DECISÃO ARBITRAL
— I —
A..., aposentada da carreira de oficial de registos, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., n.º..., em ..., veio em 30 de junho de 2021 deduzir a presente ação arbitral contra o B..., com sede na ..., n.º..., em Lisboa, peticionando a final:
a) que seja reconhecido o direito da Autora a auferir o valor de €7.612,46 a título de diferenças de vencimento de categoria e o Réu seja condenado no pagamento de tal quantia;
b) que seja reconhecido o direito da Autora a auferir o valor total de €6.509,92 a título de diferenças de vencimento de exercício e o Reu seja condenado no pagamento de tal quantia e a recalcular corretamente o vencimento de exercício da Autora;
c) que seja reconhecido o direito da Autora a receber a título de diferenças de vencimento o valor de €1.170,62 e o Reu seja condenado no pagamento de tal quantia;
d) que seja reconhecido o direito da Autora a receber os emolumentos pessoais em falta a calcular pelo Réu;
e) que seja condenado o B... a comunicar a alteração do vencimento da Autora à CGA com vista á correção do calculo da sua pensão de aposentação;
f) que seja afastada a aplicação do art. 10.º n.º 1 e n.º 4 do DL n.º 145/2019 de 23/09 á Autora por inconstitucionalidade na interpretação de acordo com a qual para apuramento do vencimento base será considerado o vencimento de exercício calculado com base na Portaria n.º 1448/2001 e suas sucessivas renovações;
g) que seja ser repristinado o Decreto-Lei n.º 519-F2/1979 de 29 de dezembro e o disposto na Portaria n.º 940/99 de acordo com os quais se fixa a forma de calculo do vencimento de exercício a que os oficiais de registo tinham direito á data da entrada em vigor do DL 115/2018 (diploma que criou o regime da carreira especial dos oficiais de registo) e com base nisso calcular o vencimento médio nacional de um primeiro ajudante no 3.º escalão e aplicá-lo à Autora com consequente alteração da sua posição remuneratória; e, caso isso não seja exequível, aplicar á Autora o vencimento médio nacional de um primeiro ajudante no 3.º escalão á data da entrada em vigor do DL 115/2018, com consequente alteração da sua posição remuneratória.
Alegou, em síntese, que exerceu as funções de oficial de registos na Conservatória de Registo Predial de ... e que, nessa qualidade, auferia, como componente da sua retribuição, participação emolumentar e emolumentos pessoais; que a partir de 2020, com a entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 145/2019, foi revisto o estatuto remuneratório dos oficiais de registos e foram definidas as regras de transição remuneratória dos trabalhadores integrados anteriormente nas correspondentes carreiras, na sequência do que a A. passou a auferir mensalmente o valor de €1.928,13 que se situa entre o nível 27 e 31 e entre a posição 4 e 5 da tabela remuneratória única; que, fazendo o confronto entre o que a A. recebeu e o que resultava dos sucessivos diplomas legais e regulamentares que disciplinaram o estatuto remuneratório dos trabalhadores dos registos e do notariado a A. percebeu menos €7.612,46 relativamente àquilo que lhe deveria ter sido pago; que além desse valores em dívida, aquando da transição para a nova tabela remuneratória deveria ter sido considerado que a A., na categoria de origem, auferia pelo índice 290, e não pelo índice 280, pelo que foi penalizada pelo não recebimento da totalidade dos valores a que tinha direito assim como pela colocação errada na nova tabela remuneratória; que, além disso, entre 2001 e 2019 não lhe foi colocada a pagamento a quantia total de €6.509,92 a título de participação emolumentar a que tinha direito; que, nessa sequência, deveria ainda ser recalculada a participação emolumentar que lhe seria devida por conta da receita global líquida da totalidade dos serviços apurada em cada mês, nos termos do art. 61.º do Dec.-Lei n.º 519-F2/79; que na procedência dos fundamentos antecedentes, tem a A. também direito à correção e recálculo da componente remuneratória devida a título de emolumentos pessoais, na medida em que esta é fixada proporcionalmente ao vencimento de exercício; que, aquando da transição para a nova tabela remuneratória, a A. foi erradamente posicionada pelo demandado B...; finalmente, que deve ser afastada a aplicação do art. 10.º do Dec.-Lei n.º 145/2019, por ser inconstitucional, na parte em que determina que o vencimento base é composto pelo somatório do vencimento de exercício calculado nos termos da Portaria n.º 1448/2001 (e suas sucessivas renovações); devendo em alternativa aplicar-se o art. 54.º do Dec.-Lei n.º 519-F2/1979 e o disposto na Portaria n.º 940/99 (art. 1.º, 2.º, 3.º, 8.º) no cálculo do vencimento de exercício a que os oficiais de registo tinham direito á data da entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 115/2018 (diploma que criou o regime da carreira especial dos oficiais de registo) e com base nisso calcular o vencimento médio nacional de um primeiro ajudante no 3.º escalão e aplicá-lo á Autora ou, caso isso não seja exequível, aplicar á A. o vencimento médio nacional de um primeiro ajudante no 3.º escalão á data da entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 115/2018, dado que a partir de 01-01-2019, todos passaram a oficiais de registo.
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Regularmente citada, a entidade demandada apresentou contestação na qual se defendeu por exceção e por impugnação. Por exceção sustentou i) a incompetência da jurisdição arbitral quanto aos juízos de ilegalidade e de inconstitucionalidade que a A. formula quanto ao conjunto de atos legislativos e normativos que, desde o ano de 2000, foram sendo aprovados; ii) a intempestividade do recurso à presente instância, porquanto o ato administrativo de transição para a nova tabela remuneratória, consubstanciado na deliberação do Conselho Diretivo de 20-01-2020, que aprovou a lista nominativa de transições para as novas carreiras especiais, é conhecido da A. desde 29 de janeiro de 2020 — data em que foi notificada do seu reposicionamento remuneratório à luz das novas tabelas — pelo que há muito se verifica ultrapassado o prazo de impugnação estabelecido nos termos da al. b), do n.º 1 do artigo 58.º CPTA; iii) a impropriedade do meio processual, porquanto em face da caducidade do direito a impugnar o ato administrativo de transição para a nova tabela remuneratória, resulta do art. 38.º, n.º 2, do CPTA a proibição de recurso a outro meio processual para obter o efeito que resultaria da anulação de ato inimpugnável.
Por impugnação, sustentou a improcedência da ação.
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O Tribunal Arbitral foi nomeado por decisão do Conselho Deontológico do CAAD, tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 17.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem Administrativa deste CAAD. Nada tendo sido suscitado pelas partes, o Tribunal Arbitral ficou definitivamente constituído em 26 de outubro de 2021.
