Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 9/2023-A
Data da decisão: 2023-07-20  Contratos 
Valor do pedido: € 2.122.510,90
Tema: Acórdão Arbitral | Cláusula compromissória | Incompetência Tribunal Arbitral
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ACÓRDÃO ARBITRAL

 

      I.         RELATÓRIO: 

 

1.    A Demandante A..., Lda., devidamente identificada no processo arbitral, intentou a presente ação administrativa arbitral contra a. B..., aqui entidade Demandada onde peticiona o pagamento à Demandante da quantia de € 2.122.510,90 (dois milhões cento e vinte e dois mil quinhentos e dez euros e noventa cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da citação, a título de indemnização pelos alegados danos sofridos pela caducidade da adjudicação à Demandante de dois contratos de prestação de serviços de promoção turística nos mercados dos Estados Unidos e do Canadá, com fundamento do pedido principal no instituto da responsabilidade pré-contratual.

2.    Após citação, o Demandado apresentou a competente contestação, defendendo-se por exceção e quanto ao mérito, alegando, em síntese, quanto à matéria de exceção a ineptidão da petição inicial, incompetência material do Tribunal arbitral, impropriedade do meio processual e caducidade do direito de ação.

3.    Notificada para responder à exceção de incompetência material do Tribunal arbitral, a Demandante exerceu o seu direito ao contraditório no que diz respeito à exceção suscitada pela entidade Demandada.

4.    Aqui chegados, cumpre tomar posição sobre a questão que se prende com a competência material deste Tribunal arbitral para conhecer do presente litígio.

 

    II.         DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL 

O artigo 18.º da Lei da Arbitragem Voluntária consagra no ordenamento jurídico português o princípio da competência-competência, pelo que caberá ao Tribunal arbitral decidir sobre a sua própria competência e não a qualquer outro Tribunal de origem estadual. 

Encontra-se, hoje, assente, que os Tribunais arbitrais, desde que regularmente constituídos, podem e devem prioritariamente aferir da sua competência para julgar um determinado litígio submetido à sua apreciação. Estamos, pois, perante um verdadeiro poder-dever dos árbitros, que, no caso concreto, é reforçado pela contestação da entidade Demandada, onde esta pugna pela incompetência deste Tribunal arbitral, alegando, em síntese, que o mesmo apenas teria competência para o julgamento de litígios pré-contratuais (cfr. artigos 45.º a 50.º da Contestação da entidade demandada).

Cumpre recordar, em traços gerais que a competência de um qualquer Tribunal arbitral pressupõe a existência, validade e eficácia de uma determinada convenção de arbitragem, seja esta resultante de um compromisso arbitral ou de uma cláusula compromissória, suscetível de aplicação a um determinado litígio. Consequentemente, caso sejam suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, caberá, sempre, ao Tribunal arbitral aferir da extensão da convenção de arbitragem. (cfr. neste sentido veja-se o, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2-03-2018, processo 1149/14.8T8LRS.L1.S1).

No caso concreto, estamos perante um litígio que, de acordo com a Petição Inicial da Demandante, deverá ser dirimido por este Tribunal arbitral, atento o teor da cláusula compromissória prevista no artigo 40.º do Programa do Concurso, relativo ao procedimento concursal, melhor identificado nos autos arbitrais.

Vejamos então.

O artigo 40.º do Programa de Concurso dispõe que:

“A B...– Convention and Visitors Bureau aceita a jurisdição do Centro de Arbitragem Institucionalizado CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, com sede na Avenida de Loulé, n.º 72 A, 1050-091 Lisboa, para a resolução de qualquer litígio respeitante ao presente procedimento pré-contratual, seguindo-se os respetivos regulamentos, designadamente quanto ao respetivo modo de constituição e regime processual”.

