Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 15/2022-A
Data da decisão: 2023-01-24  Contratos 
Valor do pedido: € 30.000,01
Tema: Contrato de arrendamento. Interpretação de contratos públicos e de contratos civis.
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Sumário

Independentemente da natureza jurídica de um contrato de arrendamento celebrado na sequência de um concurso público – contrato público ou contrato civil -, as dúvidas de interpretação devem seguir um iter interpretativo de harmonia com o qual (i) deve interpretar-se o contrato como um todo e de forma integrada e (ii) na medida do necessário, devem ser interpretadas as declarações negociais.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professor Nuno Cunha Rodrigues (Árbitro-presidente), Professor João Pacheco de Amorim e Dra. Margarida Olazabal Cabral (árbitros vogais), o primeiro designado por acordo entre os árbitros designados e os segundos, respetivamente, pelo Demandado e pela Demandante, para formarem o Tribunal Arbitral constituído em 03-03-2022, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

1. A..., C.R.L. (doravante “A...” ou “Demandante”), com o número único de matrícula e pessoa colectiva..., com sede na Rua ..., n.º ..., ... ... ... e o MUNICÍPIO ..., com o número de pessoa colectiva..., com sede na Rua..., ...-... ... (doravante “Demandado”), apresentaram, em 25/02/2022, um pedido de constituição do tribunal arbitral, de harmonia com o compromisso arbitral celebrado entre as partes em 15 de julho de 2021 e nos termos dos artigos 2.º, n.º 1 e 9.º, n.º 1 do Regulamento de Arbitragem Administrativa.

2. No dia 21 de janeiro de 2022 os dois árbitros designados pelas partes e o Árbitro-Presidente Professor Rui Guerra da Fonseca assinaram a ata de designação do Presidente do Tribunal Arbitral.

3. A Demandante pede que o Demandado (a) seja condenado ao reconhecimento da interpretação do Contrato de Arrendamento, segundo a qual o valor de renda devido é de 0,09€ por quilograma de enchido vendido e cuja renda deve ser apurada pelo Demandado com base no Relatório de Gestão da Demandante de cada um dos anos de vigência do Contrato e posteriormente faturado, como assumiu e reconheceu relativamente aos anos 2009 a 2011 e sem que posteriormente tenha ocorrido alteração das circunstâncias que fundamente a alteração de comportamento; ou, caso assim não se entenda, (b) ser o Demandado condenado no deferimento do pedido de reequilíbrio financeiro do Contrato apresentado e em consequência fixar-se o valor de renda a partir de julho de 2016 e até final do ano de 2021 no montante de € 22.354,87; E em qualquer dos casos, (c ) ser o Demandado condenado a anular as faturas indevidamente emitidas relativas aos anos 2012 e seguintes e todos os demais atos por ele praticados no âmbito do Contrato e na sua sequência, assentes no entendimento e interpretação errados do Contrato; (d) ser reconhecida e declarada a prescrição das rendas devidas até julho de 2016, por sobre as mesmas ter decorrido um prazo superior a 5 anos; ou caso assim não se entenda, e improcedendo os pedidos supra identificados em a) ou b), e subsidiariamente, ( e) ser resolvido o Contrato de Arrendamento celebrado entre a Demandante e o Demandado, com fundamento em erro, nos termos do n.º 2 do artigo 252.º e n.º 1 do artigo 437, ambos do Código Civil.

4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 03-03-2022 e notificado a ambas as partes nessa mesma data, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros.

5. No dia 15 de setembro de 2022, o Árbitro-Presidente Professor Rui Guerra da Fonseca renunciou às funções exercidas nos presentes autos.

6. No dia 15 de setembro de 2022, os dois árbitros nomeados pelas partes acordaram em indicar o Professor Nuno Cunha Rodrigues como novo Árbitro-Presente tendo, em 16 de setembro de 2022, o Professor Nuno Cunha Rodrigues comunicado ao CAAD a aceitação da nomeação como Árbitro-Presidente no presente processo.

7. Por despacho arbitral de 20 de setembro de 2022 foi ratificado todo o processado pelo anterior Árbitro-Presidente tendo sido agendada para o dia 21 de outubro de 2022 a realização de audiência para audição das testemunhas arroladas pelas partes, bem como para o depoimento de parte.

8. No dia 21 de outubro de 2022 teve lugar a audiência agendada, tendo, no final, as partes sido notificadas para, de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias, o que ambas vieram a fazer.

10. Foi indicado o dia 31 de janeiro de 2023 para o efeito de prolação da decisão arbitral.

11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

12 As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

13. O processo não enferma de nulidades.

 

II. DO PEDIDO DA DEMANDANTE:

A Demandante invoca a existência de um diferendo entre Demandante e Demandado relativamente à interpretação e execução do Contrato de Arrendamento do B..., celebrado em 22 de fevereiro de 2008, máxime a cláusula terceira deste contrato, tendo em vista o apuramento do montante da renda e respetiva fórmula de cálculo.

Entende a Demandante e constitui a questio decidendi dos presentes autos, que o valor da renda será apenas e somente calculado com base no valor unitário de quilos de enchido produzido ou vendido, pois esta é a única interpretação possível decorrente do Contrato.

Acrescenta ser comum existirem contratos de arrendamento com renda indexada aos resultados do arrendatário e foi esse o pressuposto da Demandante quando assinou o Contrato.

Mais refere que o B... não tem a capacidade de produção instalada que se prevê no estudo de viabilidade económico-financeira do Demandado que antecedeu o procedimento e a celebração do Contrato e que este teve apenas como finalidade estabelecer uma previsão e um método de cálculo, por forma a ser possível efetuar uma estimativa de renda, método de cálculo e valor máximo.

De acordo com a Demandante, estando perante um contrato de Arrendamento, os montantes a pagar pela Demandante ao Demandado pela exploração do B... assumem-se como uma renda que prescrevem no prazo de cinco anos. A esta luz encontram prescritas as rendas relativas ao período compreendido entre o início do Contrato e julho de 2016 – 5 anos antes da celebração do compromisso arbitral, que data de 15.07.2021, que interrompeu os efeitos da prescrição, independentemente do seu valor.

A Demandante solicita, em síntese, que o Demandado (a) seja condenado ao reconhecimento da interpretação do Contrato de Arrendamento, segundo a qual o valor de renda devido é de 0,09€ por quilograma de enchido vendido e cuja renda deve ser apurada pelo Demandado com base no Relatório de Gestão da Demandante de cada um dos anos de vigência do Contrato e posteriormente faturado, como assumiu e reconheceu relativamente aos anos 2009 a 2011 e sem que posteriormente tenha ocorrido alteração das circunstâncias que fundamente a alteração de comportamento; ou, caso assim não se entenda, (b) ser o Demandado condenado no deferimento do pedido de reequilíbrio financeiro do Contrato apresentado e em consequência fixar-se o valor de renda a partir de julho de 2016 e até final do ano de 2021 no montante de € 22.354,87; E em qualquer dos casos, (c ) ser o Demandado condenado a anular as faturas indevidamente emitidas relativas aos anos 2012 e seguintes e todos os demais atos por ele praticados no âmbito do Contrato e na sua sequência, assentes no entendimento e interpretação errados do Contrato; (d) ser reconhecida e declarada a prescrição das rendas devidas até julho de 2016, por sobre as mesmas ter decorrido um prazo superior a 5 anos; ou caso assim não se entenda, e improcedendo os pedidos supra identificados em a) ou b), e subsidiariamente, ( e) ser resolvido o Contrato de Arrendamento celebrado entre a Demandante e o Demandado, com fundamento em erro, nos termos do n.º 2 do artigo 252.º e n.º 1 do artigo 437, ambos do Código Civil.

 

III. DA CONTESTAÇÃO DO DEMANDADO:

Na contestação, o Demandado invocou as peças do procedimento do concurso público lançado tendo em vista a celebração do contrato de arrendamento – incluindo o estudo de viabilidade económico-financeira – para considerar que a renda a pagar pela Demandante visava a recuperação dos investimentos não co-financiados a fundo perdido e que a renda da concessão corresponderia a 6% do valor dos investimentos afectos à concessão. A este propósito invoca ainda a redação do número quatro da cláusula terceira do contrato de arrendamento.

O Demandando considera, em síntese e a final, que a ação devia ser julgada totalmente improcedente, também em relação a qualquer dos pedidos subsidiários formulados, com a consequente absolvição do Município de ... .

