DECISÃO ARBITRAL
1) Relatório
a) Identificação das Partes
A..., titular do Cartão de Cidadão n.º ..., residente na ..., n.º ..., ..., ...-... ..., titular do número de identificação fiscal..., propôs a presente ação arbitral contra o B..., departamento central do Estado Português.
b) Convenção de arbitragem
Por meio da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro, o Demandado vinculou-se à jurisdição de tribunais arbitrais a constituir sob a égide do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para a “composição de litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros e que tenham por objeto [...] questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional”.
O Demandante dirigiu-se ao CAAD para a resolução de um litígio emergente de relação jurídica de emprego público, peticionando a condenação do Demandado a atribuir-lhe o suplemento de risco a que alude o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, com efeitos retroativos à data de 7 de dezembro de 2009, bem como ao pagamento de juros de mora vencidos e vincendos.
Conforme adiante se detalhará, não estão em causa direitos indisponíveis, nem questões resultantes de acidente de trabalho, tendo sido atribuído à causa o valor de €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo). Trata-se, por conseguinte, de um litígio abrangido pelo âmbito da vinculação do Demandado à jurisdição arbitral. Neste sentido, concluiu-se uma convenção de arbitragem entre o Demandante e o Demandado, emergente da vinculação do Demandado à arbitragem institucionalizada por meio da referida portaria e do exercício pelo Demandante do correspondente direito potestativo de acesso à arbitragem, nos termos do n.º 2 do artigo 187.º do CPTA.
c) Constituição do Tribunal Arbitral
O Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro único Raul Relvas Moreira, que aceitou o encargo, tendo a composição do Tribunal Arbitral sido comunicada às Partes em 13 de outubro de 2022, data em que aquele se considera constituído, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 17.º do Regulamento de Arbitragem Administrativa (“RAA”).
d) Sede da arbitragem
De harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 2.º do RAA, a presente arbitragem tem sede no CAAD, na Avenida Duque de Loulé, n.º 72-A, 1050-091 Lisboa.
e) Objeto do litígio
O litígio em apreço incide sobre o direito do Demandante à atribuição do suplemento de risco a que alude o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, com efeitos retroativos à data de 7 de dezembro de 2009, bem como ao pagamento de juros de mora vencidos e vincendos.
f) Resumo da tramitação processual
Em 3 de setembro de 2022, o Demandante apresentou, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 10.º do RAA, um requerimento de constituição de tribunal arbitral, ao qual juntou a sua petição inicial. Em tal petição, deduziu um pedido de condenação do Demandado a atribuir-lhe o suplemento de risco a que alude o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, com efeitos retroativos à data de 7 de dezembro de 2009, bem como ao pagamento de juros de mora vencidos e vincendos.
Regularmente citado, o Demandado apresentou contestação em 20 de setembro de 2022, defendendo-se por exceção e por impugnação, pugnando pela absolvição da instância e, subsidiariamente, pela absolvição do pedido deduzido pelo Demandante.
Em 10 de outubro de 2022, o Demandante respondeu à exceção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral deduzida pelo Demandado.
Em 13 de outubro de 2022, foi comunicada às Partes a composição do Tribunal Arbitral.
Em 24 de outubro de 2022, o Tribunal Arbitral proferiu despacho por meio do qual determinou a notificação das Partes para se pronunciarem, querendo, sobre a dispensa da realização de diligências de produção prova adicionais e da produção de alegações finais.
Em 27 de outubro de 2022, o Demandado manifestou a sua concordância com a dispensa da realização de diligências instrutórias adicionais e da produção de alegações finais.
Em 4 de novembro de 2022, o Demandante manifestou a sua oposição à aludida dispensa, pugnando pela produção da prova requerida, tendo em 5 de novembro de 2022 apresentado requerimento de retificação de lapso de escrita.
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Admito a retificação do lapso de escrita requerida pelo Demandante em 5 de novembro de 2022.