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Por despacho do Tribunal Arbitral foi notificada a A. para, querendo, responder às questões excetivas suscitada na contestação da entidade demandada.
Respondendo, sustentou a A. que as atualizações por si reclamadas decorriam imediatamente da lei e deveriam ser feitas de forma oficiosa, não carecendo de requerimento do interessado nem importando uma definição do direito ao caso concreto por ato administrativo; e que, em qualquer caso, a entender-se que se trataria de atos administrativos, tais seriam nulos por violação dos arts. 13.º, 47.º, n.º 2, 58.º e 59.º da CRP; que resulta do art. 204.º que quaisquer tribunais podem recusar a aplicação de normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignado pois, no caso dos presentes autos, seria peticionada não a declaração de inconstitucionalidade em abstrato mas as consequências da aplicação de certas normas à A. por parte da entidade demandada; finalmente, que de acordo com o art. 1.º, al. j), da Portaria n.º 1120/2009, o demandado B... aceitou a presente jurisdição arbitral para a resolução de litígios emergentes de relações jurídica de emprego público.
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Por despacho 1 de fevereiro de 2022 o Tribunal Arbitral indeferiu a apensação de diversas outras ações arbitrais aos presentes autos, tendo subsequentemente, por despacho de 3 do mesmo mês, indeferido as diligências probatórias requeridas pela A. e convidado as partes a pronunciarem-se quanto à possibilidade de condução do processo arbitral com base na prova documental e nos restantes elementos juntos ao processo, sem haver lugar à realização da audiência, nos termos do art. 18.º, n.º 4, do Regulamento.
Depois de ouvidas as partes, por despacho de 10-02-2022, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da audiência final, determinando que a condução do processo arbitral se fizesse apenas com base na prova documental e nos restantes elementos juntos aos autos e declarou encerrada a produção de prova, mais determinando a produção de alegações finais escritas.
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Ambas as partes apresentaram as respetivas alegações escritas, nas quais mantiveram no essencial as posições por si já vertidas nos articulados.
— II —
As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.
O presente Tribunal Arbitral é competente por força da vinculação à arbitragem institucionalizada do CAAD por parte da entidade demandada constante da Portaria n.º 1120/2009 e, em especial, do disposto no n.º 1, al. j) e no n.º 2, al. a), do art. 1.º deste instrumento regulamentar.
É certo que a entidade demandada exceciona a incompetência do presente Tribunal Arbitral com base em duas ordens de razão. Em primeiro lugar, invocando a natureza indisponível do direito à remuneração, sustenta que as pretensões da A. esbarrariam na ressalva da parte final da al. a), do n.º 2, do art. 1.º da cit. Portaria n.º 1120/2009, na medida em que aí se exclui da adesão à jurisdição arbitral do CAAD as questões emergentes de relações jurídicas de emprego público quando estejam em causa direitos indisponíveis. Crê-se, porém, que sem razão: a referência a direitos indisponíveis constantes de tal preceito regulamentar não abrange direitos de conteúdo pecuniário, em especial no que diz respeito à perceção de remunerações e suplementos remuneratórios, cingindo-se o seu âmbito de aplicação apenas aos direitos morais e direitos de personalidade que, pela sua própria razão de ser, sejam absolutamente indisponíveis. E, em qualquer caso, atendendo a que mesmo o direito à retribuição só é considerado indisponível no limiar inferior ao limite da impenhorabilidade (art. 175.º da LGTFP) sempre se teria de concluir que os créditos remuneratórios que a A. reclama na presente ação arbitral subingressam no domínio da sua esfera jurídica disponível (cfr., a propósito da impenhorabilidade, o art. 738.º do CPC).
Por outro lado, invoca a entidade demandada que a incompetência do presente Tribunal Arbitral resultaria ainda da reserva de jurisdição do Tribunal Constitucional para o conhecimento das inconstitucionalidades suscitadas pela A. Afigura-se indiscutível que a fiscalização abstrata da inconstitucionalidade das normas jurídicas pertence exclusivamente ao Tribunal Constitucional. É assim defeso a qualquer tribunal, incluindo também aos tribunais arbitrais, conhecer de questões dessa natureza.
Não é esse porém o caso dos presentes autos. Sem embargo de alguma infelicidade no modo como redigiu os pedidos f) e g) do seu petitório, resulta evidente que a pretensão da A. não se dirige a uma apreciação da constitucionalidade em abstrato das normas que invoca, mas antes a uma apreciação incidental da inconstitucionalidade na medida em que as suas estatuições sejam chamadas a regular a situação jurídica dela e a fundar o (in)sucesso da sua pretensão de reconhecimento do direito à perceção de diferenças remuneratórias que reivindica.
Assim, como bem refere a A., está em causa a aplicação do art. 204.º da CRP, preceito que reconhece a todos os tribunais, incluindo também aos tribunais arbitrais, o vulgarmente denominado acesso direto à Constituição, ou seja, o poder-dever de escrutinar a constituciona-li¬dade de todas as normas que sejam chamados a aplicar nos feitos submetidos ao seu julgamento.
Improcede assim a exceção de incompetência suscitada pela entidade demandada.
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Encontram-se suscitadas duas outras questões excetivas que, por conveniência se apreciarão simultaneamente. Trata-se da exceção de intempestividade e da exceção de impropriedade do meio processual.
Em síntese, sustenta a entidade demandada que a A. foi sendo notificada ao longo dos tempos de diversos ofícios e circulares que nunca impugnou contenciosamente, pretendendo agora obter os efeitos que teriam resultado da procedência de uma tal impugnação, se a tivesse deduzido tempestivamente, resultado esse que é expressamente impedido pelo art. 38.º, n.º 2, do CPTA.
Antes de mais, adiante-se desde já que estas duas exceções são manifestamente improcedentes, e vão desde já liminarmente rechaçadas, no que diz respeito ao ofício n.º ... de 29-05-2000, ao despacho n.º 20/2003 publicado no BRN n.º 10/2003 e à informação publicada no BRN n.º 10/2004. É manifesto que no caso de qualquer um destes três documentos não se está na presença de atos administrativos reguladores da situação individual e concreta dos seus destinatários, mas sim de meras circulares e orientações internas que perfilham a posição dos serviços sobre a interpretação a seguir na aplicação de certos preceitos legais, mas que não se projetam diretamente, e por sua própria autoridade, no conteúdo de concretas relações jurídico-administrativas em face de destinatários individuais ou individualizáveis. São, portanto, meros atos opinativos, jurisdicionalmente insindicáveis.
