SUMÁRIO:
I – Sem embargo de um contrato administrativo poder ser fulminado com o desvalor mais gravoso da ordem jurídica (a nulidade), tal modo do agir administrativo pode conduzir à manutenção dos efeitos que, entretanto, se produziram. Desde logo, por já não serem passíveis de erradicação no plano dos factos, porquanto se consolidaram pelo decurso do tempo. Alude-se, neste domínio, inter alia, aos efeitos putativos dos actos e contratos administrativos,
II - Do preceituado no art. 162º, n.º 3 do CPA, ex vi art. 285º, n.º 1 do CCP, de onde ressuma que podem ser atribuídos efeitos jurídicos a uma situação de facto decorrente de um contrato nulo, solução que se filia, designadamente, nos princípios da boa-fé e da tutela da confiança, com respaldo constitucional e legal
III - Assim, não obstante a inexistência da conclusão do procedimento pré-contratual que seria aplicável no caso sub iudice, bem como a ausência de contrato escrito e, ainda, a violação da Lei dos Compromissos – tudo a convergir na nulidade da relação contratual que se estabeleceu entre as partes – foram produzidos efeitos que devem ser mantidos na ordem jurídica: a prestação dos serviços e a sua correspetiva liquidação, pelo que, o pagamento já efetuado pela Demandante à Demandada mostra-se devido, razão pela qual procede o primeiro pedido (alternativo) da Demandante.
ACÓRDÃO ARBITRAL
I. Relatório
Em 6-05-2021, a A..., doravante designada por demandante, veio apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral administrativo, o qual foi validado e aceite nesta data, prosseguindo para fase de procedimento de outorga. É demandada nos autos a B... SA, que respondeu em 28-10-2021, aceitando a outorga de compromisso arbitral. Nesta conformidade, em 2-11-2021, foi firmada a outorga de compromisso arbitral.
Em 22-11-2021 a entidade demandante veio aos autos apresentar a petição e respetivos anexos. Em 23-11-2021 foi promovida a citação da demandada para contestar. Em 22-12-2021 foi apresentada contestação, que se dá por reproduzida.
Em 23-02-2022 foram nomeados os aqui signatários como Árbitros a integrar o tribunal arbitral coletivo, que ficou constituído em 23-02-2022.
Por despacho arbitral de 24-02-2022, proferido nos termos e para os efeitos previstos no artigo 18º do Regulamento de Arbitragem Administrativa (RAA), pelo qual foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre:
a) A tramitação subsequente do processo, nomeadamente, a necessidade de realização de diligências complementares;
b) A necessidade de realização da audiência prevista no nº 3;
c) A eventual possibilidade de acordo ou a condução do processo apenas com base na prova documental e demais elementos do processo juntos aos autos.
As partes pronunciaram-se, por requerimentos juntos aos autos em 07-03-2022, no sentido do prosseguimento dos autos, sem necessidade de diligências adicionais. Deste modo, por despacho arbitral de 06-04-2022, o tribunal arbitral determinou o prosseguimento dos autos, com dispensa de realização da audiência, por desnecessária e, nos termos do disposto no artigo 24º do RAA, determinou o prazo de 10 dias, igual e simultâneo, para as partes procederem à apresentação de alegações escritas facultativas. Em 22-04-2022 a demandante veio juntar aos autos as suas alegações. A demandada não juntou alegações. Atenta a data de constituição deste Tribunal a prolação da decisão arbitral deve decorrer até 23-08-2022.
(i) A questão a decidir
A questão que a Demandante pretende ver decidida e que conduziu à instauração do presente processo arbitral respeita ao cumprimento de um contrato celebrado entre ambas e consiste em saber se o pagamento efetuado à Demandada como contrapartida pelos serviços (informáticos) que esta lhe prestou, entre 1 de janeiro de 2020 e 25 de março de 2020, padece de ilicitude. Peticiona a anulação com as consequências legais.
