Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 14/2021-A
Data da decisão: 2022-02-15  Contratos 
Valor do pedido: € 0,00
Tema: Mora, cumprimento defeituoso e incumprimento definitivo de contrato administrativo de prestação de serviços. Resolução sancionatória e sanção pecuniária por incumprimento imputado ao cocontratante da entidade pública credora dos serviços.
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 DECISÃO ARBITRAL

 

I. DAS PARTES E DO TRIBUNAL

São Partes na presente arbitragem, A... (doravante Demandante ou A...) e B..., Unipessoal, Lda. (doravante Demandada ou B...), ambas com os sinais nos autos.

É árbitro único José Mário Ferreira de Almeida.

 

II. VALOR DA ARBITRAGEM

Fixa-se o valor da arbitragem em 41 275,80 EUR (quarenta e um mil, duzentos e setenta e cinco euros e oitenta cêntimos) correspondente à soma dos montantes peticionados pelo Demandante e pela Demandada.

 

III. OBJETO DA ARBITRAGEM

O Demandante pede a condenação da Demandada na restituição da quantia de 18 394,85 EUR, paga com a adjudicação do contrato de prestação de serviços de implementação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (doravante, o Contrato), correspondente ao Doc. 1 junto com o articulado inicial, firmado em 28/12/2019, por alegado incumprimento reiterado deste Contrato, o que levou o Demandante a resolvê-lo com caráter sancionatório.

Vem ainda pedida a condenação da Demandada no pagamento ao Demandante do montante de 4 486,50 EUR, a título de pena pecuniária por incumprimento do referido contrato.

Pede ainda o Demandante que a B... seja condenada no pagamento de juros vincendos sobre aquelas quantias desde a data da citação para a presente arbitragem até à data do efetivo pagamento, bem nas custas do processo e de parte.

Reconvindo, a Demandada reclama o pagamento pelo Demandante de 18 394,65 EUR, a que se soma o montante dos juros comerciais vincendos contados da citação para contestar o pedido reconvencional e o valor das custas arbitrais, em virtude de se mostrar inválida a resolução do Contrato, sendo por isso devido o pagamento do remanescente do preço contratual uma vez que a Demandada foi ilicitamente impedida pelo Demandante de realizar as prestações a que se obrigou.

 

IV. RESUMO DA POSIÇÃO DAS PARTES

Em síntese, entende o Demandante que, em vista do incumprimento reiterado e displicente das obrigações que para a Demandada emergiam do contrato de prestação de serviço em causa, determinou a resolução sancionatória do mesmo, após audiência prévia.

Na comunicação formal da decisão de resolução, o A... reclama da B... a restituição, no prazo de 10 dias, da quantia de 18 394,65 EUR, importância correspondente ao pagamento da prestação do preço convencionado.

A Demandada, alega o A..., não procedeu a essa restituição, o que aquela veio confirmar.

Alega ainda o Demandante que o incumprimento que conduziu à resolução do Contrato, legitima a aplicação de sanção pecuniária ao abrigo da cláusula 17.ª n.º 1 do Caderno de Encargos anexo ao texto contratual, traduzida em 4 485,50 EUR, apurada por aplicação do 0,5% do valor do Contrato por cada dia em que se verificou incumprimento, considerando, para este efeito, 30 dias.

A Demandada contesta que tenha incumprido as obrigações que para si resultam da celebração do Contrato, porquanto, ainda que se tenham registado atrasos e erros na execução do acordado tais vicissitudes nunca puseram em causa a possibilidade de cumprimento, não estando, aliás, em mora uma vez que a resolução ocorreu antes do final do prazo contratual (12 meses). Argumenta ainda a B... que, além de não lhe serem imputáveis os atrasos na execução das prestações contratuais, nunca o Demandante procedeu a qualquer interpelação para cumprimento, sendo por isso ilícita a resolução decidida pelo A... . E impugna a pena pecuniária reclamada nesta arbitragem pelo Demandante, desde logo porque este não praticou qualquer ato com esse conteúdo, não sendo legalmente admitida a aplicação de sanções contratuais por via de ação sem prévia e expressa determinação pelo contratante administrativo nos termos do Código dos Contratos Públicos.

Em reconvenção, a Demandada extrai da invalidade da resolução o direito a receber do Demandante a quantia remanescente do preço contratual em virtude de ter ficado impedida de dar execução integral ao Contrato.

À reconvenção respondeu o A..., sustentando, no essencial, serem da responsabilidade da Demandada as faltas contratuais que conduziram à resolução do Contrato, razão pela qual entende carecer de fundamento o pedido de condenação no pagamento do montante pretendido pela B... .

