Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 67/2020-A
Data da decisão: 2021-01-08  Contratos 
Valor do pedido: € 115.072,55
Tema: Ação administrativa com vista à condenação no pagamento de montantes reclamados com fundamento na prestação de serviços.
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SUMÁRIO:

 

I – Tendo ocorrido a extinção do contrato celebrado entre as Partes, por caducidade, mas tendo estas continuado a comportar-se como se o mesmo se mantivesse em vigor, há que concluir que se estabeleceu entre elas uma relação contratual de facto que, embora nula, não equivale a um nada, sendo algo que existe, tanto na ordem social como na ordem jurídica, embora de errada perfeição.

II – Apurando-se a existência de uma relação contratual de facto entre as Partes, baseada na prestação de serviços pela Demandante ao Demandado, com o conhecimento, sem a oposição e no interesse deste, sem que tal relação contratual tenha sido precedida do procedimento pré-contratual legalmente exigido, e sem que tenha sido emitido o necessário número de compromisso sequencial e válido, padece tal contrato de nulidade, quer por preterição do procedimento legalmente exigido, quer por absoluta carência de forma, quer ainda por força do disposto no artigo 5.º, n.º 3, da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso.

III – Tem aplicação o regime da nulidade dos contratos, designadamente o artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, que impõe a restituição de tudo quanto haja sido prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente.

IV – Porém, porque beneficiou, no âmbito do contrato nulo, dos serviços prestados pela Demandante sem ter pagado o preço correspetivo, e porque a prestação desses serviços já não pode ser desfeita retroativamente, o Demandado terá de restituir a parte objetivamente correspondente ao valor dos mesmos, a qual equivale ao preço estipulado no contrato entretanto extinto por caducidade, produzindo o contrato de facto os seus efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução.

V – O instituto do enriquecimento sem causa tem carácter subsidiário, não sendo mobilizável quando o ordenamento jurídico facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (cf. artigo 474.º do Código Civil), como sucede ao abrigo do regime da nulidade do negócio jurídico.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.

RELATÓRIO

 

1.            Partes, convenção arbitral e constituição do Tribunal

São Partes na presente ação arbitral a A..., S.A., na qualidade de Demandante, e o Município ..., na qualidade de Demandado.

Na sequência do Compromisso Arbitral outorgado pelas Partes, e submetido ao CAAD em 28 de abril de 2020, o qual originou o presente processo, foram as Partes foram notificadas em 29 de junho de 2020 da composição do Tribunal Arbitral, considerando-se este constituído nesta data.

 

2.            Lugar da arbitragem

 

A arbitragem teve lugar nas instalações do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, na Avenida Duque de Loulé, n.º 72-A, 1050-091 Lisboa.

 

3.            Pretensões formuladas, peças apresentadas e principais marcos da tramitação do processo

 

Depois de constituído, o Tribunal Arbitral deferiu, por despacho de 2 de julho de 2020, o pedido de oferecimento da petição inicial no prazo de 30 dias a contar da constituição do Tribunal, que havia sido formulado pelas Partes no Compromisso Arbitral.

Nesse seguimento, a Demandante apresentou o seu articulado em 27 de julho de 2020. Na sua petição inicial, a Demandante peticionou a condenação do Demandando no pagamento de € 115.072,55 (cento e quinze mil e setenta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de enriquecimento sem causa. Para tanto alegou, em síntese, que, no período decorrido entre 01.02.2019 e 30.06.2019, prestou ao Demandado, a pedido e no interesse deste, serviços de operação, manutenção e condução do funicular da ..., em ..., os quais não foram, até à data, pagos. A Demandante juntou 35 documentos à sua petição inicial e arrolou três testemunhas.

Em 16 de setembro de 2020, na sequência e em cumprimento de despacho proferido pelo Tribunal no dia anterior, foi o Demandado notificado da petição inicial apresentada pela Demandante, para, querendo, contestar no prazo de 20 dias.

Nessa sequência, em 6 de outubro de 2020, o Demandado deduziu contestação, na qual concluiu nos seguintes termos: “Deve a acção ser julgada procedente ou improcedente, consoante o entendimento que vier a ser sufragado por este Tribunal quanto à aplicação das regras do melhor direito, o que se impetra”. Para o efeito, alegou, em síntese, que as Partes firmaram entre si um contrato de facto, que o ordenamento jurídico comina com a nulidade, mas que merece a tutela do Direito e que, consequentemente, a Demandante deve ser remunerada, com fundamento na obrigação de restituição imposta pelo regime da nulidade dos negócios jurídicos. Mais referiu que, “contanto que venha a ser sufragado por esse Tribunal a existência de fundamento jurídico bastante para os pagamentos impetrados, e, portanto, afiançada por decisão arbitral, a cobertura legal para os pagamentos, o Município demandado não deixará de, imediatamente, os honrar” (artigo 41.º). Na contestação, o Demandado arrolou uma testemunha.

Em 9 de outubro de 2020, o Demandado juntou aos autos cópia do processo administrativo instrutor.