Importa, porém, apreciar esta exceção à luz da deliberação de 20-01-2020 do Conselho Diretivo do demandado B... que aprovou a lista nominativa de transição dos trabalhadores para as novas carreiras especiais de conservador de registos e de oficial de registos e de reposicionamento remuneratório desses mesmos trabalhadores, cuja cópia se encontra junta aos autos como o documento n.º 4 oferecido com a contestação.
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Com relevância para o conhecimento destas duas exceções, à luz da configuração jurídica que agora se lhes deu, considero provados os seguintes factos:
i) Em 20-01-2020 o Conselho Diretivo do demandado B... aprovou a lista nominativa de transições dos trabalhadores das antigas carreiras de conservador, de notário, de ajudante e de escriturário dos registos e do notariado para as novas carreiras especiais de conservador de registos e de oficial de registos criadas pelo Dec.-Lei n.º 115/2018, de 21 de dezembro, e bem assim a transição desses mesmos trabalhadores para as posições remuneratórias e níveis remuneratórios previstos no regime remuneratório aprovado pelo Dec.-Lei n.º 145/2019, de 23 de setembro, com efeitos reportados a 01-01-2020.
ii) Da lista referida em i) constava a A. nos seguintes termos:
iii) A deliberação referida em i), especificamente no que diz respeito ao teor da indicação referida em ii), foi notificada à A. através de correio eletrónico remetido em 29-01-2020 e nessa mesma data entregue na caixa postal eletrónica da A.;
iv) A notificação referida em iii) realizou-se a 05-02-2020.
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Com relevância para o conhecimento das exceções da intempestividade e impropriedade do meio processual inexistem quaisquer outros factos relevantes, segundo as diversas soluções plausíveis das questões de direito suscitadas nos autos, que devam considerar-se como não provados.
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A convicção do Tribunal Arbitral em relação ao ponto i. alicerçou-se na documento n.º 4 junto aos autos com a contestação da entidade demandada; já a factualidade provada nos pontos ii. e iii. assentou no documento n.º 5 oferecido com o mesmo articulado.
O ponto iv. da matéria de facto dada como provada resulta da presunção legal prevista no art. 113.º, n.º 6, do CPA: tendo ficado provada a expedição da mensagem de correio eletrónico em 29-01-2020, e não tendo sido feita prova (nem tão-pouco sido alegado qualquer facto) que abalasse a conclu¬são proba¬tória resultante da referida presunção legal (designadamente a data de acesso, pela A., à sua caixa postal eletrónica), há que concluir, como resulta daquela norma, que a referida notificação se efetuou no quinto dia útil posterior ao da expedição da correspondente mensagem de correio eletrónico.
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Como é sabido a entidade demandada excecionou a existência de ato administrativo cujo prazo de impugnação estaria há muito caducado aquando da propositura da presente ação arbitral, subsumindo essa factualidade no âmbito de aplicação do regime constante do art. 38.º, n.º 2, do CPTA.
Ambas estas exceções dependem, por conseguinte, da qualificação jurídica a dar à deliberação do Conselho Diretivo de 20-01-2020.
A resposta a esta última questão passa pelo disposto no art. 148.º do CPA, preceito segundo o qual “[se] consideram atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”. Esta norma, como é amplamente reconhecido na doutrina, promoveu uma significativa alteração do conceito legal em relação ao anterior CPA. O acento tónico do conceito de ato administrativo reside agora no cariz individual e concreto de uma decisão que, adotada no exercício de poderes administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos — isto é, a decisão administrativa, individual e concreta cujos efeitos se projetam no âmbito de uma relação administrativa de direito substantivo.
É hoje perfeitamente consensual que os atos praticados no contexto de relações jurídicas de emprego público são, para este e outros efeitos, considerados como atos que se projetam externamente e que definem o conteúdo de relações jurídicas administrativas de direito substantivo, na medida em que, no plano da relação de emprego, o trabalhador em funções públicas não surge junto da Administração pública investido numa posição de capitis diminutio.
Afigura-se assim que a factualidade dada como provada nos pontos i. e ii. do probatório permite, com segurança, concluir pela qualificação de tal deliberação como um verdadeiro ato administrativo.
É inequívoco que se está perante um ato decisório: os dizeres constantes desta deliberação são claríssimos no sentido da formulação de uma estatuição autoritária; trata-se também de uma decisão destinada a produzir efeitos numa situação individual e concreta, em especial na esfera jurídica da A. Por outro lado, trata-se igualmente de um ato emitido ao abrigo de poderes jurídico-administrativos, com invocação de vários preceitos legais no domínio do Direito do Emprego Público, que mais não é do que um ramo especial de Direito Administrativo.
Acresce que no sentido dessa mesma conclusão aponta também o disposto no art. 155.º, n.º 2, do CPA. De acordo com este preceito legal, “[o] ato [administrativo] considera-se praticado quando seja emitida uma decisão que identifique o autor e indique o destinatário, se for o caso, e o objeto a que se refere o seu conteúdo.” Este preceito legal “dá resposta à importante questão de saber quando deve entender-se que existe um ato administrativo e, portanto, quando deve falar-se da existência […] dos atos administrativos” (FAUSTO DE QUADROS ET ALLI, Comentários à revisão do Código de Procedimento Administrativo, Almedina, 2016, p. 307) e, nessa medida, os indícios que nele se descrevem, quando verificados, fazem presumir a existência de um ato administrativo — mas já não, bem entendido, a sua validade.
Ora, é inequívoco que a deliberação referida nos pontos i. e ii.. do probatório preenche, sem hesitações ou ambiguidades, a factispécie daquela norma do CPA: há uma decisão (uma estatuição autoritária) que identifica o seu autor (um órgão dirigente do demandado B...), indica os seus destinatários (entre os quais inquestionavelmente se inclui a A.) e o objeto do seu conteúdo (o reposicionamento para as novas categorias profissionais e as novas posições e níveis remuneratórios).
A conclusão não pode assim ser outra senão a de que a deliberação adotada em 20-01-2020 pelo Conselho Diretivo do demandado B... configura um ato administrativo que veio definir unilateralmente o quadro aplicável à A. em matéria de transição para a nova carreira de oficial dos registos e, naquilo que interessa à economia da presente arbitragem, no quadro da sua transição para as posições remuneratórios e níveis remuneratórios decorrentes dessa mesma carreira.
Face à qualificação como ato administrativo acabada de se efetuar, importa então averiguar se é processualmente possível obter-se por via de uma ação de condenação os efeitos que resultariam da anulação daquele ato administrativo.