II. Saneamento do Processo
O Tribunal é competente e está em condições de conhecer do mérito da questão.
As partes são legitimas.
Não existem questões prejudiciais ou exceções a conhecer pelo Tribunal.
O valor da ação é de €159.039,00 (cento e cinquenta e nove mil e trinta e nove euros) conforme indicado pela Demandante no requerimento arbitral e por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 32.º do CPTA, valor não contestado pela Demandada.
Cumpre decidir.
III. DECISÃO
A) Decisão da matéria de facto
Analisados os articulados, bem como os documentos juntos e demais elementos probatórios é convicção deste Tribunal Arbitral deverem ser considerados provados e não provados, com relevo para o processo, os seguintes factos:
(i) Dos factos provados e com relevo para a decisão da causa:
A) No âmbito A... Nacional Republicana (A...) dispõe de um sistema baseado em software aplicacional que disponibiliza serviços essenciais para a tomada de decisão nas principais áreas de atividade administrativa, logística e financeira, denominado Sistema Integrado dos Recursos Internos, (adiante designado por SIGRI);
B) Com vista a assegurar os serviços de manutenção do SIGRI nos anos de 2016, 2017 e 2018 foi efetuado um procedimento de formação de contrato público ao abrigo de um Concurso Limitado por Prévia Qualificação, tendo o serviço sido adjudicado à empresa aqui Demandada B..., S.A.;
C) Para os anos subsequentes de 2019, 2020 e 2021, foi lançado um novo procedimento de formação de contrato ao abrigo de um Concurso Limitado por Prévia Qualificação;
D) Através da Informação ...-DRL, de 21/02/2019, foi proposto que fosse solicitada a Sua Excelência o Secretário de ..., autorização para realização de procedimento de Aquisição, por Ajuste Direto, sendo efetuado convite à empresa B..., SA, (Ajuste Direto n.º 02/DRL/DA/2019), de forma a garantir os serviços de manutenção durante o ano de 2019 até à conclusão do procedimento de contratação por concurso limitado por prévia qualificação (conforme Documento n.º 1 junto com a PI);
E) Por despacho proferido em 24/04/2019, por Sua Excelência o Secretário de Estado ..., foi autorizado o solicitado (conforme Documento n.º 2 junto com a PI);
F) Em 18/06/2019, foi celebrado entre a A... e a B..., SA, um contrato, que teve por objeto “a contratação de serviços de manutenção do sistema Integrado de gestão dos recursos internos (SIGRI) para o ano de 2019”, (conforme Documento n.º 3 junto com a PI);
G) Previamente à celebração do contrato por ajuste direito, em 15/05/2019, a Direção dos Recursos Logísticos do Comando da Administração dos Recursos Internos, (DRL/CARI/A...), solicitou autorização para a realização de procedimento pré-contratual para aquisição de serviços referentes ao SIGRI, para os anos de 2019, 2020 e 2021, mediante a realização de procedimento de Concurso Limitado por Prévia Qualificação, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º e do artigo 162.º e seguintes, do Código dos Contratos Públicos, (CCP), (conforme Documento n.º 4 junto com a PI) ;
H) Em 17/09/2019 foi obtida a anuência para o procedimento, por despacho proferido por Sua Excelência o Secretário de Estado ..., (conforme Documento n.º 5 junto com a PI);
I) Através da Informação ...-DRL, de 26/11/2019 foram submetidos a aprovação o Relatório da Fase de Qualificação dos Candidatos, o Convite à apresentação de proposta e a redução de prazo para apresentação de proposta, a fim de garantir que o procedimento entraria em vigor em 01/01/2020, (conforme Documento n.º 6 junto com a PI);
J) Em 30/12/2019 foi obtida a anuência à proposta, por despacho proferido por Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e da ..., (conforme Documento n.º 7 junto com a PI);