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Notificadas para se pronunciar sobre a intenção do Tribunal Arbitral de dispensar a realização de diligências instrutórias adicionais e a produção de alegações finais, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 18.º, n.º 4, e 24.º do RAA, as Partes manifestaram posições divergentes a este propósito. O Demandante afirmou a sua oposição a uma tal dispensa, tendo pugnado pela produção da prova requerida na petição inicial, enquanto o Demandado declarou a sua concordância com a referida dispensa.
Compulsados os autos, verifica-se que a prova documental produzida e os factos admitidos por acordo nos articulados se mostram suficientes para a apreciação, sem necessidade de mais indagações, dos pedidos deduzidos pelo Demandante. Assim, determino, nos termos do n.º 4 do artigo 18.º do RAA, a dispensa da realização de diligências instrutórias adicionais.
Por outro lado, verificando-se que as Partes explicitaram suficientemente as suas posições nos respetivos articulados, e não havendo lugar a diligências instrutórias adicionais, afigura-se dispensável a produção de alegações finais, o que igualmente determino, nos termos do artigo 24.º do RAA.
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Na sua contestação, o Demandado alegou a incompetência do Tribunal Arbitral para resolver o litígio subjacente aos presentes autos, invocando, por um lado, a inarbitrabilidade do litígio, isto é, a insuscetibilidade de dirimição do mesmo por tribunal arbitral, bem como, por outro lado, que o litígio não se encontra abrangido pelo âmbito da vinculação do Demandado à arbitragem institucionalizada através da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro.
Para tanto, o Demandando sustenta que “o objeto da lide versa sobre remunerações, que se integram nos direitos indisponíveis”, pelo que não estaria abrangido pelo âmbito da arbitragem em matéria administrativa, por via da alínea d) do n.º 1 do artigo 180.º do CPTA, a qual habilita a vinculação da Administração Pública à resolução por arbitragem de litígios sobre questões respeitantes a relações jurídicas de emprego público quando não estejam em causa direitos indisponíveis. Com o mesmo fundamento, sustenta, ainda, que o litígio não está abrangido pelo âmbito da vinculação do Demandado à arbitragem institucionalizada através da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro. Neste contexto, o Demandado alega que “o direito à remuneração é inalienável – seja pelo trabalhador, seja pela entidade patronal”, o que “significa que o mesmo não se situa na disposição das partes, seja em que dimensão e/ou conteúdo for relativamente a esse direito”.
O Demandante, por seu turno, pugnou pela improcedência da exceção deduzida pelo Demandado, considerando que nos presentes autos não estão em causa direitos indisponíveis, nos termos e para os efeitos da referida norma legal e do instrumento de vinculação do Demandado à arbitragem institucionalizada. Para sustentar a sua posição, invoca que, nos termos dos artigos 175.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (“LGTFP”) e 738.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“CPC”), a indisponibilidade da remuneração do trabalhador não ultrapassa os dois terços da parte líquida, pelo que “a indisponibilidade do respetivo direito não abrange a parcela reclamada pelo Demandante, porquanto, não ultrapassando a mesma parcela um terço da remuneração, encontra-se na esfera de disponibilidade de cada trabalhador”.
O n.º 1 do artigo 180.º do CPTA habilita a Administração Pública a vincular-se à resolução por arbitragem de litígios sobre “[q]uestões respeitantes a relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional” (realce nosso). Por meio do regulamento administrativo aprovado pela referida portaria, o Demandado vinculou-se à jurisdição de tribunais arbitrais a constituir sob a égide do CAAD para a “composição de litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros e que tenham por objeto [...] questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional” (realce nosso).
