da sentença arbitral referida no artigo 13.º da petição inicial foi o acto ali impugnado expurgado da ordem jurídica por vício de forma consistente na falta ou insuficiência de fundamentação.

- Em consequência, em execução do mesmo, foi praticado novo acto, fundamentado.

- Pese embora alguns elementos do novo acto poderem já existir no acto anterior trata-se de um novo acto e não do acto que foi, repare-se, expurgado da ordem jurídica.

- Não existe ofensa de caso julgado. Tal só existiria se o Demandado - e não os Demandantes - ao praticar o novo acto tivesse persistido no mesmo vício que causou a anulação pretérita – cf. artigo 133.º, n.º 2, alínea h) do CPA.

- Tampouco o acto em apreço é confirmativo do primeiro, na medida em que o carácter confirmativo supõe a existência jurídica de dois actos, o confirmado e o confirmativo.

- O acto supostamente confirmado não existe, porquanto foi expurgado da ordem jurídica pela sentença arbitral”.

 

Cumpre decidir.

 

1. Da Excepção de caso julgado

 

Não está em causa, ao contrário do alegado pelos Demandantes, a invalidade do acto administrativo impugnado em acção principal com fundamento no disposto no artigo 133.º, n.º 2, alínea h) do Código do Procedimento Administrativo (doravante, “CPA”)questão distinta que respeita à violação pelo acto administrativo dos limites do caso julgado , mas sim a excepção (processual) de caso julgado material. É esta a excepção deduzida pelo Demandado.

 

A função negativa do caso julgado é exercida através da excepção de caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas, exigindo a tríplice identidade a que se reporta o art.º 581.º do CPC: “visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”.[1]

 

Verifica-se, portanto, a excepção de caso julgado (material) quando, por um lado, se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir e quando, por outro lado, essa repetição de causas se verifica depois de a primeira ter sido decidida por sentença (in casu, decisão arbitral) que já não admite recurso ordinário. Existe identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas em ambas as acções, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. Há identidade de pedido quando, numa e noutra causa, se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Por último, existe identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. [2]

 

Compulsados os autos, constata-se que as partes em ambos os processos são idênticas. Relativamente ao pedido formulado no processo n.º 67/2012 foi requerido pelos ora Demandantes que fosse declarada “a invalidade do ato impugnado (despacho do presidente do M..., IP, de 6-11-2012) e anulando-se o mesmo (…) ou que o ato seja declarado nulo.” [3] No presente processo, os Demandantes requereram (i) a anulação ou a declaração de nulidade do despacho do Vice-Presidente do M..., I.P. que determinou que os vencimentos dos Demandantes fossem processados em montantes abaixo dos auferidos, processamento a efectivar a partir do mês de Novembro de 2012 e que fosse restituído o equivalente aos últimos cinco anos de retribuições alegadamente recebidas de modo indevido, bem como a (ii) a condenação do Demandado na devolução de todos os descontos feitos aos Demandantes “desde Novembro de 2012, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde as datas em que os mesmos foram efectuados”.

 

Muito embora a pretensão dos Demandantes seja idêntica, o acto administrativo, objecto da presente acção, reporta-se a uma decisão distinta da compreendida no acto que foi anulado com base em vícios formais, no âmbito do processo n.º 67/2012. Acresce que o âmbito do caso julgado material, por outro lado, apenas respeita aos concretos termos da decisão arbitral pretérita, nomeadamente aos vícios formais que foram assacados ao acto impugnado. Qualquer outro entendimento pressuporia que uma decisão arbitral a respeito de vícios formais e, ou, procedimentais, significaria, qua tale, uma chancela de validade do acto anulado quanto aos demais pressupostos (i.e., competenciais e substanciais). Não é o caso, não se colocando a questão de contradição de julgados.

 

Pelo exposto, decide-se pela improcedência da excepção de caso julgado material.

 

2. Da inimpugnabilidade de acto meramente confirmativo

 

Os actos confirmativos são aqueles actos cujo efeito se resume à reafirmação da estatuição de um acto administrativo anterior, tendo em vista a mesma situação nele regulada, e pelos mesmos motivos de facto e de direito, sem nada lhe acrescentar. Nos termos seguidos pela jurisprudência, são requisitos do acto confirmativo a (i) identidade da resolução dada ao caso concreto, a (ii) identidade da fundamentação da decisão, a (iii) identidade das circunstâncias ou dos pressupostos da decisão e a (iv) identidade da disciplina jurídica vigente à data da prática dos actos.[4]

 

Dentro desta categoria de actos confirmativos, são tidos por inimpugnáveis os actos meramente confirmativos (uma categoria menor do que a anterior, portanto): estes últimos reportam-se a actos confirmados que já eram contenciosamente impugnáveis e em relação aos quais a confirmação pelo acto subsequente nada acrescenta, nem em termos de nova autoria, nem em termos de força jurídica, não se justificando, por esse motivo, uma oportunidade para nova reacção contenciosa. Serão, contudo, impugnáveis os actos administrativos confirmativos do mesmo conteúdo ou efeito de um acto anterior “mas com outra fundamentação”, podendo ser impugnados por “ilegalidade dessa fundamentação, nos seus pressupostos materiais e nos seus requisitos formais”.[5]

 

A natureza meramente confirmativa do acto administrativo pressupõe, para efeitos da sua inimpugnabilidade, que ambos os actos, confirmativo e confirmado, vigorem no ordenamento jurídico, produzindo efeitos. Ora, tal não sucede no caso vertente: o acto anterior foi anulado, com desintegração ex tunc dos respectivos efeitos. Basta, portanto, o referido para que se conclua pela improcedência do argumento do acto meramente confirmativo. É que, para além de o acto supostamente confirmado ter sido expurgado da ordem jurídica, como argumentam os Demandantes, as fundamentações dos actos agora contrapostos são necessariamente distintas. A procedência do argumento da inimpugnabilidade levaria à impossibilidade de impugnar, com fundamento em vícios substanciais – em manifesto prejuízo da tutela jurisdicional efectiva – actos administrativos praticados na sequência de execução de sentença em que o Tribunal houvesse, por algum motivo, anulado o acto apenas com fundamento em vício de falta de fundamentação (cfr. artigo 124.º do CPA).

 

Pelo exposto, decide-se pela improcedência da excepção de inimpugnabilidade de acto meramente confirmativo.

 

IV.B – Do mérito da causa

 

Os Demandantes impugnam, como referido supra, a legalidade do despacho do Vice-Presidente do M..., I.P. que determinou (i) que os vencimentos dos Demandantes fossem processados em montantes abaixo dos auferidos, processamento a efectivar a partir do mês de Novembro de 2012 e (ii) que fosse restituído o equivalente aos últimos cinco anos de retribuições alegadamente recebidas de modo indevido. O despacho impugnado compreende, portanto, um acto plural, especificativo dos destinatários e da situação em que estes se encontram, correspondente a tantos actos administrativos (individuais) quantos os destinatários identificáveis.[6] Para tanto, imputam aos actos os vícios cuja procedência se analisa de seguida.