K) Terminado o procedimento de Concurso Limitado por Prévia Qualificação, através da Informação ...-DRL, de 28/02/2020, foi submetido a aprovação o Projeto de Decisão de Adjudicação, a Autorização para Realização de Despesa, a minuta do Contrato e a designação do Gestor do Projeto, tendo sido aprovado por despacho exarado na referida informação, em 06/03/2020, (conforme Documento n.º 8 junto com a PI);
L) Em 26/03/2020 foi celebrado o contrato entre a A... e a B..., SA, que teve por objeto “a aquisição dos serviços de manutenção do Sistema Integrado de Gestão dos Recursos Internos (SIGRI), para os anos de 2020 e 2021”, (conforme Documento n.º 9 junto com a PI);
M) Nos termos da Cláusula 3.º do mencionado contrato, o mesmo iniciou a sua vigência apenas “após a data da sua celebração”, o que ocorreu em 26/3/2020;
N) As partes reconhecem que no período decorrente entre 01/01/2020 e 25/03/2020, inexistiu uma relação contratual formalizada entre as partes;
O) Não obstante, durante o período de tempo referido em N) a Demandada continuou a prestar serviços no âmbito do SIGRI, serviços esses que foram liquidados, no montante final de €159.039,00;
P) A Demandada emitiu a fatura n.º 202099/194, de 31/03/2020, no valor atrás referido, (conforme Documento n.º 10 junto com a PI);
Q) Ficou demonstrado, por acordo, que a Demandante processou um pagamento à Demandada referente ao período decorrente entre 01/01/2020 e 25/03/2020;
R) As partes aceitam que a Demandada prestou efetivamente os serviços de manutenção no âmbito do SIGRI, no período descrito no ponto anterior;
S) Tendo esses mesmos serviços de manutenção sido aceites pela Demandante, alegação igualmente objeto de confissão entre as partes.
(ii) Factos dados como não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que tenham sido considerados não provados.
B) Decisão de Direito
A Demandante instaurou o presente processo arbitral tendente, no fundo, ao esclarecimento jurídico de uma questão muito concreta, que se prende com a licitude do pagamento efetuado à Demandada como contrapartida pelos serviços (informáticos) que esta lhe prestou, entre 1 de janeiro de 2020 e 25 de março de 2020.
Com efeito, após enquadrar a situação de facto e explicitar a sua dúvida jurídica, a Demandante apresentou um pedido alternativo, a saber:
“A – Apurar se juridicamente o pagamento efetuado, no valor de € 159.039,00, é devido, face à «relação contratual» que de facto existiu e tendo em conta que os serviços foram efetivamente prestados pela Requerida em proveito da Requerente e pela mesma aceites.
Ou, em alternativa,
B – Ser determinada a restituição do valor de € 159.039,00, pago pelos serviços de manutenção do SIGRI prestados à Requerente pela Requerida, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2020 e 25 de março de 2020, (inclusive), objeto da fatura NFC 202099/194, de 31 de março de 2020, por o referido pagamento carecer de qualquer base legal”.
É, pois, este o thema decidendum que o Tribunal Arbitral é chamado a resolver à luz da factualidade dada como provada e da normação aplicável.
Assim, e ante omnia, importa salientar que é indiscutível que a Demandada executou os serviços informáticos pretendidos pela Demandante, o que justificou, de resto, que esta os liquidasse (cfr. Factos Provados O, P, Q, R e S).
No entanto, tal como também resultou provado, constata-se que, para o período de tempo aqui em apreço (i.e., entre 01/01/2020 e 25/03/2020), não foi adoptado nenhum procedimento pré-contratual, tal como não foi celebrado nenhum contrato escrito nem, tão pouco, foi observada a Lei dos Compromissos (cfr. Facto Provado N). Na verdade, o contrato (escrito) celebrado entre as partes só produziu efeitos a partir de 26/03/2020 (cfr. Factos Provados L e M).