V. FACTOS

Nos termos do artigo 25.º n.º 2 do Regulamento de Arbitragem Administrativa deste CAAD, a decisão arbitral contém uma descrição concisa da base factual. O Tribunal enuncia, em obediência a esta diretiva, unicamente os factos que considera relevantes para o juízo subsuntivo que conduz à decisão sobre as pretensões das Partes.

Assim, resulta provada a seguinte factualidade:

(a) Mediante decisão da Diretora do A..., posteriormente ratificada por deliberação de 05/02/2020 do Conselho de Administração desta entidade, foi celebrado em 26/12/2019 contrato de prestação de serviços entre os aqui Demandante e Demandada.

(b) Nos termos da cláusula 6.ª n.º 3 do Contrato, na versão constante do processo instrutor, os serviços a que o Demandado se obrigou são os descritos nesta cláusula, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

(c) A parte final da cláusula contratual referida em (b) anterior, estipula que “os serviços contratados deverão realizar-se no período de 12 meses, a contar da data de assinatura do contrato”.

(d) De acordo com a programação projetada pela Demandada na proposta à entidade adjudicante, aqui Demandante, apresentada no âmbito do procedimento pré-contratual, a primeira fase de execução do Contrato, designada por assessment inicial, deveria decorrer no primeiro mês após a assinatura do Contrato e corresponder às atividades enunciadas na cláusula 6.ª n.º 3 al. a), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

(e) Em 13/02/2020, realizou-se uma reunião, via Skype, entre a Diretora do A..., C... e D... pelo lado do Demandante, e E... do B..., motivada pela falta de qualidade da primeira versão dos relatórios de avaliação inicial entregues pela Demandada.

(f) Em 14/02/2020, subscrito por D... foi dirigida mensagem de correio eletrónico a E..., na sequência da reunião realizada pela videoconferência referida em (e), cuja cópia foi junta pelo Demandante à resposta à contestação como Doc. 2, sendo o respetivo teor aqui dado por integralmente reproduzido, no qual se relatam os aspetos que foram assinalados por parte do A... naquela reunião que justificaram a não validação dos relatórios.

(g) Em 01/03/2020, foram remetidos pela Demandada e recebidos pelo Demandante, segundas versões dos relatórios correspondentes à fase de assessment inicial.

(h) A Demandada solicitou, na data referida em (g) anterior, que o Demandante se pronunciasse sobre as versões dos relatórios então enviadas, solicitando que o fizesse até ao dia 06/03/2020.

(i) Em 19/04/2020 (08:49), dirigida a D..., E... enviou a mensagem de correio eletrónico junta pelo Demandante à resposta à reconvenção como Doc. 8, na qual revela estar impedido de se deslocar de Luanda onde se encontrava e não lhe ser possível comparecer a reuniões presenciais nas instalações do A..., perguntando, perante a situação pandémica entretanto declarada, se poderia continuar a trabalhar através de meios de comunicação à distância “até à fase de implementação” ou se “os trabalhos ficam suspensos, até nova data que nos indiquem”.

(j) Na data referida, às 15:53, e em resposta à mensagem referido em (i) anterior, D... dirigiu a E... nova mensagem de correio eletrónico na qual informa “que o assunto não está esquecido, no entanto nas últimas semanas temos estado a preparar e a implementar as medidas no âmbito da prevenção e controlo de infeção por novo Coronavírus (Covid-19)”.

(l) No expediente a que se refere o ponto (j) anterior, D... informa, textualmente, que “esta demora se deve ao facto de me ter sido transmitido que alguns dos relatórios necessitam de grandes alterações, e uma vez que não devem ser efetuadas por nós, iria sugerir novas reuniões com as respetivas áreas para se poder efetuar as correções necessárias”, acrescentando “com esta nova realidade esta proposta deixa de fazer sentido”, passando a enunciar os aspetos que careciam de correção ou esclarecimento, nos termos que constam do referido Doc. 8 junto pelo Demandante à resposta à contestação, termos que se dão por reproduzidos.

(m) Em 27/07/2020, sete meses após o início de execução do Contrato, subscrita por E..., a B... remete ao A..., dirigido a D... e C..., mensagem de correio eletrónico do seguinte teor: “Bom dia Dr.a D... e Dr.a  C... espero que se encontrem bem. Desde já começo por pedir que aceitem as minhas desculpas por esta ausência, mas este confinamento e a corrida de acabar outras iniciativas que estavam em curso e com datas mais curtas (até final de Julho) reconheço que não dei a devida atenção ao projeto que estava a ser executado convosco, bem como os elementos que estavam a trabalhar no mesmo conseguiram corresponder às expectativas da B... que até hoje tem sido exemplar na execução e na entrega dos projetos em que tem trabalhado. Descrita esta introdução e como ainda temos 5 meses de projecto pela frente, o que considero ser possível executar o mesmo até à data prevista, venho solicitar da vossa parte uma data para reunir-mos de forma presencial ou de outra forma que para vós seja mais conveniente, para que possamos traçar um roadmap das iniciativas que estavam no plano de projecto inicial e que ainda faltam executar, nomeadamente as formações. Estou a analisar os últimos relatórios entregues e aos quais identificaram pontos a serem corrigidos para vos enviar até final desta semana. Agradeço a vossa atenção e vamos colocar o projeto no trilho certo” (sic).