 

IV. MATÉRIA DE FACTO:

A. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

i)               Em julho de 2007 o Município ... lançou e tramitou um procedimento pré-contratual de concurso público, para escolha do cocontratante (adjudicatário) tendo em vista a celebração de um Contrato de Arrendamento relativo ao B...;

ii)             Do anúncio do concurso constavam as condições relativas ao contrato, de participação dos concorrentes e os critérios de adjudicação;

iii)           As peças do procedimento foram elaboradas depois de o Demandado ter tido conversas informais com membros dos órgãos sociais da Demandante;

iv)            O B...encontra-se instalado no prédio urbano, sito na Rua ... na ... de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .../2007... e inscrito na matriz urbana sob o artigo P ... da freguesia de ..., composto por 32 divisões destinadas a armazéns e atividade industrial, com área total de 3.417,11m2, com a Declaração de Utilização sem número emitida pelo Município ... em 01.10.2007.

v)             Na sequência do concurso público realizado, o Contrato de arrendamento foi adjudicado à Demandante tendo as partes, em 22.02.2008, celebrado o respetivo Contrato de Arrendamento;

vi)            A Cláusula Terceira do Contrato de arrendamento prevê o seguinte:

“1. A Segunda Contraente obriga-se a pagar trimestralmente ao Primeiro uma renda pelo uso do estabelecimento fabril e do prédio onde o mesmo se encontra instalado.

2. O pagamento da renda referido no número anterior será calculado, com base no valor unitário de quilos de enchido produzido.

3. O pagamento da renda terá um período de carência de um ano contado a partir do início da atividade industrial.

4. O valor da renda referida no n.º 1, encontra-se fixado no Estudo de Viabilidade Económico-Financeira do projeto, o qual reflecte a remuneração normal esperada do capital investido pelo Primeiro Contraente, segundo o valor do inventário inicial dos bens afectos ao contrato, incorporando uma actualização anual correspondente à taxa de inflação publicada pelo Instituto Nacional de Estatística.

5. A renda poderá ser revista quando haja lugar por parte da Segunda contraente, a um pedido de reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato”.

vii)          Após a celebração do Contrato, iniciou-se o período de carência previsto no n.º 3 da Cláusula Terceira;

viii)        Por referência ao ano de 2009, a Demandante pagou ao Demandado, o valor de renda anual no montante de € 4.841,69, aplicando o valor de € 0,09 (nove cêntimos) por quilograma de produto vendido, acrescido da taxa de inflação para esse ano;

ix)            Por referência ao ano de 2010, a Demandante pagou ao Demandado, o valor de renda anual no montante de € 4.326,40, aplicando o valor de € 0,09 (nove cêntimos) por quilograma de produto vendido, acrescido da taxa de inflação desse ano;

x)             Por referência ao ano de 2011, a Demandante pagou ao Demandado, o valor de renda anual no montante de € 4.107,75 aplicando o valor de € 0,09 (nove cêntimos) por quilograma de produto vendido, acrescido da taxa de inflação desse ano;

xi)            No ano de 2013, por referência ao relatório de 2012, o Demandado não emitiu qualquer fatura a título de renda devida;

xii)          O Demandado emitiu, em 14.07.2016, as seguintes sete faturas relativas à renda da concessão:

a.     Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 10.358,96, referente ao ano de 2009;

b.     Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 20.105,39, referente ao ano de 2010;

c.     Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 21.953,29, referente ao ano de 2011;

d.     Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.266,82, referente ao ano de 2012;

e.     Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.918,29, referente ao ano de 2013;

f.      Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.990,05, referente ao ano de 2014;

g.     Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.918,08, referente ao ano de 2015;

xiii)        As faturas referidas na alínea anterior não foram pagas pela Demandante;

xiv)         No estudo de viabilidade económico-financeiro constante do procedimento pré-contratual que fundamentou a decisão de contratar da Demandante refere-se, na página 3, que “os custos de exploração, entre os quais se previu uma renda de concessão de cerca de 0,9 euros por Kg. de produto vendido, deverão permitir um resultado económico anual entre 100000 e 200000 euros, suficientemente amplo para acorrer ao serviço de reembolso dos empréstimos bancários, e ainda, permitir o financiamento dos investimentos de renovação dos bens afectos à concessão pelo concedente”.

xv)          O estudo de viabilidade económico-financeiro constante do procedimento pré-contratual que fundamentou a decisão de contratar da Demandante refere, na página 3 que “a renda a pagar pela adjudicatária ao proprietário, respeite apenas à recuperação dos investimentos não co-financiados a fundo perdido” e “a rentabilidade esperada para o Município concedente será também satisfatória (…) levando a recomendar a concretização do investimento.”

 

B. Factos não provados

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

C. Fundamentação da matéria de facto

O Tribunal não está obrigado a pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamentam o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 2 a 4, do Código do Processo Civil ex vi artigo 1.º do CPTA) e consignar se a considera provada ou não provada.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do Código do Processo Civil ex vi artigo 1.º do CPTA).

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artigo 371.º do Código Civil ex vi artigo 1.º do CPTA) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

A matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos juntos pelos Demandante e Demandados bem como no processo administrativo, de que foi junta cópia os quais, analisados de forma crítica, constituem a base da convicção do Tribunal quanto à realidade dos factos descrita supra.

Foram ainda considerados o depoimento de parte e os depoimentos prestados pelas seguintes testemunhas arroladas pela Demandante:

i)         C..., representante da Demandante (depoimento de parte) que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Demandante, tendo-o feito de feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

ii)        D..., funcionária da Demandante que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Demandante, tendo-o feito de feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

iii)       E..., funcionária na Câmara Municipal ... que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Demandante, tendo-o feito de feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

iv) F..., membro, na qualidade de cooperante, da Demandante, que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Demandante, tendo-o feito de feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

v) G..., contabilista certificado, que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Demandante, tendo-o feito de feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

vi) H..., membro da direção da Demandante em 2012, que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Demandante, tendo-o feito de feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

 

V. DO DIREITO:

questão decidenda nos presentes autos visa apurar, prima facie, a correta interpretação da cláusula terceira do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, a qual determina o seguinte:

“1. A Segunda Contraente obriga-se a pagar trimestralmente ao Primeiro uma renda pelo uso do estabelecimento fabril e do prédio onde o mesmo se encontra instalado.

2. O pagamento da renda referido no número anterior será calculado, com base no valor unitário de quilos de enchido produzido.

3. O pagamento da renda terá um período de carência de um ano contado a partir do início da atividade industrial.

4. O valor da renda referida no n.º 1, encontra-se fixado no Estudo de Viabilidade Económico-Financeira do projeto, o qual reflecte a remuneração normal esperada do capital investido pelo Primeiro Contraente, segundo o valor do inventário inicial dos bens afectos ao contrato, incorporando uma actualização anual correspondente à taxa de inflação publicada pelo Instituto Nacional de Estatística.

5. A renda poderá ser revista quando haja lugar por parte da Segunda contraente, a um pedido de reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato”.

A redação da cláusula é, aparentemente, contraditória.

Assim, o n.º 2 dispõe que o pagamento da renda será calculado “(…) com base no valor unitário de quilos de enchido produzido.”

Já o n.º 4 da mesma cláusula determina que o “valor da renda (…) encontra-se fixado no Estudo de Viabilidade Económico-Financeira do projeto, o qual reflecte a remuneração normal esperada do capital investido pelo Primeiro Contraente, segundo o valor do inventário inicial dos bens afectos ao contrato, incorporando uma actualização anual correspondente à taxa de inflação publicada pelo Instituto Nacional de Estatística.”

Aqui chegados importa fazer uma breve digressão teórica pelas regras interpretativas aplicáveis ao contrato sub judice. Este excurso poderia implicar a qualificação prévia do contrato enquanto contrato público ou contrato privado. Porém, as regras interpretativas são, em grande medida, semelhantes num e noutro caso[1], pelo que, como veremos, não se afigura essencial, no caso, proceder à exata determinação da natureza jurídica do contrato em ordem a apreciar o mérito da causa.

De forma perfuntória, têm sido avançados pela doutrina os seguintes elementos de interpretação de contratos públicos e de contratos administrativos: (i) Elementos linguísticos (como o enunciado linguístico e complexo comunicativo que desembocaram na celebração do negócio jurídico, incluindo, naturalmente, as declarações das partes e as cláusulas contratuais); (ii) Elementos genéticos (análise dos actos jurídicos praticados no procedimento pré-contratual, designadamente, com análise do caderno de encargos, respostas no âmbito do direito à informação administrativa, etc..); (iii) Elementos sistemáticos (que poderá ser intrínseco, direccionado para a avaliação do suporte terminológico do clausulado contratual; e também poderá ser extrínseco, que se socorre dos princípios jurídicos que presidiram à formação do contrato) e (iv) Elementos de comportamento posterior (comportamento das partes, em período posterior à formação do contrato).[2]

Para alguns autores, a interpretação objectiva do contrato público permitirá chegar à efectiva vontade das partes pelo que se deve, em primeira linha, interpretar o contrato como um todo e de forma integrada e só depois, se e na medida do necessário, interpretar as declarações negociais.[3]

Seguindo o mesmo raciocínio empregue por alguma doutrina a propósito da interpretação de contratos públicos, “a primazia da interpretação do contrato é a posição mais adequada também do ponto de vista prático, na medida em que não é curial (nem frequente) que o intérprete inicie a sua actividade pela análise do caderno de encargos (para perceber a vontade do contraente público) e da proposta (para perceber a vontade do co-contratante). Apelando aos critérios da hermenêutica legal, a interpretação objectiva do contrato deverá ser feita, primacialmente, pelo recurso aos elementos literal e sistemático, na medida em que a análise do texto do contrato (numa perspectiva integrada de todas suas as cláusulas e anexos integrantes) é o ponto de partida da interpretação (cf. o art. 279.º do CCP e os arts. 9.º, n.º 2, e 238.º, n.º 1, do Código Civil). a interpretação deve iniciar-se, pois, pela análise da letra da cláusula ou cláusulas contratuais que regulam o problema suscitado, bem como pela captação do sentido dessa cláusula na conjugação com as demais.”[4]