 

  1. Vício de incompetência em razão de atribuições.

 

Sem prejuízo da invocação conjunta com o confisco (do qual é analiticamente distinto), o primeiro vício invocado pelos Demandantes, ao despacho impugnado, é o da incompetência em razão das atribuições. Alegam os Demandantes que “o sujeito passivo da tributação … é o utente, independentemente da sua natureza jurídica”, de onde concluem que “sendo os vencimentos dos … e demais … retirados, na parte relativa à participação … – que é o que está em causa nos presentes autos – do que é pago pelos utentes, líquido é que nem o M..., IP, nem sequer o Estado Português contribuíram com um cêntimo que fosse para tal receita” (cfr. artigo 44 da petição inicial).

 

Nesta sequência, argumentam os Demandantes que “nos termos do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29/12, era o Cofre … que assumia a responsabilidade solidária que ao Estado coubesse por danos que os funcionários …. causassem a terceiros no exercício das suas funções e que o direito de regresso contra estes só poderia ser exercido pelo Cofre representado pelo Ministério Público(cfr. artigo 45.º da petição inicial). Da sucessão legal do Cofre …. pelo N... (posteriormente, …) retiram os Demandantes que o(s) acto(s) que ordena(m) a reposição de montantes alegadamente percebidos a mais consubstancia(m) uma intromissão, por parte do M..., I.P., nas atribuições do N…, I.P., determinante da sua nulidade.

 

As participações … que se discutem nos presentes autos consubstanciam uma parte da remuneração base dos … e …. A remuneração base é a contrapartida pecuniária devida aos funcionários públicos e aos agentes administrativos pela ocupação de um dado lugar na hierarquia de um serviço público, sendo composta pela (i) remuneração de categoria (i.e., a remuneração devida pelo lugar ocupado na hierarquia de um serviço público) e pela (ii) remuneração de exercício (i.e., a remuneração pelo exercício efectivo das funções próprias de uma dada categoria).

 

O artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro espelha essa dicotomia entre vencimento de categoria e vencimento de exercício, dispondo que “o vencimento dos …. e … é constituído por uma parte fixa ou ordenado e pela participação no rendimento … da respectiva repartição”. Por sua vez, já quanto à remuneração de exercício, enuncia-se no artigo 54.º, n.º 5 do mesmo diploma que “a participação … corresponde ao vencimento de exercício e só é de abonar nos casos em que a este haja direito”, sendo calculada, nos termos do artigo 54.º, n.º 2, “pela aplicação das seguintes percentagens sobre a receita mensal líquida (…). Também no artigo 61.º, n.º 4 do mesmo diploma, reportado à participação … de … e …, se refere que “a participação … é considerada, para todos os efeitos, vencimento de exercício”.

 

Usando de lugares paralelos de direito privado – apenas na medida da semelhança relevante – pode pensar-se nos regimes das gratificações e das comissões. Em primeiro lugar, é evidente que a participação …. não se reporta a uma gratificação, dado que esta última se reporta tão-somente a uma liberalidade (cfr. artigo 260.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho). Em segundo lugar, o regime legal de retribuição variável das comissões – mais assemelhado à componente variável da remuneração base onde se compreendem as participações … – é claro na sua qualificação como remuneração, como se pode ver no artigo 261.º do Código do Trabalho. Por exemplo, o montante relativo às comissões de venda, com respeito a trabalhadores que exerçam essas funções (componente variável da retribuição), é inicialmente suportado pelos consumidores, mas tal não significa, de todo, uma desconsideração da entidade empregadora no processamento dos vencimentos (que têm em conta o percentual das vendas realizadas), nem tão pouco significa que quem paga as comissões são os consumidores. Tem neste ponto razão o Demandando quando refere que, a ser assim, se trataria de uma espécie de regime de honorários, inaudito no funcionalismo público.

 

Fica, também, por demonstrar o nexo, estabelecido pelos Demandantes, entre, de um lado, a responsabilidade solidária assumida pelo Cofre …., por danos que os funcionários dos … e … causassem a terceiros – no enquadramento, portanto, da responsabilidade extra-contratual –, bem como o exercício do inerente direito de regresso e, do outro, a competência, devidamente enquadrada por normas de atribuições, para determinar a reposição de montantes alegadamente devidos pelos funcionários.

 

A invocação do vício de incompetência absoluta pelos Demandantes surge, ademais, sem indicação concreta da norma de atribuições do N..., I.P. disposta no artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 206/2006, de 27/10 onde se verifica a invocada intromissão: daí não resulta qualquer competência, explícita ou implicitamente deduzida das referidas atribuições, que impute a órgãos do N..., I.P. a competência para a prática do acto posto em crise. Esta alegada intromissão, como se constata a partir da análise do referido enunciado, não se verifica, aliás, em relação a nenhuma das atribuições que aí são elencadas.

 

Sendo claro que são questões distintas, a da qualificação das participações …. como remuneração e a da origem da quantia pecuniária em que as mesmas se consubstanciam, também é claro que o que se discute a respeito de uma eventual incompetência absoluta do acto, impugnado pelos Demandantes, é a competência para a prática de acto administrativo a determinar a reposição das quantias alegadamente recebidas de modo indevido. E não, por esse motivo, o modo de cálculo dessas quantias, a sua proveniência da receita …. líquida mensalmente apurada da … ou o facto de essa receita resultar de emolumentos pagos pelos utentes (artigos 54.º e 61.º da LOSRN e Portarias n.º 940/99, 942/99 e n.º 1448/2001).

 

É, também, para este caso irrelevante se os Demandantes se contradizem – como refere o Demandado – quando alegam que as verbas cuja reposição se pretende obter “(…) nunca (…) saíram dos cofres do Estado”, na defesa da tese que as verbas cuja reposição se discute foram pagas pelos utentes, e quando alegam que a ordem de reposição das quantias percebidas a título de participação … constitui atribuição do …. e não do M..., I.P. (cfr. artigos 21.º e 53.º da petição inicial e artigo 52.º da contestação). O que releva é estritamente a matéria de direito, i.e., o apuramento de uma norma de competência, in casu, para determinar a reposição dos montantes alegadamente percebidos a mais.

 

No artigo 36.º do RAFE (Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, na redacção conferida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), aplicável ao caso dos presentes autos, dispõe-se o seguinte:

 

“Artigo 36.º   

Formas de reposição

1 – A reposição de dinheiros públicos que devam reentrar nos cofres do Estado pode efectivar-se por compensação, por dedução não abatida ou por pagamento através de guia.