Ora, “[é] na perspetiva da causa de pedir invocada pelo demandante – e considerando eventualmente os termos em que é formulado o pedido – que a incidência do litígio sobre eventuais direitos indisponíveis deve ser aferida. Neste sentido, a restrição em apreço apenas impede a arbitrabilidade de litígios em que a causa de pedir assenta num direito indisponível para o demandante seu titular, o particular trabalhador ou a Administração empregadora”[1]. No caso vertente, afigura-se, bem assim, necessário verificar se o direito invocado na petição inicial – direito ao suplemento de risco a que se refere o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro – constitui um direito indisponível para o Demandante.
O Demandante estriba o seu pedido na alegação da verificação dos pressupostos legais de que depende a atribuição do aludido suplemento de risco. Nos termos do artigo 146.º da LGTFP, “[a] remuneração dos trabalhadores com vínculo de emprego público é composta por: a) Remuneração base; b) Suplementos remuneratórios; c) Prémios de desempenho”. O suplemento de risco dos trabalhadores da C... integra, por conseguinte, a sua remuneração. No tocante à disponibilidade dos créditos remuneratórios, o artigo 175.º da LGTFP dispõe que “[o] trabalhador não pode ceder, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos a remunerações na medida em que estes sejam impenhoráveis”. Deste preceito não decorre, pois, uma regra de indisponibilidade total dos créditos remuneratórios, antes nele se admitindo que uma tal indisponibilidade seja meramente parcial, isto é, abranja somente a medida em que tais remunerações sejam tidas como insuscetíveis de apreensão judicial para satisfação dos direitos dos credores.
Dito de outro modo, o trabalhador só não pode dispor da parte do crédito remuneratório que não pode ser judicialmente apreendida para satisfazer os seus créditos. A indisponibilidade do crédito remuneratório visa, neste sentido, proteger o trabalhador, assegurando a intangibilidade de parte da sua remuneração. Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 738.º do CPC, “[s]ão impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”. A medida da impenhorabilidade das remunerações atinge, por via deste preceito, dois terços da respetiva parte líquida. O remanescente é, por conseguinte, penhorável e, como tal, nos termos do artigo 175.º da LGTFP, disponível para o trabalhador.
Nos termos conjugados dos n.os 3 e 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, o suplemento de risco a que têm direito os funcionários integrados nas áreas funcionais de criminalística, de telecomunicações e de segurança é fixado em 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária, não atingindo, por conseguinte, a parte impenhorável da respetiva remuneração e, bem assim, dele podendo dispor os respetivos titulares. Tem razão o Demandante quando afirma que “a indisponibilidade do respetivo direito não abrange a parcela reclamada pelo Demandante, porquanto, não ultrapassando a mesma parcela um terço da remuneração, encontra-se na esfera de disponibilidade de cada trabalhador”.
Em face do que antecede, conclui-se que o litígio subjacente aos presentes autos não incide sobre um direito indisponível, pelo que o mesmo deve ter-se como arbitrável, nos termos e para os efeitos da alínea d) do n.º 1 do artigo 180.º do CPTA. Do mesmo modo, não estando em causa um direito indisponível, o presente litígio está abrangido pelo âmbito da norma regulamentar de vinculação do Demandado à resolução arbitral de litígios emergentes de relação jurídica de emprego público sob a égide do CAAD contida na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro.
Improcede, assim, a invocada exceção de incompetência do Tribunal Arbitral.
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Em linha com o disposto no n.º 2 do artigo 34.º do CPTA, e atendendo ao acordo das Partes a este respeito, fixo à causa o valor de €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).
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As Partes são legítimas e têm personalidade e capacidade arbitrais.
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As regras e os princípios cogentes da arbitragem foram observados ao longo do processo arbitral e quanto a todos os atos nele praticados, não havendo qualquer obstáculo à prolação de decisão sobre o mérito da causa.
Cumpre decidir.