Antes de mais, afigura-se como consensual que já não é processualmente viável, na presente ação arbitral, a pretensão de anulação judicial de tal ato. Com efeito, do confronto da data em que se considera efetuada a notificação desse ato (v. ponto iv. do probatório) com a data de propositura da presente ação (30-06-2021) resulta inequívoco que há muito que se esgotou o prazo para deduzir em juízo uma pretensão anulatória, tendo assim de se concluir pela caducidade do direito a deduzir a pretensão judicial de anulação do ato administrativo à data da propositura da presente ação.
Por outro lado, e como bem recorda a entidade demandada, é também necessário ter presente o regime resultante do art. 38.º, n.º 2, do CPTA, preceito segundo o qual “[n]ão pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do ato inimpugnável.” Conforme vem sendo o entendimento jurisprudencial dominante, neste preceito legal prevê-se uma questão impeditiva do conhecimento do mérito da causa e que, processualmente, se manifesta como uma exceção dilatória inominada cuja verificação impõe a absolvição do réu da instância — nesse sentido, cfr. Ac. STA 24-09-2015 (in Diário da República, 2.ª série, Apêndice de 23-09-2016, p. 1643).
Também VIEIRA DE ANDRADE reconhece que a caducidade do direito de propositura da ação de impugnação de um ato administrativo “obsta ao conhecimento do processo” (A Justiça Administrativa — Lições, 16.ª ed., Almedina, 2017, p. 297, n. 733), reforçando assim a ideia de que os efeitos que caracteristicamente estão associados ao juízo de invalidação de um ato — “sejam, por exemplo, os relativos ao restabelecimento in natura da situação jurídica ilegalmente criada” — não podem ser obtidos numa ação cujo objeto não consista na impugnação desse mesmo ato administrativo “porque isso corresponderia ou pressuporia uma verdadeira anulação do ato [e] a sua eliminação da ordem jurídica” (MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA / RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Almedina, 2004, p. 278).
Resulta assim inequívoco que é vedado obter-se os efeitos que resultariam da anulação de ato administrativo já inimpugnável através de uma ação cujo objeto não consista na impug-na¬ção de tal ato administrativo.
Ora, assente que está que a deliberação do Conselho Diretivo configura um ato administrativo que veio definir a situação jurídica na A. no que diz respeito à transição para os novos índices remuneratórios da carreira de oficial dos registos — ato esse que, de resto, já se afigura como inimpugnável —, a pretensão de ver reconhecido, ao arrepio do determinado em tal ato administrativo, o direito a perceber uma remuneração diversa da correspondente à posição e nível remuneratório em que a A. foi reposicionada por força de tal ato administrativo e a condenação da entidade demandada a colocar-lhe a pagamento as diferenças remuneratórias em causa bule diretamente com o caso decidido administrativo formado pela deliberação de 20-01-2020 do Conselho Diretivo. Esse resultado, que mais não seria do que uma forma de reconstituição in natura emergente da ilegalidade assacada ao ato, apenas poderia ser obtida no quadro, e na sequência, de uma decisão judicial de invalidação daquele ato.
Note-se que o decurso do prazo de impugnação não torna inatacável a eventual ilega-lidade de que o ato padeça: o art. 38.º, n.º 1, do CPTA permite que a ilegalidade de um ato admi¬nis¬trativo já inimpugnável possa servir de causa de pedir a uma pretensão de natureza res¬-sar¬citória em sede de responsabilidade extracontratual, verificados os demais pressupostos de que esta depende. Porém, não é esse o objeto da presente arbitragem.
Não sendo presentemente admissível a dedução de uma pretensão anulatória, face à consolidação daquele ato na ordem jurídica administrativa, é vedado à A. obter, por via de uma ação não impugnatória, o resultado que só através de uma ação de anulação poderia lograr obter.
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Sustenta a A., no contraditório que ofereceu aos documentos juntos pela entidade demandada, que ainda que a deliberação de 20-01-2020 configurasse um verdadeiro e próprio ato administrativo, o mesmo padeceria de nulidade com fundamento na ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos previstos no art. 161.º, n.º 2, al. d), do CPA, a qual poderia ser invocada a todo o tempo.
Antes de mais importa frisar que não está em causa a apreciação da legalidade do ato consubstanciado em tal deliberação do Conselho Diretivo: os vícios geradores de mera anulabilidade de que aquele ato eventualmente padeça não podem agora ser conhecidos nos presentes autos arbitrais, como se deixou acima demonstrado. Em causa está, portanto, verificar se o referido ato padece de vício que determine a sua nulidade, a qual como é sabido pode ser conhecida a todo o tempo.
Não é assim qualquer ilegalidade do ato que pode determinar a sua nulidade. Nesta sede não se cuida de averiguar se o ato está ferido de todas ou alguma das ilegalidades que a A. lhe assaca: essas questões de ilegalidade, por mais relevantes que possam ser do ponto de vista doutrinário, têm neste processo um interesse meramente académico, na medida em que, como se viu e decidiu, o direito a pedir a anulação do ato já caducou.
Cabe, apenas e somente, averiguar se o ato padece de um vício que o ordenamento jurídico reconhece como sendo de tal modo grave a ponto de lhe fazer corresponder o desvalor jurídico da nulidade.
Em causa está, portanto, apurar se, ao regular os termos em que se processou o reposicionamento remuneratório da A. na transição da nova carreira especial em que foi integrada, a deliberação do Conselho Diretivo do demandado B... ofendeu o conteúdo essencial dos direitos fundamentais previsto nos arts. 13.º, 47.º, n.º 2, 58.º e 59.º da CRP. Conforme se pode retirar do essencial da fundamentação da A., essencialmente procura-se convocar a aplicação do direito fundamental à remuneração em condições de igualdade segundo o princípio de que para trabalho igual salário igual [cfr. art. 59.º, n.º 1, al. a), in fine, da CRP].
Não se hesita por um instante em reconhecer neste preceito constitucional — em linha de resto com todos os outros invocados pela A. — a consagração de um direito fundamental que, não obstante sistematicamente inserido no título dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, se reveste de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, nessa exata medida, goza de aplicabilidade direta e se impõe diretamente a entidades públicas e privadas (nesse sentido, cfr., entre outros, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 1984, pp. 129, 322; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 1988, pp. 143-144; cfr. tb. Ac. TC n.º 373/91, Ac. TC n.º 52/03 e Ac. TC n.º 827/14).
A questão porém, é a de saber se o ato administrativo aqui em causa ofende o conteúdo essencial do direito fundamental à retribuição do trabalho segundo o princípio de que para trabalho igual salário igual. E apenas essa.