2 – As quantias recebidas pelos funcionários ou agentes da Administração Pública que devam reentrar nos cofres do Estado serão compensadas, sempre que possível, no abono seguinte de idêntica natureza.

3 – Quando não for praticável a reposição sob as formas de compensação ou dedução, será o quantitativo das reposições entregue nos cofres do Estado por meio de guia.”

 

No caso de impossibilidade de reposição pelos demais mecanismos, opera a reposição por meio de guia. Nesta hipótese alternativa, rege o disposto no artigo 41.º do mesmo diploma, com o seguinte teor:

 

“Artigo 41.º

Emissão de guias

As guias de reposição serão emitidas pelos serviços e organismos no prazo de 30 dias a contar da data em que houve conhecimento oficial da obrigatoriedade da reposição.”

 

A competência para determinar a reposição de vencimentos alegadamente recebidos em excesso é, portanto, uma competência implícita associada ou conexa com a competência para o processamento, liquidação e pagamento das remunerações dos trabalhadores de … e …. Caso contrário, não faria sentido a menção ao abono seguinte de idêntica natureza, à compensação e à dedução (modos de reposição alternativos à emissão de guia).[7] Ora, sendo claro que, independentemente do seu modo de cálculo ou proveniência, a competência para aqueles actos se imputa ao M..., I.P. (artigos 3.º, n.º 2, alínea i) da Lei Orgânica do M..., I.P.; artigo 66.º da LOSRN e artigo 5.º, n.º 1, alínea m) dos Estatutos do M..., I.P. aprovados pela Portaria n.º 387/2012, de 29 de Dezembro), é também aos órgãos dessa pessoa colectiva que compete determinar a reposição de quantias indevidamente recebidas.[8]

Não há, pois, fundamento para a invocação do vício de incompetência em razão das atribuições (incompetência absoluta), nem procede a alegada nulidade do acto em razão desse mesmo vício, nos termos e para os efeitos do artigo 133.º, n.º 2, alínea b), do CPA.

 

b. Do confisco

 

De seguida, invocam os Demandantes a existência de uma situação de confisco, assente na argumentação de que se trata de reposição de montantes a uma entidade que “nunca as pagou”. Há, a este respeito, dois pontos fundamentais a considerar: (i) a eventual qualificação jurídica das participações … como retribuição dos funcionários públicos e (ii) o princípio da legalidade que vincula o conteúdo do acto administrativo de processamento de vencimentos, correlativo às disposições legais sobre reposição de vencimentos. Quanto à primeira questão, como já se viu supra, as participações … configuram, independentemente da sua origem, retribuição dos trabalhadores de … e …, cujo processamento, liquidação e pagamento é competência do M..., I.P.. A segunda questão reporta-se à conformidade necessária entre as normas que regulam o processamento, liquidação e pagamento de retribuições e os montantes compreendidos nessas retribuições.

 

Os argumentos dos Demandantes assentam, quanto a este vício, na configuração do acto impugnado como uma ablação à propriedade privada dos Demandantes, sem fundamento em requisição ou expropriação por interesse público (artigo 62.º, n.º 1, da Constituição) e fora da sanção penal prescrita nos artigos 109.º e seguintes do Código Penal. A tese do confisco apenas seria, porém, procedente no caso de inexistência de fundamento abstracto para a reposição de vencimentos. E esse fundamento abstracto existe e consta dos artigos 36.º e ss. do RAFE. Caso assim não fosse, qualquer acto determinante do dever de reposição de vencimentos indevidamente recebidos configuraria – dado a dimensão inconcebível de uma compensação no contexto de uma reposição de vencimentos indevidamente recebidos – um confisco. Se a reposição for justificada, a compensação é inconcebível.

 

Como refere P. Veiga e Moura, “a obediência devida ao princípio da legalidade impede a Administração Pública de abonar aos seus funcionários ou agentes qualquer remuneração que exceda os montantes a que tenham direito à luz do sistema retributivo vigente. Porém, são inúmeros os abonos remuneratórios mensalmente efectuados pelo Estado aos seus funcionários e agentes, assistindo-se a verdadeiros actos-massa, nos quais é muito difícil, se não impossível, que a entidade processadora possa fazer, em curto espaço, um controlo rigoroso e fiável da exactidão dos quantitativos processados e pagos. (...) Através do DL 155/92, de 28 de Julho, o Governo definiu o novo regime da administração financeira do Estado, optando por ali incluir uma secção dedicada à reposição de dinheiros públicos.” [9]

 

A existência de um regime jurídico de reposição de dinheiros públicos (i.e., vencimentos) transporta a totalidade da questão que se discute para a legalidade ou ilegalidade dos vencimentos processados e pagos no período compreendido entre Setembro de 2007 e Outubro de 2012. Não estará em causa a “compensação ao titular” ou não, mas outrossim a conformidade entre os actos de processamento de vencimentos recebidos naquele período e as normas legais e regulamentares que os enformavam. Só existiria confisco na hipótese de os fundamentos para a reposição de vencimentos não se verificarem.

 

c. Da violação de lei: a prescrição

 

Alegam, de seguida, os Demandantes que a Requerente K… foi aposentada por Aviso publicado nos termos do artigo 100.º do Estatuto da Aposentação (doravante, “EA”), pela Caixa Geral de Aposentações, I.P., facto provado por consulta da II Série do Diário da República, n.º …, de … de Maio de 2011 (p. …), tendo-se aposentado no dia 1 de Junho de 2011, nos termos do artigo 99.º, n.º 2, do EA. Com fundamento na aposentação da Requerente K…, invoca-se na petição inicial, nos termos e para os efeitos do artigo 303.º do Código Civil, e apenas relativamente a essa Demandante (i.e., quanto ao acto administrativo que determina a reposição, por esta Demandante, da quantia de 23.147,83 €), a extinção por prescrição, no dia 2 de Junho de 2012, de todos os créditos resultantes do contrato de trabalho, nos termos do artigo 245.º, n.º 1 do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas (doravante, “RCTFP”).

 

O argumentário dos Demandantes, ainda que lógico e coerente, não é totalmente decisivo.

Desde logo, independentemente da determinação do facto interruptivo da prescrição – a notificação da intenção da Administração de requerer a devolução de montantes recebidos (alegadamente) em excesso –, não se afigura totalmente evidente a aplicação do prazo de prescrição constante do artigo 245.º, n.º 1 do RCTFP. Ainda que assim não fosse, como refere o Demandando, o n.º 4 do artigo 88.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro dispõe que “os actuais trabalhadores nomeados definitivamente que exercem funções em condições diferentes das referidas no artigo 10.º mantêm os regimes de cessação da relação jurídica de emprego público e de reorganização de serviços e colocação de pessoal em situação de mobilidade especial próprios da nomeação definitiva (...).”, ou seja, o disposto na Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro. Deste regime não transparece qualquer norma sobre prescrição de créditos laborais.