2) Fundamentação
a) De facto
i) Factos provados
Com relevância para a decisão da causa, o Tribunal Arbitral julga provada a seguinte factualidade:
a) O Demandante é trabalhador da C..., tendo sido admitido em 7 de dezembro de 2009, como especialista superior, atualmente integrado na carreira especial de apoio à investigação criminal, com a categoria de especialista de polícia científica;
b) Desde a sua admissão à C..., o Demandante desempenha funções na Unidade de Telecomunicações e Informática, atualmente designada por Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, tendo sido colocado no Grupo de Gestão e Manutenção de Sistemas da Área de Sistemas e Aplicações Informáticas;
c) Desde a sua admissão à C..., o Demandante vem desempenhando tarefas que estão relacionadas tanto com sistemas informáticos como com sistemas de telecomunicações, nas quais se incluem tarefas de configuração e gestão de equipamentos de telecomunicações tais como switches,appliances de balanceamento de tráfego, de firewall e de VPN;
d) Com o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dos sistemas informáticos, as comunicações tendem, de uma forma geral, a ser geridas por esses sistemas, não sendo possível uma distinção compartimentada entre o desempenho de funções relacionadas com as telecomunicações e o desempenho de funções relacionadas com a informática;
e) Em 6 de maio de 2022, o Demandante apresentou ao Diretor Nacional da C... um requerimento para pagamento do suplemento de risco a que se refere o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de Setembro;
f) Na sequência do referido requerimento, o Demandante foi notificado, em 3 de junho de 2022, do parecer do Gabinete de Assessoria Jurídica junto aos autos como Documento n.º 3 da petição inicial.
A convicção do Tribunal Arbitral quanto aos factos enunciados resulta das posições assumidas pelas Partes nos seus articulados, sobretudo da expressa admissão por acordo, nos artigos 23.º e 94.º da contestação, dos factos alegados nos artigos 3.º a 12.º da petição inicial, bem como da análise conjugada dos documentos juntos pelas Partes, incluindo o processo administrativo.
ii) Factos não provados
Não existem factos não provados com interesse para a decisão da causa.
b) De Direito
Por meio da presente ação, o Demandante pretende obter a condenação do Demandado a atribuir-lhe o suplemento de risco a que se refere o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, com efeitos retroativos à data de 7 de dezembro de 2009, bem como ao pagamento de juros de mora vencidos e vincendos. Para tanto, alega, em síntese, que não é possível distinguir, no âmbito da Unidade de Telecomunicações e Informática da C..., atualmente designada por Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, em que o Demandante está colocado, entre o desempenho de funções relacionadas com a informática e o desempenho de funções relacionadas com sistemas de telecomunicações. Por essa razão, alega dever ser-lhe atribuído o aludido suplemento de risco, que a lei reserva para os trabalhadores integrados nas áreas funcionais de criminalística, de telecomunicações e de segurança.
Por seu turno, o Demandado nega a pretensão do Demandante, alegando que a integração na Unidade de Telecomunicações e Informática/ Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações não tem, por si só, relevância para efeitos de atribuição do aludido suplemento de risco, antes o exercício efetivo de funções “expressamente e unicamente”nas áreas funcionais de criminalística, de telecomunicações e de segurança. Neste contexto, considera que não têm direito àquele suplemento os trabalhadores que, como o Demandante, integram a Área de Sistemas e Aplicações Informáticas, onde desempenham funções relacionadas com o sistema de informática, ao contrário, nomeadamente, dos trabalhadores colocados na Área de Exploração e Manutenção de Comunicações, que operam na área funcional das telecomunicações.
Cumpre, antes de mais, verificar que, conforme resulta indisputado pelas Partes, não obstante as reformas legislativas operadas neste domínio, incluindo a revogação do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, o n.º 4 do artigo 99.º deste diploma mantém-se plenamente em vigor, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 161.º do Decreto-Lei n.º 175-A/2000, de 9 de novembro, uma vez que nunca foi aprovado o diploma próprio a que se refere o artigo 91.º deste siploma, sendo a respetiva aplicação aos trabalhadores da carreira de especialista de polícia científica acautelada pelo n.º 4 do artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro.