É certo que faltam coordenadas jurisprudenciais e doutrinárias precisas e consensuais quanto à exata delimitação do conceito de conteúdo essencial de um direito fundamental, em particular enquanto parâmetro da validade de atos administrativos. Porém, é possível identificar nesta figura uma função de preservação de um sentido útil a cada direito fundamental e de um mínimo de autonomia da posição jurídica do seu titular. Como reconhecem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “[a] garantia do conteúdo essencial é uma baliza última de defesa dos direitos, liberdades e garantias, delimitando um núcleo que em nenhum caso deverá ser invadido […] porque, em última análise, para não existir aniquilação do núcleo essencial, é necessário que haja sempre um resto substancial de direito, liberdade e garantia que assegure a sua utilidade constitucional” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Ed., 2007, p. 395).
Na mesma linha de entendimento, pode afirmar-se que “o conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito” (JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3.ª ed., 2000, p. 341).
Terá o ato administrativo agora em crise ferido esta reserva última de sentido útil do direito fundamental à remuneração em condições de igualdade na esfera jurídica da A.?
Crê-se na verdade que não.
Antes de mais é forçoso ter em conta que o direito fundamental à remuneração em condições de igualdade confere ao legislador uma ampla margem de conformação em relação à determinação do quantum remuneratório e à metodologia a observar na sua quantificação. Nessa medida, não se pode concluir que o referido preceito constitucional proteja no seu núcleo essencial e derradeira reserva o direito do trabalhador a perceber precisamente a exata medida da remuneração que, em cada momento, para ele resultariam da aplicação dos preceitos da lei ordinária.
Esta reserva última de sentido útil do direito à remuneração em condições de igualdade protege a expectativa dos trabalhadores a usufruir de uma remuneração que seja não apenas absolutamente idónea a garantia uma existência condigna, mas também uma remuneração que seja compatível e equilibrada em face das remunerações atribuídas a outros trabalhadores que desempenhem as mesmas funções, tenham a mesma experiência e possuam habilitações equiparáveis — portanto, do ponto de vista jusfundamental este preceito rejeita liminarmente soluções em que a determinação da remuneração dos trabalhadores não seja apurada ou determinada tendo também em consideração esta dimensão relativa ou comparativa, mas não postula (repete-se: no que diz respeito ao âmbito de aplicação do seu núcleo essencial e derradeira reserva de proteção) a absoluta e exata igualdade das remunerações em situações relativamente equiparáveis.
Neste enquadramento, o ato administrativo consubstanciado na deliberação do Conselho Diretivo do demandado B... não suprimiu in totum o direito da A. à perceção de remuneração em condições de igualdade nem o afetou em termos que tenham negado qualquer alcance útil ou que representassem, na verdade, uma efetiva aniquilação desse direito. É certo que o ato impugnado posicionou a A. numa posição e nível remuneratórios que, a ter por boa a interpretação do quadro legislativo aplicável por ela sufragada nestes autos, implicaram um desvio não negligenciável em relação à situação remuneratória em que a A. teria legalmente direito a ser posicionada. Mas ainda assim o ato impugnado reconheceu-lhe o direito a uma remuneração em termos que se afiguram compatíveis com o sentido útil e a reserva última do direito fundamental à remuneração em condições de igualdade.
Repetindo: não está em causa apurar se reposicionamento remuneratório da A. efetuado pela entidade demandada está ferido de ilegalidade. Essa apreciação está precludida e é nesta ação processualmente vedada. O que releva aqui e agora se cuida é saber se essa determinação fere o conteúdo essencial do direito fundamental previsto no art. 59.º, n.º 1, al. a), in fine, da CRP.
E a essa questão, e pelos fundamentos acima expostos, a resposta é negativa.
Poder-se-ia ainda assim colocar em causa a constitucionalidade do complexo normativo aplicado pela referida deliberação de 20-01-2020 do Conselho Diretivo do demandado B... ao proceder ao reposicionamento remuneratório da A.
Essa questão, porém, seria ociosa.
Com efeito, e como é unanimemente reconhecido pela jurisprudência administrativa, o ato administrativo que aplica normas inconstitucionais está ferido de erro nos pressupostos de direito decorrente de vício de violação de lei gerador de mera anulabilidade: o conhecimento desse vício segue, portanto, o regime geral das invalidades de atos administrativos e, como tal, está sujeito ao prazo geral de caducidade do direito de impugnação contenciosa — assim cfr., entre muitos outros arestos, Ac. STA(P) 27-6-1995 (in Acórdãos Doutrinais, ano 35, n.º 304, pp. 75-ss.); e Ac. STA(P) 6-7-1999 (in Diário da República, 2.ª série, Apêndice de 09-05-2001, pp. 920-924). Torna-se assim desnecessário apreciar a eventual inconstitucio¬na¬li¬dade das normas aplicadas pelo ato administrativo consubstanciado na deliberação de 20-01-2020 do Conselho Diretivo do demandado B..., na medida em que qualquer que fosse o resultado dessa operação dela não se poderia extrair consequência alguma para o desfecho da presente ação arbitral em virtude de estar já precludido o conhecimento do eventual vício resultante da aplicação por ato administrativo de normas inconstitucionais.
Em conclusão, pelos fundamentos expostos, julgo procedente a exceção dilatória inominada prevista no art. 38.º, n.º 2, do CPTA impeditiva do conhecimento do mérito no que diz respeito aos pedidos elencados nas alíneas c), f) e g) do petitório e, em consequência, a final absolver-se-á a entidade demandada da instância quanto a esses mesmos pedidos.
De salientar, porém, que a presente absolvição da instância diz respeito apenas à pretensão de obter, pela via da condenação numa obrigação de prestação, os efeitos que apenas poderiam ser alcançados na sequência da anulação do referido ato administrativo. Ora, este ato administrativo não visou regular a situação remuneratória pretérita da A., mas sim definir juridicamente o seu futuro posicionamento remuneratório, com efeitos a partir de 01-01-2020. Esse é, deste modo, processualmente inatacável.
Já não será assim quanto às diferenças remuneratórias pretéritas que a A. também reivindica na presente ação arbitral.
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Também deverá a entidade demandada ser absolvida da instância quanto à pretensão de sua condenação a comunicar a alteração de vencimento da A. à Caixa Geral de Aposentações com vista à correção do cálculo da sua pensão de aposentação, uma vez que tal pedido vem deduzido como consequência e dependência do pedido de reconhecimento ao direito a uma revalorização remuneratória no contexto da decisão administrativa que procedeu ao reposicionamento da posição e nível remuneratórios da A. (assim, art. 98 da p.i.). Ora, havendo lugar à absolvição da instância quanto ao pedido principal, os seus efeitos ter-se-ão forçosamente de se estender também ao pedido dele dependente.