(n) Por ofício datado de 30/07/2020, o A... notificou a B... para se pronunciar em sede de audiência prévia sobre a intenção de resolução do Contrato, nos termos que se colhem do documento que consta do processo instrutor, termos que se dão por reproduzidos na integralidade.

(o)   Em 14/08/2020, a Demandada pronunciou-se sobre a intenção de resolução do Contrato nos termos expressos no Doc. 7 junto pelo A... ao articulado inicial, que se dão aqui por reproduzidos.

(p) O Conselho de Administração do Demandante, reunido em 29/09/2020, deliberou proceder à resolução sancionatória do Contrato (processo instrutor).

(q) Por ofício datado de 08/10/2020, remetido pelo Demandante à Demandada, foi esta notificada da deliberação que determinou a resolução do Contrato nos termos que se dão por integralmente reproduzidos, entre os quais consta a interpelação para restituição pela B..., no prazo de dez dias úteis, do valor de 50% do preço contratual pago em 27/12/2019, correspondente a 18 394,65 EUR (processo instrutor).

(r) A Demandada não devolveu o montante reclamado pelo Demandante na notificação a que se refere o ponto (q) anterior.

 

A  convicção do Tribunal quanto à factualidade relevante que considera provada, baseia-se, no essencial, no documentário junto pelas Partes e no processo instrutor.

Sem embargo do que infra, a propósito do juízo subsuntivo, se entende ser de mencionar quanto à prova testemunhal e a obtida por declaração de parte, da audição das testemunhas e do declarante resultou, apenas, a confirmação das versões apresentadas pelas Partes nos respetivos articulados e alegações ou se demonstra pela prova documental.

De relevo para o que se discute e decide na presente arbitragem, não se provou a existência de decisão de aplicação da pena pecuniária a que se refere o artigo 30.º do requerimento inicial do Demandante.

 

VI.  DIREITO

Ainda que para as Partes não seja controversa a natureza do Contrato, e, consequentemente, o regime jurídico que lhe é aplicável, importa abordar, ainda que perfuntoriamente este tema, seja porque é responsabilidade do julgador proceder ao enquadramento jurídico do que foi posto em causa independentemente do entendimento das Partes (jura novit cura), seja porque importa deixar definido o quadro normativo aplicável à execução do tipo de contrato em apreciação, especialmente as regras que ordenam o cumprimento e as consequências do incumprimento.

Assim, nos termos do n.º 2 do artigo 200.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) “são contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial.”

Atento o expressamente estipulado na Cláusula 2.ª n.º 1 al. b) do contrato sub judice, as Partes declararam expressamente que a execução obedece ao disposto no Código dos Contratos Públicos (CCP). Sempre assim seria mesmo que fosse omitida tal estipulação, uma vez que o CCP integra, no conjunto dos contratos administrativos que regula, o que, nos termos do artigo 450.º, visa a prestação de um ou vários serviços a uma entidade pública mediante o pagamento de um preço.

Significa isto que a conduta das Partes deve ser avaliada no quadro da relação jurídico-administrativa que o contrato celebrado institui, especialmente à luz do regime que se extrai do Capítulo III do Título I da Parte II do CCP.

A norma fundamental no domínio da execução do cumprimento destes contratos vem proclamada no artigo 288.º do CCP e mais não é do que a expressão no direito administrativo do princípio pacta sunt servanda do direito comum: “(...) incumbe ao cocontratante a exata e pontual execução das prestações contratuais, em cumprimento do convencionado (…)”.

Vejamos, pois, se a factualidade apurada é subsumível ao conceito de incumprimento gerador de responsabilidade contratual da B..., com as consequências que o Demandante considera caberem, designadamente a cessação antecipada dos efeitos do Contrato com perda do valor recebido com a adjudicação e sujeição a sanção pecuniária.

Cumprir o contrato implica que da observação da sua dinâmica se conclui pela exatidão na execução e pontualidade na realização das prestações. Ora, pode antecipar-se que os factos apurados tornam inequívoco não existir, in casu, correspondência entre aquilo que foi objeto das vontades convergentes dos contratantes e o resultado prestacional que se verificava no momento em que o A... decidiu antecipar o termo do contrato, resolvendo-o.