 

Todavia, mesmo admitindo a aplicação do artigo 245.º, n.º 1 do RCTFP a trabalhadores que transitaram do vínculo de nomeação – no sentido de a caducidade referida se reportar à caducidade de qualquer vínculo –, a verdade é que o caso sub judice não deixaria de convocar prima facie a aplicabilidade de duas normas conflituantes sobre a prescrição da exigibilidade de montantes, respectivamente, a norma enunciada no artigo 245.º, n.º 1 do RCTFP e a norma enunciada no artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho. Ao passo que (i) a primeira norma (i.e. artigo 245.º, n.º 1 do RCTFP) se aplica a todos os créditos resultantes de contrato de trabalho, incluindo créditos (eventualmente) relativos a montantes indevidamente recebidos por trabalhadores já aposentados, estatuindo-se o prazo prescricional de um ano, (ii) a segunda norma (i.e. artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho) aplica-se a todos os créditos (eventualmente) relativos a montantes indevidamente recebidos, incluindo créditos resultantes de contrato de trabalho celebrados por trabalhadores que já se hajam aposentado, estatuindo-se o prazo prescricional de cinco anos.

 

Segundo o princípio lex specialis derrogat lex generalis os prazos de prescrição estabelecidos em lei geral não são aplicáveis se no caso em concreto o prazo de prescrição é regulado por lei especial. E o que se constata é que, na contraposição entre, de um lado, quaisquer créditos laborais (previsão do artigo 245.º, n.º 1 do RCTFP) e montantes indevidamente recebidos (previsão do artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho), esta última é especial em relação à primeira, dado que são concebíveis créditos laborais que não correspondam a montantes indevidamente recebidos mas não são concebíveis montantes indevidamente recebidos que não se reportem sempre a créditos laborais.

 

Este entendimento é reforçado pelo argumento da interpretação sistemática. Na realidade, ao passo que a restituição de montantes indevidamente recebidos pelo Estado (artigo 35.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho) se encontra sujeita a prescrição “no prazo de cinco anos a contar da data em que deram entrada nos cofres do Estado as quantias a restituir, salvo se for legalmente aplicável outro prazo mais curto, a reposição de dinheiros públicos (artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho) apenas vê essa obrigatoriedade prescrever “decorridos cinco anos após o seu recebimento”, i.e. sem qualquer menção a prazo mais curto.[10] O Demandado enquadrou normativamente o despacho impugnado no regime de reposição de dinheiros públicos disposto no artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho: está em causa, na sequência de uma conferência de PE, a reposição de montantes alegadamente recebidos em excesso, qualificação especial (mais específica no plano factual) em relação a qualquer outro crédito laboral decorrente de contrato. Se é verdade que a fixação de um prazo relativamente curto para a extinção por prescrição de créditos laborais contado a partir da cessação do contrato prossegue finalidades de tutela de confiança e estabilização da situação do reformado, não é menos verdade que a legalidade a que se encontra adstrito o processamento de vencimentos é um pilar fundamental do sistema retributivo da função pública.

 

Não obstante o referido, e sem prejuízo da expressa arguição da prescrição por parte do Demandante K…, a verdade é que não é pedido a este Tribunal o reconhecimento de que quaisquer créditos se encontram prescritos, pelo que não cabe lhe fazer caso julgado material sobre matéria que não é expressamente pedida (i.e., os pedidos realizados reportam-se apenas à declaração de nulidade ou anulação dos actos administrativos, em cumulação com a condenação à restituição dos descontos feitos desde Novembro de 2012, acrescidos de juros de mora à taxa legal). Na realidade, a prescrição surge invocada pelos Demandantes estritamente como vício invalidante do acto administrativo de legalidade controvertida (i.e., como vício de violação de lei, por violação do disposto no artigo 245.º, n.º 1, do RCTFP). Para o que aqui interessa, é fundamental referir que a prescrição se reporta à exigibilidade do crédito, o que é bem diferente de consubstanciar um padrão de legalidade de acto administrativo posto em crise. O núcleo fundamental do regime da prescrição encontra-se plasmado no artigo 298.º e seguintes do Código Civil. Nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 298.º, do Código Civil, “[e]stão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição”.

 

Por conseguinte, a problemática conexa com as normas de prescrição em análise prende-se com a exigibilidade, ou coercibilidade, do direito de crédito a que respeitam (i.e., o efeito da prescrição não contende com a existência ou validade do direito a que respeita). A prescrição não produz, nessa medida, um efeito invalidante, conducente à anulação (ou declaração de nulidade) do exercício de competências. Permite, ao invés, ao devedor opor-se à execução do direito, fundando-se tal oposição no decurso do prazo legalmente estabelecido e na inércia do credor no respectivo exercício no mesmo hiato temporal. A doutrina prevalente na matéria aponta no sentido de que o direito prescrito nem sequer se deve considerar extinto, sendo “(…) a prescrição (…) um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, e traduz-se em o direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita”.[11] Aquele entendimento encontra, aliás, suporte na letra do n.º 2, do artigo 304.º, do Código Civil, segundo o qual a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita não pode ser repetida, ainda que haja ignorância da prescrição à data do cumprimento. Na verdade, a estatuição normativa do n.º 2, do artigo 304.º, do Código Civil corresponde ao regime regra aplicável às obrigações naturais, plasmado no artigo 403.º do Código Civil. Em síntese, dir-se-á que o direito prescrito subsiste na ordem jurídica, desprovido de exigibilidade, enquanto obrigação natural.[12]

 

Como se escreveu no Ac. do STA de 12.05.96, “a prescrição da reposição de verbas não se confunde nem interfere com o regime da revogabilidade do acto administrativo. A prescrição reporta-se à exigibilidade dos créditos existentes a favor do Estado e, portanto, à possibilidade desses créditos serem cobrados ainda que coercivamente (…) a prescrição envolve uma reacção contra a inércia e o desinteresse do titular do direito que deixa passar um apreciável intervalo de tempo sem exigir o cumprimento da dívida.” O próprio facto de a prescrição ser invocada (ou invocável) demonstra que decorre de normas que compreendem meios de defesa daqueles que se pretendem valer da prescrição e não de normas que parametrizam a legalidade de actos administrativos. Não é, nessa medida, esta a sede para que a prescrição seja invocada, mas sim aquando da execução do acto administrativo, nomeadamente após recebimento de eventuais guias de reposição.

 

Pelos motivos expostos, não é procedente o vício em causa.