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Inexistem quaisquer outras questões prejudiciais ou obstativas do conhecimento do objeto da causa ou nulidades processuais que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas Partes, quer ainda por serem do conhecimento oficioso.
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Devidamente saneados os autos, as questões de que importa neles conhecer e decidir são então as seguintes:
— Direito da A. a auferir o valor total de €7.612,46 a título de diferenças de vencimento de categoria;
— Direito da A. a auferir o valor total de €6.509,92 a título de diferenças de vencimento de exercício;
— Direito da A. a receber os emolumentos pessoais em falta, a calcular pela entidade demandada.
— III —
FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão da presente causa, segundo as várias soluções plausí¬veis das questões de direito suscitadas nos autos, considero provados os seguintes factos:
A. A A. exerceu funções de oficial de registos na Conservatória de Registo Predial de ....
B. A A. ingressou na função pública em 1981.
C. Em 30-05-1983 a A. foi nomeada Escriturária de 2ª classe da Conservatória do Registo Civil de ..., funções que exerceu até 03-03-1998.
D. Em 04-03-1998 foi nomeada Segunda Ajudante da Conservatória do Registo Civil de ..., auferindo pelo 2.º escalão índice 225.
E. Em 04-03-2001 passou a auferir pelo índice 235 do 3.º escalão.
F. Em 07-08-2001 foi nomeada Primeira Ajudante da mesma Conservatória e passou a auferir pelo índice 255 do 1.º escalão.
G. Em 07-08-2004 passou a auferir pelo 2.º escalão correspondente ao índice 265.
H. Em 01-01-2018 passou a auferir pelo 3.º escalão correspondente ao índice 280.
I. Foi aposentada pela CGA com efeitos a 1-3-2021.
J. A título de vencimento de categoria auferiu mensalmente os valores constantes na nota biográfica (junta como documento n.º 1 oferecido com a p.i.) e que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
K. Durante a sua carreira percebeu mensalmente os seguintes valores constantes na nota biográfica (junta como documento n.º 1 oferecido com a p.i.) e que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
L. Nesse período auferiu igualmente emolumentos pessoais pagos mensalmente, apesar de os mesmos não constarem da sua nota biográfica.
M. A partir de 2020, e até à sua aposentação, a A. passou a auferir mensalmente o valor de €1.928,13, que se situa entre o nível 27 e 31 e entre a posição 4 e 5 da tabela remuneratória única.
FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem quaisquer factos relevantes para a boa decisão da causa, segundo as diversas soluções plausíveis das questões de direito suscitadas nos autos, que devam considerar-se como não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A convicção do Tribunal Arbitral em relação aos pontos da matéria de facto dada como provada alicerçou-se na prova documental junta aos autos, em particular do documento n.º 1 oferecido juntamente com a p.i., bem como do acordo das partes.
— IV —
QUANTO AOS VENCIMENTOS DE CATEGORIA E DE EXERCÍCIO,
A primeira das questões decidendas é, então, a de saber a A. tem ou não direito ao pagamento das diferenças salariais que reclama e que decorreriam da circunstância de ter sido remunerada através da aplicação de índices salariais inferiores àqueles que lhe deveriam ter sido aplicados ao abrigo das disposições legais e regulamentares que disciplinaram o regime remuneratório aplicável à antiga carreira de ajudante dos registo e do notariado.
Em termos genéricos, a divergência entre ambas as partes radica na circunstância de a entidade demandada não ter aplicado as alterações dos índices dos diversos escalões remuneratórios da referida carreira decorrentes da entrada em vigor, ao longo dos tempos, de diversos diplomas legais e regulamentares que ela identifica.
Ora, compulsados os diplomas invocados pelas partes é possível concluir que nos termos do art. 1.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 131/91, de 2 de abril, que “as escalas indiciárias relativas aos ordenados dos conservadores e notários e dos oficiais dos registos e do notariado constam, respetivamente, dos mapas I e II anexos” ao referido diploma.
No que interessa aos presentes autos, do referido Mapa II supra consta que os Primeiros ajudantes eram remunerados pelos índices 255 (Escalão 1), 265 (Escalão 2), 280 (Escalão 3), 290 (Escalão 4) e 305 (Escalão 5) e os Segundos ajudantes remunerados pelos índices 210 (Escalão 1), 225 (Escalão 2), 235 (Escalão 3), 245 (Escalão 4) e 255 (Escalão 5), sendo que, nos termos do art. 1.º, n.º 2, do mesmo diploma, “as escalas salariais que constam do número anterior referenciam-se ao índice 100 da escala indiciária do regime geral e acompanham a atualização deste índice.” Donde, é assim manifesto que as escalas indiciárias relativas aos vencimentos dos oficiais de registos acompanham a atualização da escala indiciária do regime geral, solução que é diretamente imposta pela lei.
Ora, o índice 100 da escala indiciária do regime geral foi também variando ao longo do tempo:
— De acordo com a Portaria n.º 239/2000 de 29 de abril, com efeitos a 1 de janeiro de 2000, o índice 100 foi fixado em 58.383$00 ou seja, €291,21;
— Em 2001, o índice 100 foi fixado em 60.549$00, ou seja, €302,02 (Portaria n.º 80/2001 de 8 de fevereiro) com efeitos a partir de 01-01-2001;
— Em 2002 o índice foi atualizado para €310,33 (Portaria n.º 88/2002 de 28 de
janeiro), com efeitos a partir de 01-01-2002;
— Em 2005, o índice 100 foi fixado em €317,16 (Portaria n.º 42-A/2005) com efeitos a 01-01-2005;
— Em 2006, o índice 100 foi fixado em €321,92 (Portaria n.º 229/2006 de 10 de março), com efeitos a 01-01-2006;
— Em 2007, o índice 100 foi fixado em €326,75 (Portaria n.º 88-A/2007 de 18 de janeiro), com efeitos a 01-01-2007;
— Em 2008, o índice 100 foi fixado em €333,61 (Portaria n.º 30-A/2008 de 10 de janeiro), com efeitos a 01-01-2008;
— Em 2009, o índice 100 foi fixado em €343,28 (Portaria n.º 1553-C/2008 de 31 e dezembro), com efeitos a 01-01-2009.
Por outro lado, ao longo de todo o período relevante para os presentes autos, e como bem refere a A. — não sendo de colher a argumentação em sentido contrário deduzida pela entidade demandada, por manifestamente não ter qualquer suporte literal nas normas legais em causa —, foram adotadas várias medidas legislativas de revalorização dos índices remuneratórios das diversas carreiras da Administração pública que, assim, repercutiram os seus efeitos também nas carreiras especiais dos serviços dos registos e do notariado.