Suscitando-se dúvidas sobre a vontade comum das partes, não convenientemente reflectida no quadro contratual e impedindo, assim, a interpretação objectiva do contrato, “convirá indagar a vontade das partes (ou, pelo menos, dar a estas a possibilidade de suscitarem o problema), nomeadamente através do recurso ao elemento teleológico, conjugado com o factor histórico.”[5]

Ainda no caso específico dos contratos públicos e de contratos administrativos, e “atenta a característica procedimentalização da actividade contratual administrativa, interessa considerar também para o efeito o critério hermenêutico histórico, na medida em que este último é, por regra, determinante na averiguação da real vontade das partes. Deve o intérprete, por isso, incluir na sua tarefa todos os elementos históricos do contrato, como sejam o programa do procedimento, o caderno de encargos, a proposta do adjudicatário, as decisões tomadas pela entidade adjudicante, os esclarecimentos prestados pelo adjudicatário, as suas eventuais pronúncias em sede de audiência prévia, os relatórios preliminar e definitivo e as actas de eventuais negociações. No quadro dos elementos históricos, sobressaem as negociações eventualmente mantidas pelas partes, que, por regra, estarão exaradas em acta. Além destes elementos anteriores ao contrato e dele contemporâneos, interessa analisar também os comportamentos das partes posteriores ao contrato, na medida em que podem “iluminar retrospectivamente” o sentido do contrato”.[6] [7]

No que se refere à interpretação de contratos civis, as regras gerais de interpretação das declarações negociais encontram-se previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.[8] Em termos gerais a interpretação dos contratos deve procurar a vontade real dos contraentes (designada por alguns como «interpretação subjetiva»), aplicando-se as restantes regras caso nada seja possível apurar («interpretação objetiva»). 

No primeiro caso – “interpretação subjetiva” – será adequado recorrer a elementos documentais (projetos de acordos, atas de reuniões, correspondência) ou testemunhais (nomeadamente depoimentos de quem participou nas negociações), sendo ainda relevante apurar a conduta das partes prosseguida depois da celebração do contrato, nos termos conjugados dos artigos 334.º e 762, n.º 2 do Código Civil.

Também o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre regras de interpretação dos contratos civis em abundante jurisprudência assinalando-se, aqui, o acórdão do STJ de 16/4/2013 (proc. 2449/08.1TBFAF.G1.S1)[9] no qual se concluiu da seguinte forma:

Na interpretação de um contrato, a efectuar de acordo com as normas previstas nos arts. 236.º a 238.º do CC, deve buscar-se não apenas o sentido das declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas procurar-se o sentido juridicamente relevante daquele contexto, atendendo, em especial, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a celebração do contrato ou são contemporâneas das mesmas, às negociações entabuladas pelas partes e às finalidades por elas prosseguidas, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes, e à posição assumida pelas partes na concretização do negócio.”

De forma semelhante, no acórdão do STJ proferido no processo 14/06.7TBCMG.G1.S1 entendeu-se o seguinte:

“I - O apuramento da vontade real das partes, no quadro da interpretação dos negócios jurídicos, apenas constitui matéria de direito – sujeita ao controle do STJ – quando, sendo ela desconhecida, devam seguir-se, para o efeito, os critérios fixados nos arts. 236.º a 238.º do CC.

II - As regras constantes dos arts. 236.º a 238.º do CC constituem directrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela actividade interpretativa, e o que basicamente se retira do art. 236.º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). No entanto, a lei não se basta com o sentido realmente compreendido pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário).

III - Em termos práticos, o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição do declaratário real.

IV - Se não se afigurar viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio jurídico, pois tanto a 1.ª como a 2.ª instâncias, raciocinando sobre os mesmos dados de facto e aplicando-lhes idênticas regras de direito, tiraram consequências opostas - sendo certo que de nenhuma delas se pode dizer, com segurança, não ter captado o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário - há que lançar mão do art. 237.º do CC, que dispõe para os casos duvidosos.”

Feito este breve excurso sobre as regras de interpretação dos contratos público e civis pode concluir-se que, independentemente da natureza jurídica do contrato sub judice – contrato público ou contrato civil -, haverá que seguir um iter interpretativo de harmonia com o qual (i) deve interpretar-se o contrato como um todo e de forma integrada e (ii) na medida do necessário, devem ser interpretadas as declarações negociais.

No caso em apreço suscitam-se dúvidas interpretativas em torno da cláusula terceira, n.ºs 2 e 4 do contrato de arrendamento que importa dissipar em ordem a determinar, a final, o valor da renda devido pela Demandante ao Demandado.

Sucede que a interpretação objectiva do contrato não é, in casu, apta a permitir extrair uma conclusão definitiva quanto ao valor da renda fixada.

Na verdade, o n.º 2 da cláusula terceira determina que o pagamento da renda é efectuado “com base no valor unitário de quilos de enchido produzido.”

Já o n.º 4 dispõe que o valor da renda “reflecte a remuneração normal esperada do capital investido”.

Estão em causa números que são, de alguma forma, contraditórios relativamente à forma de cálculo da renda.

Cumpre, assim, avançar para uma segunda etapa na qual se irá procurar indagar e interpretar as declarações negociais de ambas as partes.

Para o efeito devem ser analisadas, prima facie, as peças do procedimento pré-contratual - concurso público - que implicaram, a jusante, a ulterior celebração do contrato de arrendamento.

Verifica-se que a minuta do contrato de arrendamento junta ao caderno de encargos, como elemento técnico, previa uma redação da cláusula terceira rigorosamente idêntica à que veio a estar determinada no contrato de arrendamento mais tarde celebrado (como, aliás, não podia deixar de ser à luz das regras previstas no Código dos Contratos Públicos). 

Como tal, este elemento auxiliar interpretativo – a minuta do contrato de arrendamento - não é apto a permitir clarificar a dúvida existente.

É certo que, nas peças do procedimento, consta igualmente um estudo de viabilidade técnica económica e financeira.

O sumário executivo desse estudo refere que o valor da renda a pagar deve considerar o preço por quilo de produto vendido. Assim, atente-se na seguinte passagem, constante da página 3: “(…) os custos de exploração, entre os quais se previu uma renda de concessão de cerca de 0,9 euros por Kg. de produto vendido, deverão permitir um resultado económico anual entre 100000 e 200000 euros, suficientemente amplo para acorrer ao serviço de reembolso dos empréstimos bancários, e ainda, permitir o financiamento dos investimentos de renovação dos bens afectos à concessão pelo concedente”.

Porém, e também de forma algo contraditória, o estudo refere, na página 3, e a ainda a propósito do valor da renda a pagar o seguinte: “a renda a pagar pela adjudicatária ao proprietário, respeite apenas à recuperação dos investimentos não co-financiados a fundo perdido” e “a rentabilidade esperada para o Município concedente será também satisfatória (…) levando a recomendar a concretização do investimento.”

Por conseguinte, a leitura das peças do procedimento não permite esclarecer, também aqui, a dúvida interpretativa em torno do disposto na cláusula terceira, n.ºs 2 e 4 do contrato de arrendamento e, consequentemente, do montante a pagar, embora faça referência expressa a um valor de « renda de concessão de cerca de 0,9 euros por Kg. de produto vendido». 

Importa, por isso, avançar na busca de regras interpretativas que permitam apurar o sentido real do contrato. Para o efeito devemos avançar para o que a jurisprudência e a doutrina designam por “comportamentos das partes posteriores ao contrato, na medida em que podem “iluminar retrospectivamente” o sentido do contrato”” ou “interpretação subjetiva” ou ainda “a conduta das partes prosseguida depois da celebração do contrato”.

Vejamos.

Foi dado como provado que, desde o início da vigência do contrato de arrendamento – 2008 - e até 2012, a Demandante pagou ao Demandado a renda devida aplicando, para efeito de cálculo do respetivo montante, o valor de € 0,09 (nove cêntimos) por quilograma de produto vendido, acrescido da taxa de inflação.

Este valor de renda corresponde ao que resulta do disposto no n.º 2 da cláusula terceira[10].

Por outras palavras, durante a fase inicial de execução do contrato de arrendamento ambas as partes aceitaram que a fórmula prevista no n.º 2 da cláusula terceira seria a forma de determinar o valor da renda.

Na verdade, e durante um período inicial de cerca de 4 anos, nenhuma das partes contestou que essa fosse a forma adequada de proceder ao apuramento do valor da renda.

Foi apenas em 2016, decorridos oito anos desde o início da vigência do contrato, que o Demandado emitiu faturas de renda em que a fórmula de apuramento se baseou no n.º 4 da cláusula terceira e não no n.º 2 da cláusula terceira. 