Nos termos do n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, “[o]s funcionários integrados nas áreas funcionais de criminalística, de telecomunicações e de segurança têm direito a suplemento de risco de montante igual ao fixado no número anterior”, o qual, por conseguinte, de acordo com o n.º 3, “é fixado em 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária”. Estes preceitos consagram o direito de certos trabalhadores da C... que desempenham funções de apoio à investigação criminal – os funcionários integrados nas áreas funcionais de criminalística, de telecomunicações e de segurança – a um suplemento de risco equivalente ao dos trabalhadores da carreira de investigação criminal. No que releva para o caso vertente, cumpre verificar em que situações é que, para efeitos da atribuição daquele suplemento de risco, os trabalhadores da C... devem ter-se por integrados na área funcional das telecomunicações, tomando em consideração as alterações entretanto ocorridas na estrutura organizativa de um tal serviço da administração direta do Estado.
Deve notar-se, antes de mais, que, conforme decorre do n.º 1 daquele artigo, o suplemento de risco é graduado de acordo com o ónus da função dos diferentes grupos de pessoal. É, pois, a esta luz que deve ser interpretado o n.º 4, considerando o legislador que um tal ónus se revela, para efeitos de atribuição do suplemento de risco, pela integração do trabalhador numa das três áreas funcionais nele indicadas. No que toca à integração na área funcional das telecomunicações, a separação que, no domínio da vigência daquele diploma, se verificava entre as áreas da informática e das telecomunicações, traduzida na criação legal de dois departamentos distintos – o Departamento de Telecomunicações e o Departamento de Organização e Informática –, facilitava sobremaneira a tarefa do intérprete quanto à determinação do universo de trabalhadores beneficiários do suplemento em causa. A questão tornou-se, porém, mais complexa com a unificação daquelas duas áreas na estrutura organizacional da C..., operada pelo Decreto-Lei n.º 175-A/2000, de 9 de novembro.
De acordo com o preâmbulo daquele diploma, uma tal unificação, traduzida na criação do Departamento de Telecomunicações e Informática, fundamenta-se na constatação da “crescente interpenetração das áreas de informática e telecomunicações decorrente dos mais recentes avanços tecnológicos”, assim se “visando assegurar a gestão integrada dos recursos bem como a otimização das políticas a desenvolver nesses domínios” (realce nosso). Vale a pena assinalar que a unificação das áreas de informática e telecomunicações seria, nas reformas legislativas que se sucederam, mantida até à atualidade. A unidade central de apoio técnico à investigação criminal que atua nas áreas da informática e das telecomunicações é, atualmente, nos termos previstos no artigo 37.º e na subalínea iv) da alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro, designada por Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, na qual o Demandante está colocado.
Bem se vê que, ao unificar as duas áreas, outrora separadas, o legislador criou, na estrutura organizacional da C..., uma unidade central com um âmbito funcional alargado, na qual concentrou as funções relacionadas com o apoio à investigação criminal nos domínios da informática e das telecomunicações, atendendo à interpenetração que entre elas se verifica. Não parece suscitar dúvidas, por conseguinte, que a integração na área funcional das telecomunicações, para efeitos do n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, supõe a colocação do trabalhador na Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações. Daí não decorre, porém, que todos os trabalhadores colocados em tal unidade devam ser tidos, para aqueles efeitos, como integrando a área funcional das telecomunicações.
Neste particular, cumpre verificar que, nos termos do n.º 8 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro, “[n]os serviços ou unidades centrais, assim como nos serviços ou unidades desconcentradas, que integram as diversas áreas de intervenção da C..., podem ser criadas unidades flexíveis, designadas por áreas, setor e núcleos, sendo o seu número máximo definido por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”. Deste preceito decorre, entre o mais, que, nas unidades centrais da C..., incluindo a Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, podem ser criadas unidades flexíveis, com a designação de áreas, setores ou núcleos. Afigura-se, por isso, legalmente fundada a hipótese de repartição dos trabalhadores colocados nas unidades centrais por diferentes unidades flexíveis que nelas sejam criadas, consoante as funções específicas a que se dirigem tais unidades flexíveis, sempre no quadro das funções legalmente cometidas à respetiva unidade central.