Com efeito, mesmo descontando as dificuldades na pontual execução impostas pela situação pandémica declarada na pendência da execução do Contrato, o documentário junto aos autos e os depoimentos prestados em audiência não deixam dúvidas sobre o incumprimento do Contrato no que respeita à fase inicial destinada apenas à recolha informações. Incumprimento que resultou de incapacidade manifesta de observar o planeado pela Demandada na metodologia que acompanhava a sua proposta contratual, aceite pelo A... . A causa está nas notórias dificuldades de articulação entre o pessoal da B... e a gestora efetiva (que não a formalmente nomeada) do Contrato pelo lado do Demandante. Mas é inelutável que a derrapagem do prazo por ambas as Partes considerado adequado para conclusão da primeira fase dos trabalhos, se ficou a dever à ausência de acompanhamento ou, pelo menos, a um acompanhamento distante (a partir de Luanda), e apenas sentido quando o Demandante deu sinais de insatisfação, da pessoa que se propôs ser o principal responsável pelo cumprimento das prestações pelo lado da Demandada, E... . Acresce, como causa do insucesso da execução contratual, a ausência, física e não só, de supervisão técnica por pessoa alegadamente contratada para o efeito, concretamente F..., cuja participação na fase primeva das atividades contratadas nem sequer é reconhecida pelo Demandante, pois que, como o próprio explicou, após a celebração do Contrato ficou inibido de dar o seu concurso por razões de parentalidade. Ou, ainda, na participação de pessoas, mobilizadas pela B..., sem que a sua competência tenha sido avalizada ou a sua aptidão fosse reconhecida até pela colaboradora da Demandada encarregada dessa tarefa, G..., que em relação H..., que a acompanhava nas entrevistas e no trabalho de levantamento da informação, declarou em audiência desconhecer as habilitações desta pessoa para a realização da atividade.

Incontroversa é também a apresentação de relatórios contendo erros ortográficos, deficiências na identificação de funcionários e na descrição das funções das unidades operacionais, relatórios que, constituindo embora versões de trabalho, naturalmente provisórias, pela natureza dos erros que continham, legitimam as desconfianças sobre a competência de quem recolheu a informação e a traduziu nos textos. Ou, pelo menos, denunciam pouco cuidado posto numa atividade que, atenta a metodologia proposta pela B..., correspondia a meros trabalhos preparatórios do core do Contrato que é a identificação de vulnerabilidades e a recomendação para que o A... adote as medidas de implementação do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Incontroverso é, ainda, o atraso no desenvolvimento dos trabalhos face ao programa de trabalhos apresentado pela Demandada na proposta aceite pelo Demandante na qualidade de entidade adjudicante.

Evidenciam-se, pois, as faltas contratuais apontadas pelo A... à B..., demonstrativas de que não se verificou por parte da Demandada cumprimento diligente, exato e pontual das obrigações a que pelo contrato se vinculou.

Correspondendo o que antecede à convicção do Tribunal perante a prova produzida, as circunstâncias concretas destes desvios ao contratado conduzem aos efeitos jurídicos pretendidos pelo Demandante, tendo em conta que, nos termos do artigo 26.º n.º 1 do Regulamento de Arbitragem Administrativa se encontra vedada a adoção de critérios de justiça material, estando o Tribunal vinculado à aplicação do direito constituído?

A resposta dependerá da validade da decisão de resolução do Contrato, e, no que respeita às sanções contratuais, de se mostrarem verificados, no caso sub judice, os pressupostos de que a lei faz depender a sua aplicação.

Vamos ver.

Como é sabido, o incumprimento de um contrato pode consistir na ocorrência de mora, no cumprimento defeituoso ou imperfeito ou no incumprimento definitivo.

A mora traduz-se no atraso na realização das prestações atenta a cláusula contratual que fixa o prazo de conclusão do contrato ou os prazos parcelares cujo cumprimento se afigura essencial à satisfação do interesse do credor, no caso, o interesse público.

Já o cumprimento defeituoso ou imperfeito corresponde, como imediatamente se intui, a um  desvio da obrigação de observar com exatidão aquilo que as Partes convencionaram. O cocontratante cumpre, mas o resultado parcelar ou final da sua prestação apresenta imperfeições ou defeitos.

Incumprimento definitivo é a forma agravada da violação do pacta sunt servanda uma vez  coloca inexoravelmente em causa a subsistência do contrato, tornada impossível a realização do seu desiderato. Seja porque, atenta a intensidade dos delitos contratuais, fica comprometida a obtenção do resultado que satisfaça o interesse do credor, ou porque este, ante a situação de facto criada, perde o interesse na prestação do devedor.