Assim, por força do art. 41.º do Dec.-Lei n.º 23/2002, de 1 de fevereiro (com efeitos reportados a 1-1-2002) os índices relevantes correspondentes aos escalões das carreiras tratadas no cit. Mapa II passaram a ser os seguintes:
Primeiros ajudantes — índices 255 (Escalão 1), 265 (Escalão 2), 280 (Escalão 3), 290 (Escalão 4) e 305 (Escalão 5);
Segundo ajudantes — índices 211 (Escalão 1), 225 (Escalão 2), 235 (Escalão 3), 245 (Escalão 4) e 255 (Escalão 5).
Por força do art. 41.º do Dec.-Lei n.º 54/2003, de 28 de março (com efeitos reportados a 1-1-2003) os índices relevantes correspondentes aos escalões das carreiras tratadas no cit. Mapa II passaram a ser os seguintes:
Primeiros ajudantes — índices 259 (Escalão 1), 269 (Escalão 2), 284 (Escalão 3), 294 (Escalão 4) e 310 (Escalão 5);
Segundo ajudantes — índices 214 (Escalão 1), 228 (Escalão 2), 239 (Escalão 3), 249 (Escalão 4) e 259 (Escalão 5).
Por força do art. 43.º do Dec.-Lei n.º 57/2004, de 19 de março (com efeitos reportados a 1-1-2004) os índices relevantes correspondentes aos escalões das carreiras tratadas no cit. Mapa II passaram a ser os seguintes:
Primeiros ajudantes — índices 264 (Escalão 1), 274 (Escalão 2), 290 (Escalão 3), 300 (Escalão 4) e 316 (Escalão 5);
Segundo ajudantes — índices 218 (Escalão 1), 233 (Escalão 2), 244 (Escalão 3), 254 (Escalão 4) e 264 (Escalão 5).
Finalmente, por força do art. 41.º do Dec.-Lei n.º 54/2003, de 28 de março (com efeitos reportados a 1-1-2003) os índices relevantes correspondentes aos escalões das carreiras tratadas no cit. Mapa II passaram a ser os seguintes:
Primeiros ajudantes — índices 259 (Escalão 1), 269 (Escalão 2), 284 (Escalão 3), 294 (Escalão 4) e 310 (Escalão 5);
Segundo ajudantes — índices 214 (Escalão 1), 228 (Escalão 2), 239 (Escalão 3), 249 (Escalão 4) e 259 (Escalão 5).
Assim, fazendo o confronto entre as remunerações que a entidade demandada colocou a pagamento à A. e àquelas que corresponderiam à correta aplicação das tabelas remuneratórias em cada momento vigentes, será possível concluir o seguinte:
— Em 2001: de Janeiro a Março, a A. recebeu em média €136.600$00 (€679,86), de Abril a Julho recebeu 142.300$00 (€709,79) e de agosto a dezembro recebeu em média €767,73. Mas por força da atualização do valor do indice100 para 60.549$00 (€302,02), devia ter recebido de janeiro a março 679,55€ (indice 225), de abril a julho €710,17 (indice 235) e a partir de agosto €770,15 (indice 255). Pelo que recebeu a menos a quantia total de €16,32.
— Em 2003: a A. recebeu €791,34. Porém, nesse ano, o índice 255 atualizou para 259 (pelo que de janeiro a outubro deveria ter recebido €803,75). Pelo que recebeu a menos a quantia total de €136,51.
— Em 2004, o índice 259 foi atualizado para 264. Porém, a A. recebeu €791,34 de janeiro a junho, quando deveria ter percebido €819,27, pelo que recebeu a menos a quantia total de €195,51. Em julho desse ano, a A. progrediu para o escalão remuneratório seguinte da sua categoria (que em 2003 passou a 269 e em 2004 passou a ser o 274). Porém, a A. recebeu €822,37 a partir de julho de 2004, quando deveria ter recebido €850,30, pelo que recebeu a menos a quantia total de €195,51.
— Em 2005 a A. recebeu em Janeiro €822,37. Nesse ano, o índice 100 foi atualizado para €317,16 pelo que a A. teria direito a receber 869,02€ (índice 274), tendo assim recebido a menos a quantia total de €372,38.
— Em 2006 a A. recebeu €840,47 (de Janeiro a Março) e €853,09 (de Abril a Dezembro). Nesse ano, apenas o índice 100 foi atualizado para €321,92, pelo que a A. teria direito a receber €882,06 (índice 274), tendo assim recebido a menos a quantia total de €443,44.
— Em 2007 a A. recebeu €865,89. Nesse ano, apenas o índice 100 foi atualizado para €326,75, pelo que a A. teria direito a receber €895,30 (índice 274), tendo assim recebido a menos a quantia total de de €411,74.
— Em 2008 a A. recebeu €884,07. Nesse ano, apenas o índice 100 foi atualizado para €333,61, pelo que a A. teria direito a receber €914,09 (índice 274), tendo assim recebido a menos a quantia total de €420,20.
- Em 2009 a A. recebeu €909,69. Nesse ano, apenas o índice 100 foi atualizado para €343,28, pelo que a Autora teria direito a receber €940,59 (índice 274), tendo assim recebido a menos a quantia total de €432,60.
— Em 2010 a A. recebeu €909,69 mas deveria ter recebido €940,59, tendo assim recebido a menos a quantia total de €432,60.
— De 2011 a 2017, a A. recebeu €909,69 mas deveria ter recebido €940,59, tendo assim recebido a menos a quantia total de €3.028,20.
— Em 2018, a A. transitou para a carreira /categoria de oficial de registos, por via legislativa, e ocorreu o descongelamento dos escalões, pelo que passou a auferir o vencimento pelo Escalão 3 e índice 280 (o qual tinha passado a corresponder, por força dos sucessivos diplomas de revalorização das escalas indiciárias, ao índice 290), a que correspondia a remuneração mensal de €995,51, tendo assim a A. recebido a menos a quantia total de €841,12.
— Em 2019 a A. auferiu €948,31 de janeiro a novembro e €961,18 a partir de dezembro. Porém, deveria ter sido remunerada pelo índice 290 (a que correspondia a remuneração de €995,51), tendo assim a A. recebido a menos a quantia total de €647,93.
Tudo somado ascende a €7.574,06 o montante de diferenças remuneratórias relativas à componente de vencimento de categoria a que A. tem direito e a cujo pagamento deve a entidade demandada ser condenada a final.