Nestes termos, apesar de ter sido estabelecida uma relação contratual de facto entre a Demandante e a Demandada no período de tempo em questão, registaram-se diversas e sucessivas omissões legais que têm como consequência inexorável a nulidade de tal relação contratual.
Com efeito, estamos perante uma relação contratual nula em virtude de se ter registado uma preterição total do procedimento adjudicatório legalmente devido e, de igual modo, por violação da Lei dos Compromissos (cfr. art. 161º, n.º 2, alínea l), do CPA, ex vi art. 284º, proémio do n.º 2, do CCP e art. 5º, n.º 3 da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, na sua redação atual). Adicionalmente, quedou também em falta a celebração de um contrato escrito (para o período de tempo aqui em causa, sublinhe-se), formalidade que a lei impõe (formalidade ad substantiam) e cuja violação implica igualmente a nulidade (cfr. art. 94º, n.º 1 e 96º, n.º 7 do CCP).
Não obstante a nulidade contratual em causa, não há dúvidas (ambas as partes o reconhecem, pacificamente) de que os serviços em causa foram devidamente prestados e, nessa sequência, liquidados (cfr. Factos Provados R e S).
É também aceite, por ambas as partes, que os serviços em alusão se revelavam essenciais para a satisfação do interesse público, traduzido em diversas operações organizativas no âmbito das funções e atribuições da A... (cfr. Facto Provado A).
Ora, há muito que se admite que, sem embargo de um contrato administrativo poder ser fulminado com o desvalor mais gravoso da ordem jurídica (a nulidade), tal modo do agir administrativo pode conduzir à manutenção dos efeitos que, entretanto, se produziram. Desde logo, por já não serem passíveis de erradicação no plano dos factos, porquanto se consolidaram pelo decurso do tempo. Alude-se, neste domínio, inter alia, aos efeitos putativos dos actos e contratos administrativos .
Justamente por esta razão, o legislador consagra regras jurídicas que permitem superar este tipo de problemáticas, evitando contradições internas no espírito do sistema, conducentes a situações iníquas.
É o que sucede com o preceituado no art. 162º, n.º 3 do CPA, ex vi art. 285º, n.º 1 do CCP, de onde ressuma que podem ser atribuídos efeitos jurídicos a uma situação de facto decorrente de um contrato nulo, solução que se filia, designadamente, nos princípios da boa fé e da tutela da confiança, com respaldo constitucional e legal .
O caso vertente é, aliás, bem ilustrativo de uma situação desta natureza: a Demandada executou os serviços com o pleno conhecimento e por solicitação da Demandante, logo, de boa fé, sendo que tais serviços eram patentemente relevantes para a organização interna da A..., donde se verifica, igualmente, in casu, uma manifestação do princípio da prossecução do interesse público.
Assim, não obstante a inexistência da conclusão do procedimento pré-contratual que seria aplicável no caso sub iudice, bem como a ausência de contrato escrito e, ainda, a violação da Lei dos Compromissos – tudo a convergir na nulidade da relação contratual que se estabeleceu entre as partes – foram produzidos efeitos que devem ser mantidos na ordem jurídica: a prestação dos serviços e a sua correspetiva liquidação .
Consequentemente, o pagamento já efetuado pela Demandante à Demandada mostra-se devido, razão pela qual procede o primeiro pedido (alternativo) da Demandante.
Considerando a matéria dos autos, as custas devem ser repartidas, em partes iguais, pela Demandante e pela Demandada.
Promova-se a publicação desta decisão no site do CAAD, expurgados que sejam os elementos identificativos das partes, bem como, após trânsito em julgado, na base de dados organizada pelo Ministério da Justiça, nos termos do art. 185º-B do CPTA.
Lisboa, 17-05-2022.
O Tribunal Arbitral coletivo,
Maria do Rosário Anjos
(Árbitro Presidente)
Pedro Melo
(Árbitro Vogal)
Duarte Silva Marques
(Árbitro Vogal)