Certo é que essas faturas – e a inerente fórmula de cálculo - não foram pagas ou aceites pela Demandante.

Houve, portanto, um comportamento por parte do Demandado durante toda a fase inicial de execução do contrato – 4 anos -, que exprimiu a aceitação da fórmula de cálculo prevista na cláusula terceira, n.º 2 do contrato.

Assim, pode concluir-se que o comportamento das partes posterior ao contrato permite iluminar retrospectivamente” o sentido do contrato no sentido de esclarecer que estas pretenderam aplicar ao cálculo da renda a fórmula prevista na cláusula terceira, n.º 2 do contrato de arrendamento.

Esta conclusão é ainda alicerçada na circunstância de todas as testemunhas terem sido unânimes em considerar que a forma de cálculo prevista na cláusula terceira, n.º 2 tinha sido considerada como a aplicável ao contrato de arrendamento desde o momento em que o Município iniciou o planeamento ou o desenho do procedimento pré-contratual – em diálogo informal com a Demandante – até à execução do contrato durante, pelo menos, os primeiros quatro anos.

Estamos assim perante um elemento auxiliar interpretativo essencial: o “comportamento das partes posterior ao contrato”; a “interpretação subjetiva” ou ainda “a conduta das partes prosseguida depois da celebração do contrato” que permite concluir que o valor da renda a pagar será calculado com base no n.º 2 da cláusula terceira do contrato de arrendamento.

Aqui chegados, podiam suscitar-se dúvidas em torno de saber se o valor da renda sub judice deve considerar o kg. de enchido produzido – nos exatos termos constantes da parte final da cláusula terceira, n.º 2 do Contrato – ou o kg. de enchido vendido.

Porém, também aqui essas dúvidas ou aparente contradição é dissipada tendo em consideração (a) a leitura do estudo de viabilidade técnica económica e financeira – no qual refere-se que a renda deve considerar o kg. de produto vendido; (b) o comportamento das partes posterior à celebração do contrato que, durante os quatro anos iniciais, determinou a aplicação da fórmula prevista na cláusula terceira, n.º 2 tendo em consideração o kg. de produto vendido (e não produzido) e (c) o depoimento das testemunhas ouvidas.

Nestes termos, o primeiro pedido da Demandante deve ser considerado procedente, sendo reconhecido que a interpretação do contrato de arrendamento sub judice determina que o valor da renda devido seja de 0,09€ por kg. de enchido vendido apurado com base no Relatório de gestão da Demandante e acrescido da taxa de inflação[11].

Consequentemente, determina-se que o Demandado anule as faturas emitidas relativas aos anos de 2012 e seguintes bem como todos os atos praticados relacionados com a emissão dessas faturas, baseados na errada interpretação do Contrato.

A Demandante pede ainda que seja reconhecida e declarada a prescrição das rendas devidas até julho de 2016, por sobre as mesmas ter decorrido um prazo superior a 5 anos considerando que, de harmonia com o artigo 310.º, alínea b) do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos as rendas e alugueres devidos pelo locatário.

Sucede que a Demandante procedeu ao pagamento das rendas referentes aos anos de 2010 e 2011 pelo que, relativamente a estes anos, a invocada prescrição não pode ocorrer uma vez que a obrigação já foi cumprida e extinta.

Por outro lado, é sabido que o prazo de prescrição previsto no artigo 310.º do Código Civil conta-se desde a data de vencimento da renda.

No caso sub judice, a renda seria calculada de harmonia com a cláusula terceira, n.º 2, como ficou anteriormente evidenciado.

É certo que a Demandante não enviou para o Município os alegados valores das produções / vendas referentes aos anos em dívida, desde 2012, razão pela qual o Demandado entende que a invocada prescrição não terá ocorrido.

Não obstante entende-se que o Demandado podia, durante o período em falta, ter solicitado à Demandante informação sobre a produção realizada, por forma a emitir as competentes faturas. Ora não foi alegado nem dado como provado que o tenha feito.

A invocação da falta de elementos, por parte do Senhorio (neste caso o Demandado), para afastar o regime da prescrição de cinco anos, a ser procedente, seria apta a gerar uma insegurança e incerteza jurídica à luz da qual o artigo 310.º do Código Civil não pode ser interpretado. 

Basta pensar, por exemplo, no montante de renda variável que, frequentemente, alguns inquilinos de lojas estão sujeitos. 

A ser aceite a tese preconizada pelo Demandado, a prescrição das rendas variáveis, quando se verificasse a eventual inação do senhorio face à falta de informação disponibilizada pelo inquilino, jamais ocorreria.

Ora este entendimento não pode, de todo em todo, proceder.

Por outro lado, a contagem do prazo de prescrição deve considerar que ambas as partes celebraram um compromisso arbitral, em 15 de julho de 2021, de harmonia com o qual reconheceram manter um diferendo quanto à interpretação das normas relativas à execução do contrato, nomeadamente sobre o valor da renda devido pela Demandante.

A esta luz, não pode deixar de se concluir que a celebração deste compromisso arbitral interrompeu a prescrição relativamente às rendas vencidas, nos termos resultantes do disposto no artigo 324.º do Código Civil.

Estando consagrado um regime de pagamento anual da renda, a prescrição da renda operará desde o momento da última renda paga antes de 15 de julho de 2016 – i.e. 2012 – até essa data – 15 de julho de 2016.

Consequentemente reconhece-se e declara-se a prescrição das rendas devidas pela Demandante ao Demandado desde 2012 até 15 de julho de 2016.

Fica assim prejudicada a análise dos restantes pedidos da Demandante.

 

VI. DECISÃO:

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral:

A)   Reconhecer que a interpretação do contrato de arrendamento sub judice determina que o valor da renda devido seja calculado de harmonia com o disposto na cláusula terceira, n.º 2, equivalendo a 0,09€ por kg. de enchido vendido, apurado com base no Relatório de gestão da demandante e acrescido da taxa de inflação;

B)   Determinar que o Demandado anule as faturas emitidas relativas aos anos de 2012 e seguintes bem como todos os atos praticados relacionados com a emissão dessas faturas, baseados na errada interpretação do contrato de arrendamento sub judice;

C)   Declarar prescritas as rendas devidas pela Demandante ao Demandado desde 2012 até 15 de julho de 2016;

 

VII. VALOR DO PROCESSO:

Nos termos previstos no compromisso arbitral celebrado pelas partes, nada foi determinado quanto ao valor da causa. 

Assim, nos presentes autos, a Demandante considerou que o valor da causa seria de 30.001,00€.

Cumpre apreciar se esse é o valor correto da presente ação arbitral.

A decisão quanto ao valor da causa, na falta de disposição específica do regulamento do CAAD e da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), terá de ser feita ao abrigo do regime supletivo que se determinou. 

Para a determinação do valor do processo sub judice, cumpre atender ao disposto nos artigos 31.º a 34.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) que fixam as regras relativas à determinação do valor da causa no âmbito do processo administrativo. 

Nos termos do n.º 1 do artigo 31.º do CPTA determina-se que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”. 

De acordo com o artigo 32.º, n.º 2 do CPTA, quando pela ação se pretenda obter um benefício diverso do pagamento de uma quantia, o valor da causa é a quantia equivalente a esse benefício.

Ainda nos termos do número 3 do mesmo artigo, quando a ação tenha por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um contrato, atende-se ao valor do mesmo, determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

Por fim, nos termos do n.º 7 do mesmo preceito legal, quando sejam cumulados, na mesma ação, vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles, mas cada um deles é considerado em separado para o efeito de determinar se a sentença pode ser objeto de recurso, e de que tipo.

Nos presentes autos, a Demandante faz diversos pedidos.

Assim, a Demandante pede que o Demandado (a) seja condenado ao reconhecimento da interpretação do Contrato de Arrendamento, segundo a qual o valor de renda devido é de 0,09€ por quilograma de enchido vendido (…) (b) ser o Demandado condenado no deferimento do pedido de reequilíbrio financeiro do Contrato apresentado e em consequência fixar-se o valor de renda a partir de julho de 2016 e até final do ano de 2021 no montante de € 22.354,87; E em qualquer dos casos, (c ) ser o Demandado condenado a anular as faturas indevidamente emitidas relativas aos anos 2012 e seguintes e todos os demais atos por ele praticados no âmbito do Contrato e na sua sequência, assentes no entendimento e interpretação errados do Contrato; (d) ser reconhecida e declarada a prescrição das rendas devidas até julho de 2016, por sobre as mesmas ter decorrido um prazo superior a 5 anos; ou caso assim não se entenda, e improcedendo os pedidos supra identificados em a) ou b), e subsidiariamente, ( e) ser resolvido o Contrato de Arrendamento celebrado entre a Demandante e o Demandado, com fundamento em erro, nos termos do n.º 2 do artigo 252.º e n.º 1 do artigo 437, ambos do Código Civil.

Vejamos qual o valor económico de cada um dos pedidos.