O Demandante, perante os atrasos na realização dos trabalhos iniciais e as deficiências na realização dos trabalhos da primeira fase acima caraterizados, entende que ocorre incumprimento “definitivo e culposo por parte da B... nos termos dos art.s 798.º, 799.º e 801.º do C.C.”, constituindo “justa causa de resolução do contrato”, razão pela qual precipitou o fim da relação contratual.

Entende o Demandante que “a prossecução dos objetivos gerais que presidem a execução de qualquer contrato público, que é o de assegurar que o contraente público recebe a prestação de serviços no prazo contratualmente fixado e com o nível de qualidade previsto no contrato ficou irremediavelmente inquinado” (v. alegações finais), lendo-se na informação dos Serviços do Demandante, na qual se fundamentou a decisão de resolver o Contrato, que “da análise do caso concreto a reiterada e injustificada prolação na resposta ou comunicação com o A... e no cumprimento dos prazos propostos conduzem a definitiva falta de confiança na prestação de serviços pela B... (…) e são configuradoras de uma situação de incumprimento reiterado e definitivo do contrato, imputável à adjudicatária e justificam a intenção de resolução do mesmo por parte do A...” (v. doc. 8 junto com o requerimento de arbitragem).

Após ponderação da pronúncia da Demandada em sede de audiência prévia, na notificação de resolução do Contrato, igualmente se considera verificado o incumprimento negligente, sistemático e indesculpável do mencionado contrato gerador de falta de confiança na qualidade do serviço prestado, e, sobretudo, nos respetivos resultados, tornando impossível a manutenção do vínculo contratual (v. doc. 9, junto pelo Demandante).

Para o Tribunal ficou claro o incumprimento parcial e evidenciado o retardamento da primeira fase de execução do contrato por motivos imputáveis à Demandada, como acima se deixou registado. Evidencia-se, também de forma inequívoca, o cumprimento defeituoso pela B... das prestações relativas a essa fase. Julga-se, no entanto, que tais incumprimentos não são suficientes para legitimar a resolução do Contrato por parte do A... perante a inverificação de um dos pressupostos de que depende, nos termos da lei, a validade da resolução-sanção.

Vejamos.

Dispõe o artigo 325.º n.º 1 do CCP que “se o cocontratante não cumprir de forma exata e pontual as obrigações contratuais ou parte delas por facto que lhe seja imputável, deve o contraente público notificá-lo para cumprir dentro de prazo razoável, salvo quando o cumprimento se tenha tornado impossível ou o contraente público tenha perdido o interesse na prestação” (sublinhado nosso).

Deixemos para análise posterior a questão da notificação para cumprimento que, nos termos do citado preceito, só tem lugar se não se verificar qualquer uma das situações que cabem na ressalva feita no inciso final do preceito.

A questão a responder, é esta: fornece o processo administrativo, ou foram trazidos aos presentes autos, elementos que permitam firmar a convicção de que a mora do cocontratante e a execução errada e imperfeita, ou qualquer outra circunstância (todavia não invocada pelo Demandante), tornaram impossível a satisfação do interesse público que com o Contrato se visou prosseguir?

Não parece poder responder-se afirmativamente.

Quer a prova documental, quer a prova obtida pelos depoimentos obtidos em audiência, vão no sentido de que, a partir de determinado momento, se tornara óbvio para ambas as Partes que a execução do Contrato se encontrava atrasada relativamente à proposta de planeamento apresentada no procedimento pré-contratual pela B..., aceite pelo Demandante, havendo que recuperar, tanto quanto possível, o desvio relativamente ao planeado, pese embora as dificuldades trazidas pela situação pandémica entretanto declarada.

Do mesmo modo, os relatórios entregues no decurso da fase designada por assessment inicial, em vista das deficiências que apresentavam, não foram, é certo, “validados”. No entanto, como resulta do tom e do teor da mensagem de correio eletrónico subscrita por D..., datada de 19 de março de 2020 (15:53), até ao convite para a B... se pronunciar em sede de audiência prévia sobre a intenção de resolução do contrato, o Demandante não deu sinais de que era seu entendimento que os atrasos seriam irrecuperáveis ou os erros e deficiências insanáveis, e, por isso, impossível a continuação dos trabalhos. Na referida mensagem de correio eletrónico aponta-se, é certo, uma extensa lista de deficiências aos relatórios de levantamento e caracterização da situação dos Serviços do A... . Mas também é certo que D..., efetiva responsável pelo acompanhamento da execução do contrato, ao mesmo tempo que informava das deficiências detetadas, comunicou que “o assunto não estava esquecido” em resposta, não somente ao pedido da Demandada para acelerar a apreciação do trabalho apresentado, como à questão expressamente apresentada por E... de saber se a metodologia adotada até então poderia continuar (v. mensagem de correio eletrónico de E... datada de 19/03/2020 (08:49)). Note-se ainda, com relevância para a integração jurídica do que nesta parte se aprecia, que a B... invocou a falta de agilidade do A... na apreciação das versões dos relatórios enviados pelo Demandado, para além das dificuldades trazidas pela necessidade de prevenção e controlo do novo coronavírus, adiantando que “novas reuniões com as respetivas áreas para se poder efetuar as correções necessárias”, face a “esta nova realidade”, era “proposta [que] deixa de fazer sentido”, com o que D... veio a concordar (v. supra, quanto à factualidade assente, o que consta do ponto (l) supra).