 

  1. Da violação do artigo 219.º do RCTFP

 

O vício invocado de seguida pelos Demandantes prende-se com a violação do artigo 219.º do RCTFP. Entendem os Demandantes que, com a alteração do paradigma dos vínculos da função pública do regime da nomeação para o regime de contrato de trabalho em funções públicas, “o que anteriormente eram «actos administrativos», são meras declarações contratuais, [j]á que a situação jurídica dos agora denominados, já não «funcionários públicos», mas «trabalhadores que exercem funções públicas» deixou de ser estatutária, tendo estes deixado de ser sujeitos meramente passivos de actos administrativos para passarem a ser titulares de posições contratuais” (cfr. artigos 80.º e 81.º da petição inicial). Com base nesta visão, entendem os Demandantes que se passou a aplicar, ao invés do ius imperii, o “princípio pacta sunt servanda” (cfr. artigo 82.º da petição inicial e artigo 406.º do Código Civil), que impede a alteração unilateral das prestações contratuais.

 

Não se compreende, todavia, como a introdução de alterações no modelo normativo da relação jurídica de função pública pelo RCTFP prejudique a aplicação do regime disposto nos artigos 36.º e ss. do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho. Na realidade, as remunerações auferidas pelos trabalhadores em funções públicas, independentemente do concreto vínculo em causa, encontram-se sujeitas ao princípio da legalidade (de conformidade). Aliás, mesmo na subsequente Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas (doravante “LGTFP”), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, se admite, em derrogação ao disposto no n.º 1 do respectivo artigo 174.º - que define, a título geral, a proibição de compensar a remuneração em dívida com créditos que o Estado tenha sobre o trabalhador, ou de fazer quaisquer descontos ou deduções no montante da referida remuneração –, que “podem ainda ser descontadas à remuneração as demais quantias previstas na lei, como nos parece suceder, em determinadas situações, com a reposição de dinheiros públicos, prevista no DL n.º 155/02, de 28 de Julho”.[13]/[14]

 

Consequentemente, e uma vez mais, a questão relaciona-se com o facto de os montantes recebidos pelos Demandantes serem devidos ou indevidos. Também este vício invocado não é, portanto, procedente.

 

  1. Da violação do Artigo 141.º do CPA

 

Mais invocam os Demandantes a violação pelo acto de reposição de vencimentos, posto em crise na acção principal, do disposto no artigo 141.º do CPA, nos termos do qual [o]s actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso (...), i.e., nos termos do artigos 141.º, n.os 1 e 2 do CPA, 58.º, n.º 2, alínea b) e 59.º, n.º 6, do CPTA, de um ano.

 

A respeito do enquadramento desta matéria, transcreve-se o segmento do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 29 de Maio de 2003, proferido no processo n.º 12155/03[15]:

 

“Como se escreveu no Ac. do STA de 12.05.96, «a prescrição da reposição de verbas não se confunde nem interfere com o regime da revogabilidade do acto administrativo. A prescrição reporta-se à exigibilidade dos créditos existentes a favor do Estado e, portanto, à possibilidade desses créditos serem cobrados ainda que coercivamente. Pelo contrário, a revogação dos actos administrativos insere-se no estrito plano da actividade jurídica da administração e dos administrados no âmbito da relação jurídica administrativa.
Os fundamentos da prescrição e da regra da revogabilidade dos actos administrativos são, pois, inteiramente diversos. A prescrição envolve uma reacção contra a inércia e o desinteresse do titular do direito que deixa passar um apreciável intervalo de tempo sem exigir o cumprimento da dívida. A revogação justifica-se pela necessidade de ajustamento da acção administrativa, à variação do interesse público ou, no caso de revogação de actos ilegais, à exigência de cumprimento do princípio da legalidade. O prazo de revogação dos actos administrativos não pode deixar de ser o estabelecido na lei administrativa geral, assumindo aí relevância a distinção entre actos constitutivos e não constitutivos de direitos. E não se vê razão para alterar esse critério legal quando estejam em causa remunerações de funcionários ou agentes administrativos»”.

 

O Decreto-Lei n.º 155/92 compreendia, na sua versão originária, um regime específico para a reposição de montantes indevidos, a saber:

Artigo 40.º

Prescrição

1 — A obrigatoriedade de reposição das quantias recebidas prescreve decorridos cinco anos após o seu recebimento.

2 — O decurso do prazo a que se refere o número anterior interrompe-se ou suspende-se por acção das causas gerais de interrupção ou suspensão da prescrição.”

 

O artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2005), que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2005, deu nova redacção a este preceito, introduzindo-lhe um n.º 3, de natureza interpretativa, nos seguintes termos:

“Artigo 77.º

Regime da administração financeira do Estado

O artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, passa a ter a seguinte

redacção, tendo o n.º 3 ora introduzido natureza interpretativa:

«Artigo 40.º

(...)

3 — O disposto no n.º 1 não é prejudicado pelo estatuído pelo artigo 141.º do diploma aprovado pelo Decreto -Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro.»”

 

Conforme já se entendeu no acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 4/2009 – Processo n.º 1212/06 – Pleno da 1.ª Secção: “[a] este n.º 3 foi atribuída, pela própria lei que o introduziu, «natureza interpretativa», tratando-se pois de uma interpretação autêntica, do próprio legislador, que vem, por esta forma, fixar vinculativamente o alcance que, ab initio, deve ser atribuído ao preceito interpretado. Como é sabido, a norma interpretativa integra-se na norma interpretada, retroagindo os seus efeitos ao início da vigência desta (artigo 13.º, n.º 1, do C. Civil), (...). E não se vê que outro alcance ou sentido normativo possa ter este n.º 3, introduzido pela Lei n.º 55 -B/2004, a não ser o de que a previsão legal do n.º 1 — de que a obrigatoriedade de reposição nos cofres do Estado das quantias indevidamente recebidas só prescreve cinco anos após o seu recebimento — não é prejudicada ou condicionada pelo regime de revogação dos actos administrativos inválidos fixado no artigo 141.º do CPA (neste sentido, pode ver–se o Acórdão da 2.ª Subsecção do STA de 30 de Outubro de 2007 — recurso n.º 86/07).

 

À mesma conclusão se chegaria, aliás, pela adequada aplicação da norma lex specialis lex generali derogat na resolução da contraposição conflitual entre a norma enunciada no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho e a norma enunciada no artigo 141.º, n.ºs 1 e 2, do CPA. Não é, por este motivo, procedente o vício sob análise.

 

f. Do erro sobre os pressupostos de facto: a reconstituição da situação fiscal dos

Demandantes

 

Invocam ainda os Demandantes a ilegalidade do despacho impugnado com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto. Sinteticamente, alegam que, para efeitos do artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2 do Código do IRS, “as remunerações cuja restituição se pretende que ocorra constituem rendimentos da categoria «A»”, tendo “todos os autores [declarado] tais rendimentos nas declarações fiscais relativas aos anos em que os receberam”.