No primeiro caso - reconhecimento da interpretação do Contrato de Arrendamento – será aplicável o disposto no artigo 32.º, n.º 3 do CPTA, devendo atender-se ao valor do contrato de arrendamento. Não sendo possível apurar, com rigor, o valor da renda devida – uma vez que este é, justamente, o tema do litígio em apreço – admite-se fixar o valor deste pedido em 30.000,01€, conforme determinado pelo Demandante e ao qual não se opôs o Demandando.

O segundo pedido - ser o Demandado condenado no deferimento do pedido de reequilíbrio financeiro do Contrato apresentado e em consequência fixar-se o valor de renda a partir de julho de 2016 e até final do ano de 2021 no montante de € 22.354,87 – inclui o valor económico associado pelo que é este que deve ser considerado: € 22.354,87.

O terceiro pedido - ser o Demandado condenado a anular as faturas indevidamente emitidas relativas aos anos 2012 e seguintes e todos os demais atos por ele praticados no âmbito do Contrato e na sua sequência, assentes no entendimento e interpretação errados do Contrato – implicará a anulação das seguintes sete faturas relativas à renda da concessão:

a.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 10.358,96, referente ao ano de 2009;

b.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 20.105,39, referente ao ano de 2010;

c.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 21.953,29, referente ao ano de 2011;

d.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.266,82, referente ao ano de 2012;

e.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.918,29, referente ao ano de 2013;

f.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.990,05, referente ao ano de 2014;

g.         Fatura datada de 14.07.2016, no montante de € 23.918,08, referente ao ano de 2015;

Num total de 147.510,88€, montante que deve ser considerado para efeitos de determinação do valor da presente ação.

Os quarto e quinto pedidos decorrerão da eventual improcedência dos pedidos anteriores.

Assim, e tendo presente o disposto no artigo 32.º, n,º 7 do CPTA, determina-se que o valor da presente causa é de 199.895,76€ (cento e noventa e nove mil oitocentos e noventa e cinco euros e setenta e seis cêntimos), valor correspondente à soma dos montantes anteriormente referidos, em detrimento do valor inicialmente atribuído pela Demandante, de € 30 000,01.

 

VIII. CUSTAS:

Nos termos da cláusula sexta do compromisso arbitral as custas, no valor de 3.672,00€ (três mil seiscentos e setenta e dois mil euros), serão suportadas em partes iguais pelas partes.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 24 de janeiro de 2023

 

Os Árbitros

 

(Nuno Cunha Rodrigues (Presidente e relator))

 

 

(João Pacheco de Amorim (com declaração de voto))

 

 

(Margarida Olazabal Cabral)

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO

 

Voto parcialmente vencido o presente acórdão, pelas razões que se seguem.

 

I

 

1. Divirjo das premissas de que parte o projeto de acórdão. 

Começando pela questão da natureza do contrato (se administrativo, se de direito privado), não me parece que, num caso e noutro, sejam os mesmos os cânones hermenêuticos e a própria hierarquia de fontes, razão pela qual, a meu ver, o primeiro aspeto a assentar é (terá de ser) este. 

Pois bem, não obstante a designação que as partes deram ao contrato, parece-me seguro, pela análise do respetivo clausulado, e à luz dos critérios clássicos de distinção entre contrato administrativo e contrato privado da Administração, que estamos perante um contrato administrativo de colaboração subordinada, com notas que o distanciam do arrendamento e o aproximam do modelo concessório. Mas vejamos.

 

2. Em primeiro lugar, é verdade que o contrato envolve a cedência pelo contraente público de um bem imóvel, e, como contrapartida da respetiva utilização, o pagamento trimestral pelo cocontratante de uma quantia a título de «renda». 

Mas ele não assenta apenas nesse pressuposto, nem as prestações das partes se resumem àquelas cedência e pagamento. Na verdade, o objetivo prosseguido pelo contraente público com a celebração do contrato não oferece especial relevo do ponto de vista do interesse público financeiro e do mero dever de boa administração, ou seja, de uma finalidade de (máxima) rentabilização do respetivo património. E muito menos se esgota ele com a prossecução desses fins análogos aos prosseguidos pelos privados com a celebração de contratos de arrendamento e que normalmente presidem aos que a Administração também celebra como locadora nessa lógica (e que a lei submete, por isso, à partida, e em primeira linha, à lei civil, mais precisamente ao NRJA e ao Código Civil – cf. art.º 61.º do RJPIP).

É, por conseguinte, outra a lógica deste contrato, o que fica claro quando o contraente público deixa expresso que, através da execução do contrato, apenas visa apenas recuperar o seu investimento (e não os demais fundos públicos aplicados) a fim de “transferir os benefícios do cofinanciamento diretamente para o produtor e, indiretamente, para os consumidores”, propiciando, dessa forma, “menores custos de produção e a prática de menores preços de venda ao consumidor final”; e quando recaem sobre o cocontratante ónus e obrigações ligados à exploração do estabelecimento como os implicados pelo último considerando do Preâmbulo (par.º 5.º) e os especificamente estipulados nas Cláusulas 4.ª. n.º 1, al. a), 6.ª, n.ºs 1 e 3, 8.ª, 9.ª e 10.ª, n.º 2, al. b). Não por caso, aliás, se fala, na pág. 3.ª do Estudo de Viabilidade Económica que integra o Caderno de Encargos, numa «renda de concessão».

Afigura-se, pois, inequívoco que o objeto mediato do contrato é, mais do que um imóvel, um verdadeiro estabelecimento (cf. Cláusula 10.º, com a esclarecedora epígrafe «Devolução do Estabelecimento») – mais precisamente um B..., cuja construção, financiada por fundos da própria autarquia e por outros fundos públicos, foi promovida pelo Município para ser tal universalidade de bens explorada exclusivamente com essa finalidade produtiva, aliás bem expressa e detalhada no «Preâmbulo», e com os menores custos possíveis para os consumidores, prevendo-se e regulando-se a afetação de bens móveis, designadamente equipamentos industriais, resultantes não apenas de um investimento do «arrendatário», mas de investimento inicial do próprio município (cf. parte final do par.º 4.º da Preâmbulo, e Cláusulas 5.ª e 6.º).

 

3. Em segundo lugar, e decisivamente no sentido da natureza administrativa do contrato, tenham-se presentes (i) os poderes atribuídos ao contraente público, de modificação e resolução unilaterais do contrato (Cláusulas 1.ª, n.º 3, e 15.ª, n.º 2) e de fiscalização da atividade do cocontratante (Cláusula 10.ª), (ii) o direito do cocontratante ao reequilíbrio financeiro associado ao poder do contraente público de modificação unilateral do contrato e à ocorrência de força maior (Cláusulas 1.ª, n.º 3, 11.ª e 14.ª), (iii) o interesse público de desenvolvimento económico do município prosseguido com a execução do contrato (1.º, 5.º e 6.º parágrafos do preâmbulo e Cláusula 4.ª, n.º 1, al. a)) e o regime de reversão dos bens afetos à execução contratual (Cláusula 5.ª).

Resulta da natureza administrativa do contrato, por um lado, a obrigatoriedade da precedência de um procedimento de concurso público (cf. art.º 183.º do CPA de 1991), e, por outro lado, a aplicação “aos contratos administrativos dos princípios gerais de direito administrativo e, com as necessárias adaptações, das disposições legais que regulam as despesas públicas e as normas que regulem formas específicas de contratação pública” – no caso, do DL 197/99 e do último REOP, cujas disposições, e designadamente aquelas que nos interessam, eram similares aos normativos do CCP que regulam atualmente estas matérias.

Estando nós perante um verdadeiro e próprio contrato administrativo, com todo o respeito pela opinião do Dr. Tiago Amorim convocada pelo Tribunal, e ao contrário do sustentado por este autor, deve, a meu ver, iniciar-se a operação de interpretação do contrato pela análise do caderno de encargos e da proposta, e não do clausulado contratual, seguindo-se a hierarquia hoje explícita no n.º 6 do art.º 96.º CCP, onde se determina que, em caso de divergência entre, por um lado, o caderno de encargos e a proposta (e demais documentos constantes do n.º 2 do mesmo artigo) e, por outro lado, o clausulado do contrato, deverão prevalecer os primeiros sobre o segundo.

Mais decorre da natureza administrativa do contrato, a meu ver, o necessário afastamento de outra premissa em que assenta o raciocínio desenvolvido no projeto de acórdão, relativa à sua interpretação: é que são o direito civil e os seus princípios (designadamente os que mandam atender antes do mais à vontade real das partes e que relevam a conduta posterior destas para efeitos de aferição dessa vontade real) relegados para um papel subsidiário; sobressai pois, em detrimento da lógica civilista, um princípio de estrita e rígida legalidade procedimental e formal, com expressa prevalência do caderno de encargos (neste se incluindo o EVEF) sobre o clausulado contratual, devendo este ser interpretado à luz daquele. 

Deverão assim prevalecer, creio, as regras da «interpretação objetiva» sobre as da «interpretação subjetiva» (que mandam indagar, antes do mais, a vontade real dos contraentes, aí se incluindo a análise da conduta das partes posterior ao contrato na medida em que ela seja – possa ser – reveladora dessa vontade).