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Por outro lado, de acordo com o Dec.-Lei n.º 519-F2/1979 de 29 de dezembro a remuneração dos oficiais de registo e notariado era composta por uma parte fixa, correspondente ao vencimento de categoria, e por uma participação emolumentar, também denominada vencimento de exercício, que era determinada pela aplicação de determinadas percentagens sobre a receita mensal líquida do serviço (art. 54.º). No que diz respeito à participação emolumentar, a Portaria n.º 940/99 aplicou limites ao cálculo da mesma, determinando que deveria ser distribuída por todos os oficiais, na proporção dos respetivos vencimentos de categoria e assegurando, no mínimo, uma participação emolumentar correspondente a 100% do vencimento de categoria do oficial de registo (art. 4.º).
No caso da A., resulta assim que, como ela própria alega, o seu vencimento de exercício era idêntico ao vencimento de categoria, sendo que o seu pedido no que diz respeito às diferenças relativas a esta componente remuneratório está limitado à quantia de €6.509,92.
Assim, pelos fundamentos já expostos quanto à questão dos diferencias remuneratórios relativos aos vencimentos de categoria, há que reconhecer à A. o direito a perceber a quantia de €6.509,92 a título de diferenças remuneratórias relativas à componente de vencimento de exercício e a cujo pagamento deve a entidade demandada ser condenada a final.
QUANTO AOS EMOLUMENTOS PESSOAIS,
Prossegue a A. peticionando também a condenação da entidade demandada a pagar-lhe a quantia que vier a ser apurada a tal título na sequência de operação de recálculo a levar a cabo por aquela.
Em resumo, alega a A. que os emolumentos pessoais devem ser atribuídos aos funcionários das repartições registais na proporção dos respetivos vencimentos, nos termos do art. 137.º do Dec. Reg. n.º 55/80, de 8 de outubro, conjugado com o disposto no art. 9.º do Dec.-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de dezembro, e no art. 63.º do Dec.-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de dezembro, e bem assim das tabelas anexas à Portaria n.º 996/98, de 25 de novembro.
Ora, a este propósito a A. limita-se à alegação de que tendo o montante dos seus vencimentos de categoria e de exercício sido incorretamente apurado pela entidade demandada, tal teria necessariamente de se projetar na determinação dos montantes que lhe são devidos a título de emolumentos pessoais, porquanto estes são apurados na proporção dos vencimentos.
Afigura-se porém que não assiste razão à A.
Na verdade, para que esta sua pretensão pudesse ser julgada procedente seria necessária que ela alegasse e demonstrasse que os erros na determinação do seu vencimento efetiva e necessariamente influíram na determinação do montante que lhe caberia a título de emolumentos pessoais. Dito de outro modo: caber-lhe-ia demonstrar que, tendo por comparação as remunerações dos demais funcionários da conservatória em que esteve colocada, as diferenças salarias que agora lhe foram reconhecidas influenciariam a proporção relativa de todos eles na perceção e distribuição dos emolumentos pessoais.
Não só não o fez, como as circunstâncias relativas aos presentes autos e às dezenas de outras ações arbitrais que deram entrada simultaneamente no CAAD, indiciam que os erros na determinação dos vencimentos devidos não se cingiram à situação pessoal da A., mas antes terão afetado um conjunto muito alargado de funcionários em circunstâncias análogas às suas, pelo que está longe de demonstrado que, uma vez reparadas as situações remuneratórias de todos esses funcionários, a proporção dos demais funcionários da conservatória em que A. esteve colocada não devam permanecer inalteradas.
Assim, nada nos autos indicia ou permite concluir que tenha havido, em matéria de apuramento dos emolumentos pessoais que lhe seriam devidos, uma desproporção desfavorável à A.
Assim, este pedido não poderá deixar de improceder a final.
QUANTO À RESPONSABILIDADE PELOS ENCARGOS PROCESSUAIS,
Na sua petição inicial a A. atribuiu à presente causa o valor de €15.292,94, que corresponde assim à soma dos pedidos líquidos que deduziu. A entidade demandada não deduziu qualquer oposição ao valor assim sugerido.
Ora, nos termos do art. 37.º, n.º 2, do CPTA, quando sejam cumulados na mesma ação vários pedidos, o valor da causa será a quantia correspondente à soma do valor de cada um desses pedidos. Há assim que, primeiramente, apurar o valor de cada um dos pedidos individualmente considerado e, posteriormente, proceder à soma agregadora de todos esses valores.
Ora, se em relação aos pedidos deduzidos sob as alíneas a), b) e c) não se oferece qualquer dúvida quanto à sua quantificação pecuniária, já em relação aos demais pedidos inexistem quaisquer elementos que permitam quantificar com exatidão a sua utilidade económica. Assim, ao conjunto dos demais pedidos é de se atribuir o valor de €30.000,01 (art. 34.º, n.º 2, do CPTA).
Nestes termos, a final deverá fixar para a presente arbitragem o valor de €45.292,95.
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Conforme resulta do disposto no art. 29.º, n.º 5, do Regulamento de Arbitragem Administrativa do CAAD, nas arbitragens que tenham por objeto questões emergentes de relações jurídicas de emprego público não há lugar a fixação do critério de repartição de encargos processuais, sendo estes pagos por ambas as partes em função do valor fixado na tabela de encargos processuais.
Tendo presente o valor fixado à presente causa, e atendendo ao disposto na tabela I anexa ao referido Regulamento, fixo os encargos processuais devidos por cada uma das partes em €150,00, nesse montante se imputando os eventuais preparos ou adiantamentos que cada uma delas haja já realizado na presente arbitragem.
— V —
Assim, pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação arbitral parcialmente procedente e em consequência:
a) Absolvo a entidade demandada da presente instância arbitral quanto aos pedidos deduzidos nas alíneas c), e), f) e g) do petitório constante da petição inicial;
b) Condeno a entidade demandada a pagar à A. a quantia total de €14.083,98 a título de diferenças remuneratórias entre os vencimentos de categoria e de exercício a que ela teria direito a perceber entre os anos de 2001 e 2019 e as quantias que efetivamente lhe foram pagas a esse título pela entidade demandada, no mais absolvendo esta dos pedidos constantes da petição inicial;
c) Fixo à presente ação o valor de €45.292,95;
d) Condeno ambas as partes nas custas da presente ação, fixando em €150,00 os en-car¬gos processuais da responsabilidade de cada uma delas, nesse valor se impu¬tan¬-do os eventuais pagamentos ou adiantamentos que já hajam efetuado.
Notifiquem-se as partes.
Publique-se no sítio do CAAD.
Porto, 5 de abril de 2022.
O Juiz-Árbitro,
(Gustavo Gramaxo Rozeira)