 

Por esta via, argumentam os Demandantes que o rendimento colectável, ao qual é aplicada a taxa respectiva, não corresponderá ao rendimento efectivo após a aplicação do despacho impugnado, que determina a reposição de montantes percebidos de modo alegadamente indevido. Concluem os Demandantes que o Demandado se está a locupletar sem causa, ao exigir a restituição de montantes sem determinar que se proceda à reconstituição da situação fiscal de cada um dos Autores relativa a cada ano em que perceberam as remunerações cuja restituição se determinou.

 

O que se constata, porém, é que o Demandado não se encontra a abater ao vencimento auferido pelos Demandantes as quantias alegadamente recebidas a mais. Ao invés, o Demandado encontra-se, outrossim, a processar os vencimentos no montante que entende correctos – cfr. infra –, mas sem realizar quaisquer abatimentos ao vencimento auferido pelos Demandantes: a reposição dos montantes alegadamente recebidos a mais ocorre por guia de reposição enviada pelo Demandado para o Serviço de Finanças competente e, por sua vez, notificada, por este último, aos Demandantes (cfr. doc. n.º 1 junto com a oposição do Demandado e notificações de reposição juntas pelos Demandantes com o seu requerimento inicial nos autos de procedimento cautelar n.º 11/2014-A).

 

A determinação, pelo despacho impugnado, da devolução dos montantes alegadamente percebidos em excesso não contempla a dedução dos descontos aplicados às quantias recebidas alegadamente em excesso. Nem deve contemplá-lo. O procedimento adoptado para a devolução dos montantes recebidos em excesso reporta-se ao valor remuneratório ilíquido efectivamente processado, na sua contraposição com o valor remuneratório ilíquido que, na perspectiva do Demandado e à luz da conferência da PE, deveria ter sido pago. É o que resulta da informação, com assunto conferência de participação … (PE) devida aos trabalhadores provenientes do quadro da extinta …, que fundamenta o acto impugnado, a fls.do processo administrativo. O cálculo da diferença entre montantes constantes do processamento de vencimentos e montantes que, na aplicação das normas legais e regulamentares tida por correcta pelo Demandado, incide, portanto, sobre montantes ilíquidos. Tanto num caso, como noutro, as deduções e descontos aplicáveis surgem a posteriori.

 

Acresce que, no caso de a devolução desses montantes alterar o escalão de IRS dos Demandantes – onus alegandi e probandi de que, aliás, os Demandantes não curaram –, essa questão sempre se colocará estritamente no âmbito da relação jurídica tributária que se verifica entre os Demandantes e a Autoridade Tributária e Aduaneira: a esta relação jurídica é estranho o Demandado, não lhe cabendo o exercício de qualquer competência a esse respeito. Não é, portanto, ao Demandado que compete, ao contrário do que alegam os Demandantes, determinar a “ reconstituição da situação fiscal de cada um dos Autores relativa a cada ano em que perceberam as remunerações que agora pretende ver restituídas” (cfr. artigo 109 da petição inicial).

 

A visão dos Demandantes assenta no pressuposto que o Estado, enquanto pessoa colectiva pública, detém todas as atribuições e competências em globo, podendo estas transitar entre pessoas colectivas públicas e respectivos órgãos (cfr., a esse respeito, o alegado no artigo 111.º da p.i. dos Demandantes). Não é o caso. Se é à pessoa colectiva pública M..., I.P., e aos respectivos órgãos e serviços competentes, que cabe o processamento dos vencimentos dos respectivos trabalhadores, é à Autoridade Tributária e Aduaneira que compete a liquidação de impostos devidos e, sendo disso caso, o processamento da apresentação de declarações de substituição. Esta consubstancia um serviço da administração directa do Estado dotado de autonomia administrativa que tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos e, em especial, prossegue atribuições nas seguintes matérias: a) assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo, dos direitos aduaneiros e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas do Estado ou de pessoas colectivas de direito público e; e) promover a correcta aplicação da legislação e das decisões administrativas relacionadas com as suas atribuições e propor as medidas de carácter normativo, técnico e organizacional que se revelem adequadas (cfr. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e e) do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro). Consequentemente, ainda que seja desejável que o Demandado informe a Autoridade Tributária e Aduaneira do acto administrativo que determina a devolução de montantes – para que, sendo caso disso, sejam apresentadas declarações de substituição pelos Demandantes – não é da competência do Demandado reconstituir a situação jurídico-tributária que existiria caso os Demandantes não houvessem recebido as remunerações que agora se pretende ver restituídas, nem lhe cabe aplicar as normas tributárias e determinar o imposto devido em função da alteração dos rendimentos dos Demandantes.

 

Decorre, aliás, da prova já produzida perante este Tribunal em sede do procedimento cautelar antecedente (Proc. n.º P11/2014 – A) que as guias de reposição enviadas pelo Demandado ao Serviço de Finanças compreendem a dedução ao valor ilíquido dos valores de descontos efectuados em sede de IRS, discriminado pelos anos 2007, 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012 – guias de reposição essas que, aliás, correspondem ao meio adequado para determinar a reposição de quantias recebidas em excesso, nos termos do disposto nos artigos 36.º, n.os 1, 2 e 3 e 41.º do RAFE (cfr. doc. n.º 1 junto com a oposição do Demandado nos autos de procedimento cautelar n.º 11/2014-A).

 

A não contemplação da dedução dos descontos devidos sobre os rendimentos alegadamente recebidos em excesso, nos termos das normas tributárias, não é, portanto, fundamento de ilegalidade do acto administrativo que ordena a reposição dos montantes recebidos em excesso. O instituto do enriquecimento sem causa vê, portanto, a sua aplicação prejudicada ao caso dos autos, dado que a reconstituição da situação jurídico-tributária hipotética dos Demandantes não se enquadra nas competências do Demandado. Seria, ao invés, o exercício, pelo Demandado, dessas competências imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, que determinaria que o acto de reposição de vencimentos enfermasse, nessa parte, de incompetência absoluta – dado que o M..., I.P. é uma pessoa colectiva institucional integrada na Administração Indirecta, distinta da Administração Directa onde se enquadra aquela Autoridade.

 

g. Da violação das normas enunciadas nos artigos 52.º, 53.º, n.º 5, 54.º, n.º 5, 59.º, n.º 3, 61.º e 63.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro e das normas das Portarias n.º 940/99 e 942/99, de 27 de Outubro e do artigo 4.º da Portaria n.º 1448/2001

 

Por último, os Demandantes invocam, a título de violação de lei, a infracção das normas enunciadas nos artigos 52.º, 53.º, n.º 5, 54.º, n.º 5, 59.º, n.º 3, 61.º e 63.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro e das normas das Portarias n.º 940/99 e 942/99, de 27 de Outubro e do artigo 4.º da Portaria n.º 1448/2001.