 

 4. Ajuda-nos, pois, a encontrar uma interpretação integrada e coerente do disposto no n.º 2 e nos n.ºs 4 e 5 da Cláusula Terceira, assim como desta cláusula com a Cláusula Décima Primeira, o recurso ao disposto no clausulado do caderno de encargos (o qual, reitere-se, é integrado também pelo EVEF), com o valor e a força jurídica desta peça resultantes da aplicação conjugada (i) do último capítulo do CPA de 1991, (ii) da legislação reguladora, à época, dos procedimentos pré-contratuais dos contratos da administração de fornecimentos, serviços e empreitadas de obras públicas, e ainda, (iii) do regime substantivo deste último tipo contratual (dada, reitere-se, a natureza administrativa do contrato).

Uma vez assentes aquelas que são, no meu entender, as premissas corretas para a resolução do problema interpretativo que se nos coloca, fica, por assim dizer, «iluminado» o caminho que devemos percorrer.

 

II

 

5. Recorde-se, dispõe o n.º 2 da Cláusula Terceira («Renda»):

“2. O pagamento da renda referido no número anterior será calculado com base no valor unitário de quilos de enchido produzido

Reza, por seu turno, o n.º 4 da mesma Cláusula Terceira:

“4. O valor da renda referida no n.º 1 encontra-se fixado no Estudo de Viabilidade Económico-financeira do projeto, o qual reflete a remuneração normal esperada do capital investido pelo Primeiro contraente, segundo o valor do inventário inicial dos bens afetos ao contrato, incorporando uma atualização anual correspondente à taxa de inflação publicada pelo Instituto Nacional de Estatística”.

E, ainda com relevo para a interpretação da Cláusula Terceira no seu todo, prevê o seu n.º 5:

“5. A renda poderá ser revista quando haja lugar, por parte da segunda contraente, a um pedido de reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato”.

Por último, temos na Cláusula Décima Primeira («Equilíbrio económico-financeiro do contrato») o regime da reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato a pedido da Segunda contraente.

 

6. Comece por se dizer que não sufrago nem a interpretação da Demandante, nem a do Demandado (e que foi também a acolhida pela maioria dos árbitros), porque nenhuma das duas dá, creio eu, uma explicação consistente, integrada e global do conjunto da Cláusula Terceira («Renda»), ou seja, de todos os seus cinco números, assim como da existência da Cláusula Décima Primeira («Equilíbrio económico-financeiro do contrato»), que desenvolve a previsão do n.º 5 da dita Cláusula Terceira.

Na verdade, ambas as interpretações são, a meu ver, incapazes de fornecer uma explanação ora (i) que tenha na letra de cada uma daquelas estipulações “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (falta essa correspondência na interpretação que o Demandante faz do n.º 2, para além de ser pouco convincente o objetivo ou resultado alegadamente visado por esta específica disposição), ora (ii) que não esvazie de sentido ou significado jurídico parte das estipulações desses cinco números (como acontece com a interpretação perfilhada pelo Tribunal, que, no meu entender, anula por completo qualquer efeito ou utilidade quer da segunda parte do n.º 4 e todo o n.º 5 da Cláusula Terceira, quer de toda a Cláusula Décima Primeira).

 

7. Pois bem, é a meu ver possível uma interpretação que concilie o disposto nos referidos números 2, 4 e 5 da Cláusula Terceira, e desta última no seu todo com a Cláusula Décima Primeira, apresentando um mínimo de correspondência com a respetiva letra, e que não esvazie e torne de todo inútil ou redundante qualquer daquelas três previsões, assim como a dita Cláusula Décima Primeira no seu todo.

Passa tal interpretação por entendermos que a Cláusula Terceira consagra uma renda com duas componentes: 

(a)  uma componente fixa, até um determinado limiar fornecido pelo Caderno de Encargos (mais precisamente, pelo EVEF – Estudo de Viabilidade Económico-Financeiro, que o integra para todos os efeitos, e em cuja pág.ª 26 se diz: «Renda da concessão: estabeleceu-se como renda da concessão um valor correspondente a 6.% do valor dos investimentos afetos à concessão, efetuados pelo município concedente e não financiados a fundo perdido. Tal renda reflete o rendimento esperado das aplicações imobiliárias com atualizações anuais de acordo com a taxa de inflação»), 

(b) uma componente eventual e variável a partir desse limiar, através de uma indexação à quantidade de quilos produzidos: assim, e na eventualidade de o volume de vendas de cada ano ultrapassar o referido limiar dos 6% do valor dos investimentos municipais não financiados a fundo perdido, acrescerá aos ditos 6%, por cada quilo de enchidos vendido, mais 0,09% do valor de venda desse quilo.

Tal obriga-nos, contudo, e por um lado, (i) a proceder a uma interpretação extensiva do segmento inicial do n.º 4, segundo a qual, onde se lê “O valor da renda referida no n.º 1”, se deva ler “O valor mínimo da renda referida no n.º 1”; e, por outro lado, (ii) a concluir que o n.º 2, ao não indicar o valor unitário, opera uma remissão implícita para o CE/EVEF, sendo que esta disposição só se aplica no caso de o volume anual de vendas ultrapassar o limiar dos 6% do valor dos investimentos municipais não financiados a fundo perdido

 

8. Ficou deste modo fixado, creio, no interesse do contraente público, um limiar mínimo de renda correspondente a uma produção anual mínima de quilos de enchido. Aqui o objetivo expresso e imediato foi o de possibilitar a recuperação do investimento exclusivamente municipal (não financiado). Mas não deixou de ser também um objetivo igualmente visado, creio, ainda que de modo implícito e indireto, a pressão sobre o cocontratante no sentido de deste produzir e vender uma quantidade mínima de enchidos com o selo de qualidade do Centro, de forma a acomodar (também) o custo com a renda. 

À luz não só do interesse público financeiro, mas também e ainda dos princípios da concorrência, da igualdade e da transparência, foi também um objetivo prosseguido, seguramente, o de sancionar, com a fixação desse limiar mínimo, uma exploração menos eficiente. O contrato não investe, assim, propriamente o cocontratante num dever de produzir anualmente um mínimo de quilos de enchido (hipótese seguramente mais penalizante para o privado, por poder constituir o não atingimento dessa meta fundamento de resolução do contrato pela Administração), mas antes num ónus – ónus esse que não deixa, todavia, de pressionar o dito contratante a garantir, pelo menos, aquele nível de produção, sob pena de, não o fazendo, se agravar, na respetiva estrutura de custos, a componente do valor da contrapartida a pagar ao contraente público.

 

9. Questão que se suscita é a razão pela qual o valor unitário a que se refere o dito n.º 2 não consta desta estipulação, nem de qualquer outro número da Cláusula Terceira, designadamente do n.º 4, remetendo (necessariamente) os contraentes para o CE, ou seja, para o EVEF, peça(s) que, como é sabido, integra(m) o contrato. 

Pois bem, só podem estar subjacentes a essa omissão quer preocupações formais de simplificação da redação da cláusula, quer ainda o objetivo de possibilitar o ajustamento das obrigações do cocontratante ao real cronograma de instalação do Centro, que na altura da redação da minuta do contrato já se previa não corresponder ao previsto do EVEF. 

Se bem virmos, o EVEF, na pág. 28, dá-nos diferentes valores para os anos de 2006, 2007 e 2008, respetivamente 0,007€/K, 0,089 e 0,092€/K (estabilizando-se o coeficiente no patamar dos 0,090 – com arredondamento por baixo – a partir do terceiro ano de execução do contrato, em que se previa atingir a chamada «velocidade de cruzeiro»). Ora, este cronograma sofreu necessariamente alterações, uma vez que o contrato só foi assinado em fevereiro de 2008.

Dadas, pois, as (muitas vezes relevantes) diferenças temporais entre os momentos de (i) elaboração do CE/EVEF, de (ii) redação da minuta do contrato e de (iii) celebração do contrato, por razões de «economia» e simplicidade, na redação da minuta do contrato a entidade adjudicante não quis especificar os diferentes valores para os diferentes anos, nem se quis comprometer com anos determinados.

 

10. Idêntica omissão temos no n.º 4, o qual remete também os contraentes (só que agora de forma explícita) para o CE/EVEF. 

Contudo, aqui o valor ou força vinculativa do disposto neste número, especialmente a sua segunda parte (…o qual reflete a remuneração normal esperada do capital investido pelo Primeiro contraente, segundo o valor do inventário inicial dos bens afetos ao contrato…) foi, de algum modo, desvalorizado pelo Tribunal, em razão de um teor agora, e na aparência, mais enigmaticamente remissivo, uma vez que quer o valor do investimento municipal não cofinanciado, quer o percentual de 6%, estariam supostamente «chapados» no EVEF, mais precisamente na pág. 27. Vingou por isso o entendimento de que a remissão do segmento inicial do n.º 4 se referia (tão só) ao valor unitário, negando o Tribunal qualquer significado, força ou valor jurídico a toda a segunda parte da disposição em causa. 