No que toca à atribuição do suplemento de risco previsto no n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, uma tal separação funcional poderia fundamentar o reconhecimento de que certos trabalhadores da Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, por estarem colocados em unidades flexíveis adstritas a funções relacionadas com telecomunicações, integrariam a área funcional das telecomunicações, enquanto outros trabalhadores daquela mesma unidade central, por estarem colocados em unidades flexíveis exclusivamente adstritas a funções na área da informática não relacionadas com as telecomunicações, não poderiam ser tidos como integrando uma tal área funcional, com a consequente negação a estes últimos do suplemento de risco em apreço.
Atendendo a que a unificação funcional das áreas de informática e telecomunicações numa mesma unidade central decorre diretamente da lei, com arrimo, como se observou, na “crescente interpenetração” entre elas, recai sobre o Demandado o ónus de demonstrar que o trabalhador colocado na Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações está adstrito a uma unidade flexível sem qualquer função na área das telecomunicações, isto é, que ele, Demandado, lançando mão da prerrogativa legal de criação de unidades flexíveis, logrou separar integralmente o desempenho de funções na área das telecomunicações do desempenho de funções na área da informática. Considerando que, perante a lei, o trabalhador colocado na Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações integra uma unidade central cujo âmbito funcional abrange as telecomunicações, só em face da demonstração de que as funções relacionadas com a informática e as telecomunicações se encontram integral, efetiva e estritamente separadas por diferentes unidades flexíveis poderia equacionar-se a hipótese de negar a certos trabalhadores daquela unidade central o suplemento de risco em apreço.
No caso vertente, resulta dos factos provados que, “desde a sua admissão à C..., o Demandante vem desempenhando tarefas que estão relacionadas tanto com sistemas informáticos como com sistemas de telecomunicações, nas quais se incluem tarefas de configuração e gestão de equipamentos de telecomunicações tais como switches, appliances de balanceamento de tráfego, de firewall e de VPN” (cfr. al. c) dos factos provados). O Demandante alegou – e o Demandado aceitou – que as funções que desempenha, desde a sua admissão à C..., em 7 de dezembro de 2009, no Grupo de Gestão e Manutenção de Sistemas da Área de Sistemas e Aplicações Informáticas da Unidade de Telecomunicações e Informática, atualmente designada por Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, estão relacionadas tanto com a informática como com as telecomunicações, incluindo a configuração e gestão de equipamentos de telecomunicações.
Neste contexto, não só não ficou demonstrada a estrita e efetiva separação, no seio da Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, entre a área funcional das telecomunicações e a área funcional da informática como ficou assente que uma tal separação, no que toca à unidade flexível em que está colocado o Demandante, não ocorre, dado que o Demandante desempenha funções que incluem a configuração e gestão de equipamentos de telecomunicações.
Para além disso, ficou igualmente assente que, “[c]om o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dos sistemas informáticos, as comunicações tendem, de uma forma geral, a ser geridas por esses sistemas, não sendo possível uma distinção compartimentada entre o desempenho de funções relacionadas com as telecomunicações e o desempenho de funções relacionadas com a informática” (cfr. al. d) dos factos provados). Esta constatação, alegada pelo Demandante e igualmente aceite pelo Demandado, confirma a “crescente interpenetração das áreas de informática e telecomunicações decorrente dos mais recentes avanços tecnológicos”, a que o legislador já se referia no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 175-A/2000, de 9 de novembro, evidenciando a dificuldade ou mesmo impossibilidade de uma estrita, efetiva e integral separação funcional entre as telecomunicações e a informática.