 

O vício de violação de lei por desconformidade com as normas supra enunciadas não é, porém, concretizado pelos Demandantes. Estes limitam-se a, muito genericamente, invocar que “partindo das notas de receitas e encargos mensais de Janeiro a Outubro de 2001, da extinta …, do quadro de funcionários ali existente e, ainda dos vencimentos de categoria dos diferentes funcionários, verifica-se que os valores que foram pagos aos aqui Autores estão correctos, estando incorrectos os cálculos efectuados na Informação que fundamenta o acto impugnado” (cfr. artigo 119.º da petição inicial).

 

Nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º do Regulamento do CAAD, “nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado, excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito, assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas”. A ampliação que desta forma se projecta no objecto da acção, por contraposição ao anterior regime da LPTA – todas as invalidades do acto administrativo – não prejudica, todavia, o onus alegandi dos Demandantes. A estes cabe individualizar os motivos pelos quais entendem que os actos constantes do despacho impugnado violam as normas supra referidas. E, a este respeito, independentemente de as normas em causa consubstanciarem os padrões de legalidade mais relevantes dos vencimentos processados, os Demandantes limitam-se a contrapor a correcção dos “valores que foram pagos aos aqui Autores” à incorrecção dos “cálculos efectuados na Informação que fundamenta o acto impugnado” (cfr. artigo 119.º da petição inicial). Nenhuma outra referência, aliás, é feita à referida Informação.

 

Quanto às normas referidas, não se vê, em primeiro lugar e pelo próprio teor dos enunciados, como o acto em causa possa violar o disposto nos artigos 52.º, 53.º, n.º 5, 54.º, n.º 5 e 59.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro, dado que se reportam ao conceito de vencimento, à composição do ordenado, à qualificação da participação … como vencimento de exercício e aos casos em que deve ser abonada.

 

Como resulta da Informação que fundamenta os actos impugnados – não tendo sido expressamente posta em causa nos presentes autos – “no período compreendido entre outubro de 1999 e dezembro de 2001, a PE dos funcionários das … foi calculada segundo as percentagens fixadas nas Portarias n.º 940/99 e 942/99 (…) A partir de 1 de Janeiro de 2002, porém, com a publicação da Portaria n.º 1448/2001, de 22 de Dezembro (…) a PE de cada funcionário passou, a partir dessa data a corresponder à média aritmética da PE a que teria tido direito de janeiro a outubro de 2001, no lugar que ocupava, apurada segundo as regras ao tempo em vigor, ou seja, segundo as percentagens e demais regras fixadas pelas sobreditas Portarias n.º 940/99 e 942/99”. Ainda nos termos do artigo 4.º da Portaria n.º 1448/2001, a eventualidade dos funcionários verem a sua situação funcional alterada em data posterior a Outubro de 2001 (pela alteração do seu vencimento de categoria, mudança de lugar ou alteração da classe do serviço) determina que “a sua PE passará a corresponder à média aritmética da PE que teriam auferido de janeiro a outubro de 2001, se estivessem investidos na nova situação funcional”. A prorrogação da vigência da Portaria n.º 1448/2001 pelas Portarias n.º 110/2003, e 110/2004, de 29 de Janeiro, 768-A/2004, de 30 de Junho, 52/2005, de 20 de Janeiro, 496/2005, de 31 de Maio, 40/2006, de 12 de Janeiro, 206/2007, de 15 de Fevereiro, 118/2008, de 11 de Fevereiro, 92/2009, de 28 de Janeiro, 1459/2009, de 31 de Dezembro e 29/2001, de 11 de Janeiro importou que o valor da média acima referida passaria a ter sucessivas actualizações, segundo a taxa aplicável à actualização do índice 100 da escala indiciária do regime geral de vencimentos da função pública.

 

Resulta da Informação que fundamenta os actos compreendidos no despacho impugnado que  “os cálculos efectuados no acto anulado partiram do valor de receita … registado mês a mês, de janeiro a outubro de 2001, na extinta …”, como também resulta das notas de receitas e encargos mensais elaboradas pela referida …, a fls. 7 a 55 dos autos do proc. n.º 67/2012 facultados a este Tribunal pelo CAAD e do quadro de funcionários que existia nesse período nessa repartição, com os vencimentos de categoria que os funcionários relevantes tinham à data e respeitando, na simulação da PE, a evolução da situação em data posterior a Outubro de 2001, até Outubro de 2012.

 

De seguida, a Informação compreende uma explicitação do método de aplicação dos normativos referidos (artigos 61.º e 63.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 519-F2/79 e Portarias n.º 940/99 e 942/99, de 27 de Outubro e Portaria n.º 1448/2001), tendo por referência o total de receita em actos isentos cobrada na …, no mês de Maio, de 2001, considerando os limites decorrentes do artigo 8.º da Portaria n.º 940/99 (i.e., um limite de 70% para os … e de 40% para os … da PE apurada para o …). Tratando-se de um método idêntico, onde apenas se alteram as variáveis, está, nessa medida, suficientemente cumprido o dever de fundamentação decorrente dos artigos 124.º e 125.º do CPA. Como se refere na Informação, a pp. 11, “para os restantes dez meses de 2001 o procedimento observado foi o mesmo, variando os resultados em função da receita apurada em cada mês, do número de funcionários em funções e dos respectivos vencimentos de categoria”.

 

Por último, tendo presente os montantes que deveriam ter sido auferidos ano a ano, por aplicação das normas supra referidas, foi calculada a diferença existente entre o que foi processado e o que deveria ter sido (em montantes brutos), “pagando a administração a diferença do que a menos tenham recebido os funcionários a quem estava processada uma PE inferior à devida (…) e requerendo a devolução do que a mais tenha sido pago nos últimos cinco anos àqueles que estivessem a auferir uma PE superior à que lhes era devida.” E, novamente aqui, é relevante referir que os Demandantes em momento algum individualizam qualquer erro, normativo ou de cálculo, quanto à aplicação do método ou à consideração daqueles factores, fora da afirmação genérica de serem “incorrectos (…) os cálculos efectuados na Informação que fundamenta o acto impugnado” (cfr. artigo 119 da petição inicial).

 

Pelo exposto, não se detecta qualquer vício de violação de lei nos actos impugnado, nem qualquer vício formal ou procedimental revelado pela Informação que o fundamenta.

 

Ao exposto acresce, nos termos já referidos, que o Demandado não se encontra a realizar descontos ao vencimento auferido pelos Demandantes, mas sim a processar os montantes em coerência com o disposto na Informação que fundamenta os actos impugnados: a reposição de montantes, como visto supra, decorre, nos termos previstos no RAFE, por guia de reposição notificada pelo Serviço de Finanças competente. Em razão do exposto, e tendo por referência o segundo pedido dos Demandantes – “a condenação do Demandado na devolução de todos os descontos feitos aos Demandantes desde Novembro de 2012, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde as datas em que os mesmos foram efectuados” – não há fundamento para a respectiva procedência.