Todavia, e começando pela letra da disposição em causa, a remissão do n.º 4 não parece reportar-se ao valor a que se refere o n.º 2 (que é o valor unitário), mas à renda, tout court, ou globalmente considerada (isto é, ao «valor final»), porquanto não remete para o dito n.º 2, mas antes para o n.º 1 (1. “A Segunda contraente obriga-se a pagar trimestralmente ao Primeiro contraente uma renda pelo uso do estabelecimento fabril e do prédio onde o mesmo se encontra instalado”).

Acresce que também temos aqui uma (mais) justificada causa para esta segunda omissão no dito n.º 4, e prende-se ela com a incógnita do montante do investimento municipal não cofinanciado a fundo perdido: com efeito, não era ainda seguro, quando foi elaborada a minuta do contrato, esse quantitativo; e o certo é que se veio a revelar inferior, por ter o investimento global efetivo sofrido uma diminuição face ao previsto no EVEF (em vez dos € 900.000,00 previstos no EVEF, quedou-se pelos € 849.879,36, reduzindo-se também proporcionalmente o valor do investimento não cofinanciado a fundo perdido, que se fixou nos € 363.693,52).

 

11. Por último – e como sublinha, neste ponto bem, o Demandado –, inexistindo uma obrigação de pagamento efetivo de uma renda anual correspondente (no mínimo, acrescento eu) a 6 % do valor dos investimentos afetos à exploração do estabelecimento efetuados pelo município e não financiados a fundo perdido, não faria qualquer sentido a previsão do regime de reposição do equilíbrio económico-financeiro constante do n.º 5 da Cláusula Terceira e da Cláusula Décima Primeira. 

Na verdade, com uma renda indexada às vendas, por pior que fosse o seu desempenho, nunca a cocontratante, por definição, correria o risco de ficar numa situação de desequilíbrio financeiro a que uma redução da dita renda pudesse pôr cobro. Com efeito, e no limite, se a cocontratante se limitasse a produzir um quilo de enchidos ao longo do ano, só teria de pagar ao contraente público, como contrapartida anual pelo direito de exploração do estabelecimento, os 0,09€ correspondentes à venda do dito quilo. O mesmo é dizer que nada, ou quase nada, haveria para reduzir.

Note-se, não quer isto dizer que, com uma tão baixa produtividade, mesmo não pagando quase nada de renda, a situação da contratante não fosse (não pudesse ser) de desequilíbrio financeiro: o problema é que o reequilíbrio, nesse caso, nunca poderia ser alcançado com a redução de uma renda quase inexistente. Por isso é que, a meu ver, a interpretação da Cláusula Terceira acolhida pelo Tribunal inutiliza, e por completo, quer o n.º 5 da Cláusula Terceira, quer a Cláusula que desenvolve e concretiza esse n.º 5, e que é a Cláusula Décima Primeira.

 

12. Independentemente de tudo o que se vem de dizer, no meu entender, equivoca-se também o Tribunal quanto ao seguinte: é que as ambas partes, e, sobretudo, a Demandante, manifestaram nos anos de 2016 e 2017, de forma explícita, e por escrito, o entendimento de que o contrato, por força da remissão para o CE/EVEF, obrigava efetivamente ao pagamento de uma renda anual num valor correspondente a 6% do valor dos investimentos afetos à exploração do estabelecimento efetuados pelo município concedente e não financiados a fundo perdido – qualificando-a a A..., mesmo, como um dos elementos essenciais de base do Contrato.

É por isso fundamental o requerimento da A... datado de 31 de outubro de 2016 (com registo de entrada datado de 15 de novembro de 2016), e dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., documento que consta do processo administrativo e que é referido no art.º 15.º da PI: dada a importância do seu conteúdo, designadamente o entendimento perfilhado pela A... relativamente à Cláusula Terceira do Contrato e que aí se expressa sem qualquer ambiguidade, deveria a manifestação deste entendimento pela Demandante constar, desde logo, do elenco dos factos provados.

Na verdade, afirma a Direção da «A...», nesse requerimento, que “[à] data do início da concessão do serviço de exploração do Centro, o quadro contratual estabelecido assentava num estudo de viabilidade económico-financeira” baseado em “pressupostos (…) dos quais alguns se não verificaram, razão (…) subjacente à alteração do valor da rendaa pagar pela exploração do Centro (…)Sucede que, desde o início da sua atividade, a Cooperativa defrontou-se com vários constrangimentos de ordem operacional e comercial (…)”, tendo a sua Direção constatado “que o valor da renda a pagar ao Município não podia assentar numa estimativa de enchido produzido”, situação essa que onerava “significativamente a estrutura de custos e a viabilidade económico-financeira da Cooperativa (…)”. Identificando-se assim “um pressuposto que desvirtuava, à partida, a base contratual em que deviam assentar os compromissos contratuais entre as partes (…)”, tal levou a Direção da Cooperativa a solicitar “ao então Presidente da Câmara Municipal, Professor Sousa Gomes, um ajustamento no valor da renda anual a pagar, que passaria por levar em linha de conta não a estimativa da produção prevista no EVEF, mas sim o volume de enchidos vendidos pelo Centro, situação que se revelaria a mais adequada à gestão da exploração. Aliás, a alteração do valor da renda estava prevista na Cláusula Terceira, no número 5, o que foi pedido pela A... 

“Neste contexto, e tendo por base a vontade das partes, a Câmara Municipal ... aceitou e acordou nesta alteração de um dos elementos essenciais de base do contrato, e passou a emitir uma renda de 0,10€/Quilo, aumentando o valor inicial de 0,09€/Quilo, e a não considerar o valor decorrente do investimento (…). Assim, e “após o termo do período de carência contratual, a A... sempre recebeu as faturas da Câmara Municipal de ... com o valor decorrente da alteração proposta apresentada e aceite e nunca pelo valor decorrente do inicialmente estabelecido na mencionada Cláusula Terceira”. Por essa razão, “e após terem decorridos mais de 8 anos de exploração do Centro (…)”, é para a Direção da A... preocupante a “intenção da Câmara (…) de cobrar valores que não se encontram refletidos materialmente no acordado entre a Câmara Municipal e a A...”. Mais sublinha a Direção da A... o assentar a sua pretensão “numa modificação contratual ocorrida decorrente do acordado entre as Partes, que de boa-fé e de forma inequívoca pretenderam ajustar a base do contrato em questão, situação prévia ao disposto na Cláusula Décima Primeira”.

Entende aqui a A..., por conseguinte, o ter sido o contrato modificado pelas partes a seu favor, na sequência de um pedido nesse sentido dirigido ao Presidente da Câmara, no ano de 2010. Acontece que, e como bem nota o Demandado (e sem colocar em dúvida algum tipo de acordo informal que a este respeito possam ter chegado a direção da A... e o então Presidente da Câmara ... em 24.09.2010), não há no processo administrativo qualquer documento que o ateste (cf. art.º 15.º da contestação) – sendo que, mesmo que assim fosse, nunca teria o Presidente da Câmara competência para, fosse unilateralmente, fosse pela via do consenso, promover qualquer alteração ao Contrato, por pertencer essa competência à Câmara (cf. art.º 16.º da contestação). E muito menos, como também nota o Demandado no art.º 18.º da contestação, poderiam os atos de processamento dos documentos de receita para efeitos de recebimento da «renda» emitidos até então pelos serviços camarários ter a força e o valor jurídicos de atos de modificação do contrato administrativo em causa. Na verdade, há exigentes requisitos de competência, de forma e de procedimento para qualquer alteração ao clausulado de um contrato administrativo que, a admitir-se o dito acordo informal, não teriam sido aqui, de todo, observados.

Apercebendo-se desta insuperável dificuldade, e de forma habilidosa, resolveu a Demandante contorná-la, e ignorar na sua contestação toda esta factualidade e a respetiva documentação de suporte datada de 2016 (e do começo de 2017) – procurando fazer crer que, ao invés, foi o Demandante quem, inopinadamente, e a partir desse ano de 2016, deixou “de emitir a fatura correspondente ao valor de renda indexado ao número de quilos de enchido vendido, como estava contratualizado, mas sim indexado a uma percentagem de recuperação do capital” (art.º 32.º da contestação), “tendo passado a calcular esse valor de forma diferente daquela que está plasmada no Contrato de Arrendamento” (art.º 33.º), e “a faturar valores sem qualquer correspondência com o que havia sido contratado entre as partes” (art.º 34.º).

Afinal, “o que está em causa não é efetivamente um reequilíbrio financeiro do contrato” que tenha alguma vez sido pedido pela Demandante, mas tão só uma sua (dela Demandante) singela e defensiva “pretensão de que a renda anual seja calculada de acordo com aquilo que foi convencionado entre as partes, constante do Contrato” (art.º 61º da contestação), face a uma abrupta modificação do Contrato pelo Demandado, “sem que nunca (este) tivesse oferecido qualquer explicação para a alteração unilateral do Contrato, e faturando a renda à Demandante conforme bem entendeu, sem qualquer correspondência com o Contrato de Arrendamento”.

A Demandante disse primeiro uma coisa, e depois veio dizer o seu contrário em tribunal!