Ora, este expediente, datado de março de 2020 cerca de quatro meses antes da notificação da intenção de resolver o Contrato, não indicia que, apesar dos manifestos atrasos e dos reiterados erros detetados nos relatórios, tais circunstâncias tornassem impossível a realização das prestações.

É certo que o representante legal da Demandada, na mensagem de correio eletrónico datada de 20/04/2020, reconhece as responsabilidades da B... no atraso em relação ao planeamento que apresentou bem como pelos erros detetados na primeira e na segunda versão dos relatórios. E também é exato que só em 17/07/2020,  E..., por mensagem de correio eletrónico dirigida ao Demandante, reconhecendo não ter dado “a devida atenção ao projeto”, “bem como os elementos que estava a trabalhar no mesmo conseguiram corresponder às expetativas da B...”, só nessa altura voltou ao contacto com o A... para solicitar reunião, presencial, “ou outra que para vós seja mais conveniente”, para rever o planeamento inicialmente traçado de modo a concluir o trabalho nos cinco meses que faltavam até ao termo do Contrato.

O Tribunal não tem, pois, qualquer dúvida em reconhecer razão ao Demandante quando afirma que a execução do Contrato até ao momento em que foi determinada a sua resolução, foi displicente, sendo notória a incapacidade revelada pela Demandada de, até então, cumprir com exatidão, observando os padrões mínimos de diligência, o que, no âmbito do Contrato se propôs realizar.

Como se registou supra, o Tribunal também não hesita em julgar verificada a mora imputável à Demandada, aliás, confessada em mais do que uma oportunidade por E... e com especial ênfase na mensagem do correio eletrónico que dirigiu ao A... em 27/07/2020. Não se acompanha, pois, a Demandada quando alega que nunca se atrasou no cumprimento do Contrato, contrariando a evidência que emerge das várias comunicações subscritas pelo representante legal da empresa e nominal primeiro responsável pela boa execução.

O facto de não existirem datas parcelares de cumprimento obrigatório pela B... e de ainda não se ter verificado o terminus nele fixado – 12 meses após a assinatura do contrato, nos termos da clausula 9.ª do Contrato -, não afasta esta ilação. Como se sabe, incorre em mora aquele que, por causa que lhe seja imputável, comprometa a realização da prestação, ainda possível de realizar no tempo devido (v. artigo 804.º, n.º 2 do Código Civil). Ora, ainda que o Contrato não fixe tempos para desenvolvimento e conclusão das diferentes fases, a verdade é que estabelece o conjunto de prestações e respetiva precedência (o que, aliás, foi explicado ao Tribunal, com ênfase, pelas testemunhas G..., bem como por E..., ambos arrolados pela Demandada): a Demandada obrigou-se a fornecer, sequentemente, um assim designado Diagnóstico para Avaliação do Nível de Adequação com o RGPD, no qual caberiam as atividades de “recolha de informação relevante designadamente através da “realização de reuniões, entrevistas e observação presencial das práticas e rotinas dos trabalhadores e dos dispositivos de arquivo e preservação de informação” nos locais onde funciona o A..., e, posteriormente, a implementação de Plano de Medidas e Ações naturalmente resultante do diagnóstico (v. Cláusula 9.ª do Contrato).

Volta a fazer-se notar que para a atividade designada por assesment inicial a B... previa, no plano de trabalhos integrante da proposta apresentada no procedimento pré-contratual, o período de um mês num quadro temporal de seis meses para a realização da totalidade das prestações. Ora, mesmo que da prova produzida resultem dificuldades de entendimento entre as Partes com incidência no acerto do calendário de reuniões e entrevistas, dificuldades a que a atuação do Demandante pode ter tido influência, ainda assim a eventual mora do credor que por aí se possa vislumbrar, não tem a expressão capaz de afastar a responsabilidade pelo objetivo atraso imputável a B... .