 

V. Decisão

Em razão do supra exposto, julgam-se totalmente improcedentes os pedidos dos Demandantes, absolvendo-se a entidade Demandada.

- Notifique-se as partes, com cópia, e deposite-se o original da decisão (artigo 23.º, n.º 3 do Regulamento da CAAD);

- Fixa-se o valor da causa para efeitos de encargos processuais no montante do conteúdo económico do acto plural impugnado (221.972,92 €, por aplicação do artigo 33.º alínea d) do CPTA, ex vi artigo 29.º do Regulamento do CAAD).

- Encargos processuais na importância de € 250 por cada sujeito processual, nos termos da tabela aplicável.

 

Lisboa, CAAD, 9 de Março de 2015,

 

O árbitro,

Pedro Moniz Lopes



[1] M. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material, in BMJ, n.º 325, 1983, pp. 148 ss..

[2] A detecção da identidade da causa de pedir resulta da identidade do conjunto factual concreto, juridicamente qualificado, constitutivo do direito invocado, conjunto factual esse conexionado com o facto lesivo invocado. Por exemplo, cfr. Ac. TCA Norte, de 31.01.2014, processo n.º 02193/11.2BEPRT-B, consultável em www.dgsi.pt.

[3] Posteriormente, vieram os demandantes ampliar o pedido ao abrigo do disposto no artigo 15.º n.º3, do Regulamento de Arbitragem, invocando também a nulidade do acto impugnado na medida em que alegadamente constituiria um confisco à margem da lei (cfr. artigo 62.º da Constituição e artigo 1308.º do Código Civil) a ablação do direito de propriedade sobre as quantias recebidas pelos impugnantes sem qualquer compensação.

 [4]  Cfr. Ac. TCA de 17.06.2004, processo n.º 11097/02, consultável em www.dgsi.pt.

[5] Cfr. M. Esteves de Oliveira / R. Esteves de Oliveira, CPTA e ETAF Anotados, Coimbra, 2004, pp. 357-358.

 

[6] Sobre os actos plurais enquanto “conjuntos de actos que produzem efeitos idênticos em relação a uma pluralidade de pessoas, instrumentalmente unificados numa exteriorização única por razões de economia e de eficiência procedimentais”, cfr. M. Rebelo de Sousa / A. Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, III, Lisboa, 2006, p. 81.

[7] Quanto a esta alternatividade, cfr. P. Veiga e Moura, Função Pública, 1.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 2001, pp. 384-386.

[8] No sentido de serem “descontadas à remuneração as demais quantias previstas na lei, como nos parece suceder, em determinadas situações, com a reposição de dinheiros públicos, prevista no DL n.º 155/92, de 28 de Julho”, cfr. P. Veiga e Moura, Comentários à Lei geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º vol., Coimbra, 2014, p. 499. No sentido da faculdade de operar a reposição de montantes indevidamente recebidos por “dedução não abatida”, caso em que [se] adicionam os montantes a repor aos descontos que incidem sobre as remunerações processadas aos funcionários e agentes, montantes esses que são imediatamente deduzidos àquelas remunerações”, cfr. P. Veiga e Moura, Função Pública – Regime Jurídico, Direitos e Deveres dos Funcionários e Agentes – 1.º Vol., 2.ª ed., Coimbra, 2001, pp. 385.

[9] Cfr. Função Pública – Regime Jurídico, Direitos e Deveres dos Funcionários e Agentes – 1.º Vol., 2.ª ed., Coimbra, 2001, pp. 384.

[10] Poderia hipotizar-se aqui uma diferença injustificada de tratamento: todavia, a diferença é racionalmente justificável dado que, ao passo que o regime de restituição engloba na esfera de protecção o particular (ou os particulares) a quem são devidos montantes pelo Estado, o regime da reposição é desenhado para proteger o erário público e, por conseguinte, todos os contribuintes, assim se justificando a uniformização do prazo prescricional e a não previsão de prazos prescricionais mais curtos. Já se sustentou, em acórdão do TCA Sul, de 03-10-2013 (processo n.º 06942/13) que ao disposto no artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho subjaz “um claro propósito do legislador, com intuitos de segurança e certeza jurídicas, de uniformizar o prazo de prescrição, quer para as quantias que o Estado tem que devolver, quer para aquelas que tem de reembolsar”. E tal sucede mesmo quando se trata, como era o caso do acórdão citado, de actos de processamento de pensões de reforma cujo montante foi percebido por outrem que não era funcionário nem era o respectivo destinatário.

 

[11] Cf. P. Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª Edição, Coimbra, 2010, pág. 380. Na mesma linha, cf., nomeadamente, M. Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª Edição, Coimbra, pág. 1120.

[12] Cfr., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 31.03.2011, proferido no processo n.º 411348/09.3YIPRTB.L1-2 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14.12.1998, n.º processo 1573/97-2, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.

[13] Cfr. P. Veiga e Moura, Comentários à Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, 1.º vol., Coimbra, 2014, p. 499.

[14] O artigo 174.º dispõe o seguinte:

 “1. Na pendência do vínculo de emprego público, o empregador público não pode compensar a remuneração em dívida com créditos que tenha sobre o trabalhador, nem fazer quaisquer descontos ou deduções no montante da referida remuneração.

2. O disposto no número anterior não se aplica:

a) aos descontos a favor do Estado, da segurança social ou de outras entidades, ordenados por lei, por decisão judicial transitada em julgado ou por auto de conciliação, quando da decisão ou do auto tenha sido notificado o empregador público;

b) às indemnizações devidas pelo trabalhador ao empregador público, quando se acharem liquidadas por decisão judicial transitada em julgado ou por auto de conciliação;

c) às multas ou a reposição de qualquer quantia em que o trabalhador tenha sido condenado no âmbito de procedimento disciplinar e não tenha procedido ao respectivo pagamento voluntário;

d) aos preços de refeições no local de trabalho, de utilização de telefones, de fornecimento de géneros, de combustíveis ou de materiais, quando solicitados pelo trabalhador, bem como a outras despesas efectuadas pelo empregador público por conta do trabalhador e consentidas por este;

e) a outros descontos ou deduções previstos na lei.

[15] Cfr., ainda, a título de exemplo, o Acórdão do STA, de 4 de Dezembro de 2012, proferido no processo n.º 0329/02, o Acórdão do TCA Sul, de 11 de Maio de 2006, proferido no processo n.º 01552/06 e, mais recentemente, o Acórdão do TCA Sul, de 5 de Junho de 2014, proferido no processo n.º 06302/10.