A presente cláusula compromissória prevê que a resolução de qualquer litígio respeitante ao presente procedimento pré-contratual deverá ser dirimida com recurso à arbitragem institucionalizada, nomeadamente ao centro de arbitragem institucionalizado CAAD- Centro de Arbitragem Administrativa. Isto posto, dever-se-á, tendo por referência os pedidos, deduzidos a título principal na petição inicial da Demandante, decidir se tais pedidos se encontram abrangidos pela cláusula 40.º do Programa de Concurso, anteriormente identificada.

A título preliminar diga-se que, as convenções de arbitragem, onde se incluem as cláusulas compromissórias, devem, em regra, ser interpretadas e integradas, de acordo com as regras gerais aplicáveis aos negócios jurídicos (cfr. artigo 236.º a 239.º do Código Civil). Ou seja, a convenção valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (cfr. Neste sentido, Manuel Barrocas, Manual de Arbitragem, 2ª edição, pág. 169 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2019, processo 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1).

Todavia, no âmbito do presente litígio, a cláusula compromissória, prevista na cláusula 40.º do Programa de Concurso, assume uma natureza atípica, porquanto o seu surgimento não resultou de um qualquer negócio jurídico, mas, sim da disciplina do artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos.

Em bom rigor, o artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos, não se limita a possibilitar às entidades adjudicantes (in casu, a Entidade Demandada) o recurso à arbitragem, pois no quadro no artigo 476.º, n.º 2 do Código do Contratos Públicos, e seguindo os ensinamentos da Doutrina, verdadeiramente só a vontade da entidade adjudicante é que conta, quer quanto à sujeição eventuais litígios à arbitragem, quer quanto à escolha do centro de arbitragem institucionalizado (cfr. Tiago Serrão, “A Arbitragem no CCP revisto”, Comentários à Revisão do Código dos Contratos Públicos, 3ª edição AAFDL, p 135).  Ora, pese embora, o n.º 2 do artigo 476.º, obrigue a uma declaração de aceitação, por parte dos interessados, candidatos, concorrentes ou cocontrantes, a sua vontade, em sujeitar o litígio à arbitragem, encontrar-se-á, sempre, condicionada, sendo, caso a entidade adjudicante assim o decida, um verdadeiro requisito à participação.

Isto dito, a interpretação quanto ao tipo de litígios que serão dirimidos, nos termos da cláusula 40.º do Programa de Concurso, não se deverá pautar, exclusivamente pelo disposto do 236.º, n.º 1 do Código Civil, devendo tal critério ser, sempre, temperado, em termos sistemáticos e teleológicos, pela disciplina normativa do artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos, uma vez que é este mesmo preceito o fundamento arbitral para a cláusula 40.º do Programa de Concurso.

 A ratio do artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos é, assim, introduzir um regime específico de arbitragem para os litígios emergentes de um procedimento pré-contratual (arbitragem pré-contratual), quer para litígios que surjam durante a execução dos contratos sujeitos ao Código dos Contratos Públicos. No caso em litígio não nos iremos pronunciar sobre as cláusulas compromissórias, prevista no Caderno de Encargos, pois estas pressuponham a celebração de um contrato entre a Demandante e Demandada, contrato este que nunca foi outorgado, valendo, assim, apenas a cláusula 40.º do Programa de Concurso, como fundamento da arbitrabilidade.

A inserção sistemática da cláusula 40.º no Programa de Concurso permite-nos, desde logo, dilucidar que intenção da entidade demandada foi de submeter à arbitragem institucionalizada o julgamento de questões respeitantes ao procedimento pré-contratual em litígio.

 A formulação técnico jurídica consagrada na cláusula 40.º do Programa de Concurso, isto é, “...qualquer litígio respeitante ao presente procedimento pré-contratual...”, deverá ser sempre interpretada no sentido de que reporta ao contencioso da legalidade dos atos administrativos e dos documentos conformadores do procedimento. A alínea a), do n.º 2 do artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos, na qual a cláusula 40.º do Programa de Concurso tem o seu fundamento legal, reporta-se, precisamente, ao “...julgamento de questões relativas ao procedimento de formação de contrato...”, vulgo o contencioso de atos administrativos praticados em procedimentos de formação de contratos, assim como de documentos conformadores do procedimento.