Aqui chegados, considerando existir cumprimento defeituoso e mora no cumprimento imputáveis à Demandada, cumpre agora avaliar se os delitos contratuais verificados são suficientes para o Demandante obter permitem reconhecer os efeitos que o Demandante reclama na presente arbitragem.

Como supra se antecipou, a restituição pela Demandada do montante que lhe foi pago pressupõe que se conclua pela licitude da resolução do Contrato.

Ficou também assinalado que, nos termos do artigo 333.º do CCP, a resolução com caráter sancionatório não é consequência automática ou imediata do cumprimento imperfeito ou defeituoso das prestações ou do atraso na sua realização, mas apenas do incumprimento insolúvel.

Explica Pedro Gonçalves, aliás na esteira de uma doutrina bem consolidada neste ponto, que “o incumprimento diz-se definitivo quando a prestação em falta se torna impossível ou quando o contraente público tenha (objetivamente) perdido o interesse na prestação em falta” (Cumprimento e Incumprimento do Contrato Administrativo, in Estudos de Contratação Pública, I, Coimbra, 2008, p. 592).

Não resultou demonstrado, pese embora ser manifesto e considerável o atraso na execução do Contrato por parte da Demandada e não serem irrelevantes os erros que inquinaram os resultados das atividades realizadas pela B..., que estas faltas comprometessem irremediavelmente as prestações, impedindo a satisfação do interesse público através de uma reparação das deficiências e de uma recuperação de atrasos, determinadas por acordo ou pelo exercício do poder de direção que o contratante público detém (v. artigo 302.º al. a) do CCP). O Demandante limita-se a alegar, ante a factualidade que revela o cumprimento defeituoso e os atrasos, que o incumprimento do Contrato foi “displicente e reiterado” e “gerador da absoluta falta de confiança na qualidade do serviço prestado”, concluindo pela impossibilidade de manter o vínculo contratual. Porém, competindo-lhe fazê-lo, o Demandante não alega concretas razões capazes de demonstrar a impossibilidade objetiva da realização exata e pontual das prestações em falta, no tempo que restava até ao termo fixado no próprio Contrato. Faz-se de resto notar que a “falta de confiança” alegada pelo Demandante, conducente, se bem entendemos o seu raciocínio, à perda de interesse nas prestações, é apreciada objetivamente como prescreve o n.º 2 do artigo 808.º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 280.º n.º 4 do CCP. Ora, pouco do que foi carreado para os autos pelo Demandante, permite concluir, de forma objetiva – isto é, apoiada em factos demonstrativos da impossibilidade absoluta de cumprimento ou de quebra irreparável da confiança que levou à contratação da Demandada –, a perda de interesse na manutenção do Contrato.

Afastado o cenário de impossibilidade de cumprimento que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 325.º, n.º 1, 329.º, n.º 1 e 330.º al. a) do CCP, legitimariam a extinção dos efeitos do contrato a título sancionatório, importa ainda considerar que não ocorreu conversão da mora em incumprimento definitivo porquanto o Demandante não observou o dever de notificar a cocontratante, aqui Demandada, para cumprir em prazo razoável, conforme se determina no n.º 1 do artigo 325.º do CCP.

Só numa situação em que, após tal notificação expressa para cumprir em prazo concretamente determinado, a B... persistisse no incumprimento desse novo prazo, é que a mora se converteria em incumprimento definitivo, legitimando a resolução como sanção.

Não tendo havido essa determinação, corolário do princípio da conservação do contrato administrativo e manifestação dos poderes administrativos de direção detidos pelo A..., a decisão do Tribunal não pode ser outra do que considerar inverificado esse que é um dos pressupostos da licitude da resolução sancionatória nos termos da lei.

 

Avancemos para a questão de saber se existe fundamento jurídico para a condenação da Demandada no pagamento de 4 486,50 EUR, a título de “pena pecuniária por incumprimento contratual”.

O A... fundamenta a aplicação da sanção pecuniária no disposto na cláusula 17.º do caderno de encargos anexo ao Contrato, dele fazendo parte integrante, disposição que diz que “pelo incumprimento de obrigações emergentes do contrato, a Entidade Adjudicante pode exigir ao Adjudicatário o pagamento de uma pena pecuniária, de montante a fixar em função da gravidade do incumprimento do prazo da prestação de serviços objeto do contrato, até 0,5% do valor deste, até ao limite máximo de 50% do valor contratual”.

Sem lançar mão de referência temporal que permitisse mensurar o atraso, “o demandante computa modestamente uma pena pecuniária a exigir à demandada (...) no valor de trinta dias x € 149,55”. O que vale dizer que, para efeitos de aplicação de multa contratual, para o A... o atraso no cumprimento imputável à B... é de 30 dias.