            

13. O Tribunal valorizou decisivamente a conduta adotada pelas partes, e designadamente pelo Demandado, até 2016, no que se refere ao pagamento da renda – e valorizou no sentido de ser tal conduta confirmativa da vontade real das partes, quando celebraram o Contrato, de consagrar o critério de determinação da renda que viriam a aplicar, de facto, na respetiva execução.

Já se viu, contudo, que, tratando-se, como se trata, de um contrato público com a natureza de contrato administrativo, pouco releva uma «interpretação subjetiva» que se apure também, e entre outros elementos, a partir do comportamento posterior das partes. Assim, se, objetivamente, se extrair do contrato um determinado significado e alcance – no caso, que a renda será uma, e não outra –, o deficiente ou insuficiente cumprimento do contrato, mesmo que a partir de uma sua errónea interpretação (p.ex., que julgasse ser outra a renda a partir de uma errónea interpretação do contrato – o que, como vimos, não é sequer o caso), não tem, obviamente, o condão de «reverter» a interpretação que se revele ser a (mais) correta. Assim, se o contraente público, com prejuízo para o interesse público que lhe cumpre defender (e simétrico benefício para o cocontratante), atendeu na execução do contrato, e até 2016, apenas à componente variável da renda, e não (antes do mais) à componente fixa ou limiar mínimo, tal não tem o condão de mudar «retrospetivamente» o significado e alcance do contrato, nem de o modificar tacitamente (por força da prática, uso ou costume). O mais que a Câmara Municipal de ... tinha de fazer era (é), efetivamente, aquilo que fez, ou seja, tentar «corrigir o tiro».

Contudo, mesmo que se aceite a tese do Tribunal, esta sempre improcederia, a partir do momento em que está documentalmente provado no processo que as partes, e designadamente a Demandante, manifestaram nos anos de 2016 e 2017, de forma explícita, e por escrito, o entendimento de que o contrato, por força da remissão para o CE/EVEF, obrigava efetivamente ao pagamento de uma renda anual num valor correspondente a 6% do valor dos investimentos afetos à exploração do estabelecimento efetuados pelo município concedente e não financiados a fundo perdido – qualificando-a a Demandante, mesmo, como um dos elementos essenciais de base do Contrato. E sempre improcederia esse entendimento a partir do momento em que, concomitantemente, também se apura o ter sido até 2016 aplicada apenas a componente variável da renda, e não (antes do mais) a componente fixa ou limiar mínimo, no pressuposto ou suposição de tal ter resultado de um acordo de modificação do contrato ocorrido em 2010 – e não por terem as partes interpretado o Contrato, desde o início, no sentido de aí estar consagrada, tão só, a dita componente variável.

 

14. Elemento sistemático de interpretação, que reforça o entendimento aqui sustentado, e como nota também o Demandado nos art.º 48.º a 61.º da sua contestação, é o do princípio do equilíbrio das prestações, hoje expresso no art.º 281.º do CCP («Proporcionalidade e conexão material das prestações contratuais»), que determina (determinaria) a invalidade do contrato, vingando a tese do Tribunal. Segundo esse princípio, o contraente público não pode assumir direitos ou obrigações manifestamente desproporcionados. Ora, seria manifestamente desproporcionado, no sentido de tal acarretar para o contraente público um elevado prejuízo (designadamente financeiro) e o cocontratante um benefício desmesurado também da mesma ordem, se se entendesse vigorar apenas a componente variável da renda.

O mesmo se diga dos princípios da concorrência, da igualdade e da transparência: também estes princípios saem (sairiam) beliscados com a tese sufragada pelo Tribunal; com efeito, entidades que não chegaram a apresentar proposta dadas as exigências do Caderno de Encargos e do EVEF, vistas com os olhos de um normal e prudente destinatário, poderiam, fossem outras as condições, ter concorrido e apresentado uma melhor proposta económica do que a apresentada no concurso público pela A... .

 

III

 

15. Não teria, pois, dado provimento aos pedidos da Demandante, (i) de condenação do Demandado ao reconhecimento da interpretação do Contrato segundo a qual o valor da renda devido é de 0,009 € por quilo de enchido vendido, qualquer que seja a quantidade efetivamente produzida ou vendida, e (ii) de anulação dos atos praticados pelo Município relativos à emissão dos documentos da renda ainda não prescritos. 

Já acompanho a posição do Tribunal relativamente à prescrição das rendas não pagas até 2016: no meu entendimento, mesmo nos anos em que a Demandante não chegou a remeter os relatórios de gestão, relativamente à componente fixa da renda tinha o Demandado todos os elementos para emitir os documentos de receita.

Teria, em alternativa, condenado o Demandado a atender o pedido de reequilíbrio financeiro da Demandante, com abertura de um procedimento de revisão extraordinária da renda no sentido de se averiguar – face designadamente a um contexto de mercado mais difícil do que o pressuposto no EVEF, mas sem deixar de ter em conta os riscos próprios do contrato e exigência de eficiência e eficácia da exploração do estabelecimento pelo cocontratante –, se os factos invocados como fundamento do direito ao reequilíbrio alteraram ou não os pressupostos nos quais o cocontratante determinou o valor das prestações a que se obrigou, conhecendo o contraente público (ou não devendo ignorar) esses pressupostos[12].

 

 

 

(João Pacheco de Amorim)

 



[1] Assim, v. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de Matos, Contratos Públicos. Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2009, p. 132, entendendo que os meios de interpretação do contrato administrativo são os argumentos gerais da interpretação jurídica, com algumas particularidades.

[2] Assim, v. Tiago Miranda, Interpretação dos contratos administrativos: o sentido do artigo 307.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos, in Revista Julgar, novembro de 2020, p. 11, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/11/20201120-JULGAR-Interpreta%C3%A7%C3%A3o-dos-contratos-administrativos-Tiago-Miranda.pdf e Tiago Amorim, Sobre a interpretação do contrato administrativo, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79 - Vol. I/II - Jan./Jun. 2019, pp. 285-312.

[3] Assim, v. Tiago Amorim, Sobre a interpretação do contrato administrativo, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79 - Vol. I/II - Jan./Jun. 2019, p. 296 assinalando que “Para isso aponta, aliás, o art. 279.º do CCP, ao estabelecer que a relação contratual se rege pelas cláusulas e pelos demais elementos integrantes do contrato.”

[4] Assim, v. Tiago Amorim, Sobre a interpretação do contrato administrativo, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79 - Vol. I/II - Jan./Jun. 2019, p. 297.

[5] Assim, v. Tiago Amorim, Sobre a interpretação do contrato administrativo, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79 - Vol. I/II - Jan./Jun. 2019, p. 297.

[6] Assim, v. Tiago Amorim, Sobre a interpretação do contrato administrativo, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79 - Vol. I/II - Jan./Jun. 2019, p. 298 e Diogo Freitas do Amaral, Manual de Direito Administrativo, vol. i, almedina, Coimbra, pp. 507-508.

[7] Em bom rigor, no quadro do Código dos Contratos Públicos - que não se aplica ao contrato aqui em apreço, cuja decisão de contratar é anterior à entrada em vigor do Código -, alguns destes elementos não são apenas «históricos» mas fazem parte integrante do contrato, e prevalecem mesmo sobre o enunciado contratual, em caso de divergência, nos termos dos artigos 96.º, n.ºs 2 e 6 do CCP (divergência que, no caso em apreço, não existe).

[8] V. Carneiro da Frada, Sobre a interpretação do Contrato, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. II, Almedina, 2012.

[10] Ou seja, o valor da renda pago foi indexado à produção/venda do produto, o que corresponde ao disposto n.º 2 da cláusula terceira - ainda que esta se refira ao quilograma produzido - por contraponto à indexação ao investimento feito que resultaria aparentemente do n.º 4 da mesma cláusula, sendo esta a divergência discutida nestes autos 

[11] O iter que permitiu chegar a esta conclusão revela, como dissemos, que há incongruências no texto contratual e no texto do caderno de encargos, e que estes não permitem chegar a uma conclusão por si só. É natural, por isso, que esta conclusão deixe algumas questões, podendo nomeadamente perguntar-se se é razoável concluir pela indexação da renda à produção/venda, por tal parecer significar que a Demandante pode «manipular» o preço da renda, fazendo-a baixar, produzindo/vendendo menos, ou até eliminá-la, não produzindo nada. Dir-se-á, no entanto, que decorre do contrato (e dos documentos pré-contratuais) um dever da arrendatária de produzir/vender, pelo que esse comportamento – que não está sob juízo neste processo – teria sempre de ser avaliado à luz do cumprimento/incumprimento desse dever. 

[12] Do que se apurou do julgamento, terá havido lugar a uma mudança na legislação reguladora da produção de enchidos um ano após a celebração do contrato, no sentido do abrandamento das condições anteriormente exigidas, e que terão causado a «deserção» de um considerável número de produtores da Cooperativa adjudicatária (os quais optaram por regressar a um sistema de produção autónoma de menor qualidade mas também menos dispendioso, fustigando a A... com um imprevisto aumento da concorrência).