Quanto à delimitação de um litígio pré-contratual deverá o presente Tribunal arbitral socorrer-se do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, assumindo-se este como auxiliar hermenêutico. Este Código quando se reporta ao contencioso pré-contratual, engloba apenas o contencioso da legalidade dos atos administrativos (cfr. artigo 100.º, n.º 2 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos) e a impugnação dos documentos conformadores do procedimento (cfr. artigo 103.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos). É, pois, nestes termos que deverá ser interpretada a al. a) do n.º 2 do artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos e a cláusula 40.º do Programa de Concurso aqui em crise. 

 É certo que tais pretensões a título principal, poderão ser, sempre cumuladas com pretensões indemnizatórias, sendo, no entanto, estas sempre associadas a um processo principal referente a atos administrativos e normas emitidas por entidades adjudicantes, no âmbito de procedimentos de formação de contratos.

Veja-se, quanto a este ponto, M Aroso de Almeida e C Cadilha “.... Afigura-se, entretanto de excluir que pela via do contencioso pré-contratual urgente possam ser deduzidos a título principal, outros pedidos... que não tenham por objeto a impugnação de atos administrativos ou de normas...” (em, Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, 5ª edição, Almedina, p 844).

O próprio regulamento do CAAD no artigo 19.º-A, n.º 2 e 10.º traduz a mesma ratio quando, em traços gerais, no âmbito da arbitragem pré-contratual, prevê que os pedidos relativos a atos administrativos e a documentos conformadores do procedimento podem ser cumulados com o pedido de responsabilidade civil emergente das ações ou omissões que constituem o objeto primitivo do processo. 

Aqui chegados, não poderá o presente Tribunal arbitral julgar que ações onde é peticionado, a título principal, uma pretensão indemnizatória, ao abrigo da responsabilidade pré-contratual ou extra-contratual, mesmo que tal pretensão indemnizatória seja fundada em ato administrativo que, pelo decurso do tempo, se tenha tornado inimpugnável, como é o caso da decisão de não adjudicação, notificada à Demandante a 16 de setembro de 2022, como um litígio abrangido pela cláusula compromissória atípica, prevista na cláusula 40.º do Programa de Concurso, porquanto esta apenas previa a arbitrabilidade de pedidos principais, relativos à legalidade dos atos (por exemplo, da decisão de não adjudicação), eventualmente cumulados com pretensões indemnizatórias, o que não é o caso.

Não se trata de sindicar autonomamente a ilegalidade da decisão de não adjudicação, pois nem tão-pouco estaria em tempo, atento os prazos de caducidade vigentes no nosso ordenamento jurídico.

Desta feita, resta concluir que para o julgamento da presente acção arbitral, de responsabilidade pré-contratual, por danos alegadamente decorrentes da prática de um ato de não adjudicação, não será competente a jurisdição arbitral do CAAD, o que gera a absolvição da instância arbitral aqui da entidade demandada.

III – DECISÃO:

Tendo em atenção o exposto, importa julgar verificada a exceção de incompetência do Tribunal arbitral para conhecer da presente ação, absolvendo-se a entidade demandada da instância arbitral.

Determina-se, em consequência que as custas ou os encargos do processo ficam integralmente a cargo do Demandante (cfr. artigo 29.º, n.º 6 do Regulamento do CAAD.

Publique-se, após o expurgo dos elementos suscetíveis de permitir a identificação das Partes, conforme o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Regulamento do CAAD.

Registe e notifique-se. 

 

Porto, 20 de julho de 2023.

 

Os Árbitros,

 

 

Sandra Tavares Magalhães 

            

 

Carlos da Silva Nunes

 

 

Pedro Cerqueira Gomes