Em face do que antecede, deve reconhecer-se que o Demandante, colocado na Unidade de Sistemas de Informação e Comunicações, anteriormente designada por Unidade de Telecomunicações e Informática, e desempenhando, desde 7 de dezembro de 2009, tarefas que estão relacionadas tanto com sistemas informáticos como com sistemas de telecomunicações, nas quais se incluem tarefas de configuração e gestão de equipamentos de telecomunicações, integra, desde aquela data, a área funcional das telecomunicações, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro. Neste sentido, deve ser-lhe reconhecido, com efeitos a partir de 7 de dezembro de 2009, o direito ao suplemento de risco consignado naquele preceito, o qual se encontra legalmente fixado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, aplicável por remissão do n.º 4, em 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária.
Por outro lado, importa verificar que os suplementos remuneratórios são devidos mensalmente deste a data em que se iniciarem as funções que fundamentam a sua atribuição, nos termos previstos nos artigos 145.º, n.os 1 e 2, 146.º, 159.º, 172.º e 173.º da LGTFP, nos artigos 66.º, 67.º e 73.º da Lei dos Vínculos, Carreiras e Remunerações e nos artigos 217.º e 218.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Pública. A falta de pagamento pontual e integral ao Demandante dos montantes devidos a título de suplemento de risco consubstancia, por conseguinte, uma situação de atraso no cumprimento desta obrigação pecuniária.
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 3/2010, de 27 de abril, “[o] Estado e demais entidades públicas, incluindo as Regiões Autónomas e as autarquias locais, estão obrigados ao pagamento de juros moratórios pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária, independentemente da sua fonte”. De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, “[q]uando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, aplica-se a taxa de juro referida no n.º 2 do artigo 806.º do Código Civil”. No período anterior à entrada em vigor deste diploma, idêntico regime decorria já da transposição para o Direito Administrativo das normas de direito comum aplicáveis ao atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias, contidas nos artigos 804.º e seguintes do Código Civil. A taxa de juro a que se refere o n.º 2 do artigo 806.º do Código Civil está, atualmente, fixada em 4%, de acordo com a Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
Assim, às quantias devidas ao Demandante a título de suplemento de risco, correspondentes, em cada mês, a 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária, deduzidas dos montantes que hajam sido pagos a esse título, acrescem os respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%, naturalmente sem prejuízo de outra taxa que, entretanto, venha a vigorar, a contar das datas do respetivo vencimento, por referência à data em que o Demandante foi admitido na C..., até integral e efetivo pagamento da dívida.
3) Decisão
Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e, em consequência:
a) Reconheço o direito do Demandante ao suplemento de risco a que alude o n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, correspondente, em cada mês, a 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária, com efeitos a partir de 7 de dezembro de 2009;
b) Condeno o Demandado no pagamento ao Demandante dos montantes devidos a título de suplemento de risco calculados nos termos explicitados na alínea a), com efeitos a partir de 7 de dezembro de 2009, deduzido dos montantes que hajam sido pagos a esse título; e
c) Condeno o Demandado no pagamento ao Demandante dos juros de mora decorrentes do atraso no pagamento das quantias devidas a título de suplemento de risco a que se refere a alínea b), à taxa de 4%, sem prejuízo de outra taxa que, entretanto, venha a vigorar, a contar das datas do respetivo vencimento, com referência ao início de funções em 7 de dezembro de 2009, até integral e efetivo pagamento.
Não há lugar a fixação do critério de repartição de encargos processuais, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 29.º do RAA.
Notifique.
Lisboa, 11 de novembro de 2022.
O Árbitro
Raul Relvas Moreira
[1] RAUL RELVAS MOREIRA, “O âmbito da arbitragem administrativa no domínio dos contratos”, Carla Amado Gomes e Ricardo Pedro (Coord.), A arbitragem administrativa em debate: problemas gerais e arbitragem em matéria de contratos públicos, Lisboa, AAFDL, 2018, p. 269.