Insurge-se a Demandada, alegando, em suma, que nos termos do CCP a aplicação de sanções pecuniárias reveste a natureza de ato administrativo, ato que o Demandante não praticou, não podendo essa aplicação encontrar via válida na instauração da presente ação arbitral.

Tem razão a Demandada.

Como sintetiza Carla Amado Gomes, “o poder de aplicar sanções previsto no artigo 302.º, al. d) traduz-se na prática de atos administrativos que visam compelir o cocontratante à boa execução das obrigações contratuais ou, no limite, resolver o contrato. O CCP deixa claro, no artigo 307.º/2/c) que se trata de atos administrativos – facto que releva, não só para efeitos de impugnação judicial, como também para determinação de formalidade procedimentais”. (A Conformação da Relação Contratual no Código dos Contratos Públicos, in Estudos da Contratação Pública, I, Coimbra, 2008, pp. 550-551).

À luz dos artigos 302.º e 307.º, n.º 2, al. c) do CCP não se suscita, com efeito, qualquer dúvida a natureza do ato administrativo da decisão aplicativa de sanções pecuniárias. E ainda que se lhes reconheçam caráter punitivo, tais sanções cumprem essencialmente uma função coerciva que visa conservar o contrato, estimulando ou constrangendo o devedor ao seu cumprimento.

Por isso, mesmo que se identificasse a existência no processo instrutor de uma decisão de sentido equivalente à multa contratual no montante reclamado pelo Demandante na presente arbitragem, a sua aplicação concomitante ou posterior à decisão de resolver o Contrato deixaria esse ato sem sentido: a multa contratual é a medida a que o princípio da proporcionalidade obriga quando, havendo que reagir contra a mora ou o cumprimento imperfeito, se tem a resolução como sanção excessiva. Ora, foi a resolução como sanção que o Demandante entendeu adequada.

 

Resta apreciar o pedido reconvencional deduzido pela Demandada.

Alega a B... que, ao resolver o contrato ilicitamente, o Demandante impediu-a de executar o Contrato e de com isso realizar a faturação respetiva, peticionando, por conseguinte, a condenação do A... no pagamento da parte do preço convencionado, não pago, de 14 995,00 EUR, acrescido de IVA.

Não merece amparo a pretensão da Demandada e Reconvinte.

Com efeito, a absolvição do pedido de restituição do montante que foi pago pelo Demandante à Demandada não significa o reconhecimento pelo Tribunal de que ocorre impedimento definitivo na execução do Contrato. Só esse alcance da decisão que se antecipou corresponder à convicção do Tribunal, permitiria à Demandada considerar extinta a relação contratual, imputando ao A... a responsabilidade pela impossibilidade de a B... realizar as prestações em falta.

Não é este o alcance da decisão do Tribunal.

Baseando-se a decisão arbitral na ilicitude do ato de resolução do Contrato, tudo se deve reconduzir à situação existente no momento em que foi tomada tal decisão, cabendo às Partes encontrar solução no quadro traçado pelo CCP, caso entendam ser ainda possível, na atualidade, reconstituir as bases de um entendimento que possibilite a satisfação do interesse de ambas, com especial relevo para o interesse público. Ou, diferentemente, no uso das prerrogativas do contraente público ou no estreito quadro da autonomia contratual em que se movem os sujeitos de um contrato administrativo, concluírem não ser já possível, perante as concretas e atuais circunstâncias, considerar o interesse na sua realização. Esse é, contudo, plano que está fora dos poderes outorgados a este Tribunal, trazido unicamente à colação para que se perceba a razão da improcedência dos fundamentos invocados pela Demandada.

 

VII. DECISÃO

Ante o que antecede, decide-se:

a) Absolver a Demandada do pedido de restituição da quantia de 18 394,95 EUR, correspondente ao montante que lhe foi entregue com a adjudicação, por se revelar ilícita a resolução do Contrato;

b) Absolver a Demandada do pedido de pagamento de 4 485,50 EUR a título de sanção pecuniária por incumprimento contratual, atenta a inexistência do ato de aplicação de tal sanção, sendo que a mesma, se aplicada, sempre seria de julgar ilegal pelas razões supra enunciadas.

c) Consequentemente, absolver a Demandada do pedido de pagamento de juros.

d) Absolver o Demandante do pedido reconvencional para pagamento da parte remanescente do preço contratual por não decorrer da improcedência dos pedidos formulados pelo A..., como efeito necessário, a impossibilidade de cumprimento do Contrato.

 

Custas na proporção de 2/3 para o Demandante e 1/3 para a Demandada.

 

15 de fevereiro de 2022

O Árbitro

José Mário Ferreira de Almeida