Por despacho de 2 de dezembro de 2020, o Tribunal, tendo constatado que o Compromisso Arbitral se encontrava subscrito pelos mandatários das Partes, determinou às Partes que juntassem aos autos (i) os instrumentos de mandato bastante através dos quais conferiram aos respetivos mandatários o poder de subscrever, em sua representação, o Compromisso Arbitral, ou, na ausência destes, (ii) os instrumentos de ratificação do Compromisso Arbitral, com respeito, no caso do Demandado, pelo disposto no artigo 184.º, n.º 3, do CPTA. Neste seguimento, a Demandante juntou aos autos, por requerimento de 15 de dezembro de 2020, uma procuração forense, datada de 1 de abril de 2020, outorgada pelo respetivo Presidente do Conselho de Administração, conferindo aos mandatários poderes para a outorga do Compromisso Arbitral em sua representação. Posteriormente, em 29 de dezembro de 2020, o Demandado juntou aos autos procuração forense, subscrita pelo Presidente da Câmara Municipal de..., em cumprimento do deliberado na sessão ordinária da Câmara Municipal de 23 de dezembro de 2020, através da qual conferiu aos respetivos mandatários poderes para outorgarem, em representação do Município, Compromisso Arbitral, ratificando o Compromisso Arbitral assinado com a Demandante e, consequentemente, ratificando todo o processado no presente processo arbitral.

Em 16 de dezembro de 2020, após convite às Partes para se pronunciarem, e não tendo estas levantado objeção ou formulado qualquer outra consideração, o Tribunal emitiu despacho determinando, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 18.º, n.os 4 e 6, e no artigo 24.º, ambos do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa do CAAD, a dispensa (i) da produção da prova testemunhal oferecida pelas Partes nos respetivos articulados (para o caso de se afigurar necessário), (ii) da apresentação de alegações finais (orais ou escritas), bem como, por consequência, (iii) da realização de audiência de julgamento.

 

II.

SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas em juízo.

Não existem exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.

Fixa-se o valor da causa em € 115.072,55 (cento e quinze mil e setenta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos), valor peticionado pela Demandante.

 

III.

MATÉRIA DE FACTO

 

III.1        Principais factos provados com relevo para a decisão da causa

               

Com relevo para a decisão da presente causa, consideram-se provados os seguintes factos:

A.           A Demandante dedica-se ao desenvolvimento, produção, comercialização e manutenção de elevadores, escadas rolantes, sistemas de transportes vertical de pessoas, bem como à operação destes equipamentos (cf. pacto social da Demandante consultado pelo Tribunal em https://publicacoes.mj.pt/Pesquisa.aspx).

B.            A Demandante prestou ao Demandado serviços de operação, manutenção e condução do funicular ..., em ..., desde 2009 e até 30.06.2019.

C.            Para a execução destes serviços, o Demandado lançou vários procedimentos pré-contratuais, na sequência dos quais os serviços foram adjudicados à Demandante.

D.           O último contrato para a prestação dos referidos serviços foi assinado em 06.11.2018 pelo preço contratual de € 115.999,90, sem IVA (cf. cláusula 2.ª do contrato – Doc. 1 junto com a p.i.).

E.            Esse contrato foi antecedido de concurso público com a ref.ª PAQ. .../2018/INT-CMV/2018/... (cf. processo administrativo instrutor, bem como anúncio do procedimento n.º .../2018, publicado no D.R., 2.ª série, de 02.08.2018, consultado pelo Tribunal em https://...

F.            O preço contratual inclui a prestação mensal do primeiro mês (agosto de 2018) no valor de € 22.445,00 (sem IVA) e as cinco restantes (setembro de 2018 a janeiro de 2019) no valor de € 18.710,98 (sem IVA) cada uma (cf. cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato – Doc. 1 junto com a p.i. – e mapa discriminativo mensal do valor da proposta adjudicada – Doc. 2 junto com a p.i.).

G.           O início de vigência do contrato referido foi reportado a 01.08.2018 (cf. cláusula 3.ª, n.º 2, do contrato – Doc. 1 junto com a p.i.).

H.           O prazo contratual estabelecido para a execução dos serviços foi de 6 meses a contar do início da vigência do contrato, com termo em 31.01.2019 (cf. cláusula 3.ª, n.º 1, do contrato – Doc. 1 junto com a p.i.).

I.             Data em que se estimava que os serviços de operação, manutenção e condução do funicular ... viriam a ser assumidos pela concessionária Serviço de Mobilidade Urbana de ..., a quem já estavam concessionados (cf. processo administrativo instrutor).

J.             Vicissitudes várias determinaram que, em 01.02.2019, os serviços não tivessem sido assumidos pela concessionária Serviço de Mobilidade Urbana de ..., o que só veio a acontecer em julho de 2019.

K.            Após o termo do prazo estabelecido contratualmente (31.01.2019), a Demandante continuou a prestar os referidos serviços, sem qualquer interrupção, até 30.06.2019.

L.            Fê-lo com o conhecimento, sem a oposição e no interesse do Demandado (cf. Docs. 3 a 5 juntos com a p.i. e processo instrutor, em especial Doc. 28-00).

M.          A operação do funicular era um serviço essencial para o Demandado, que não podia dele prescindir.

N.           Apenas em 30.06.2019 se deu por concluída a prestação dos serviços por parte da Demandante, em virtude da entrada em funções, no mês seguinte, da nova entidade da Mobilidade Urbana de ... naquele tipo de transporte público de passageiros.

O.           Em 26.07.2019, foi elaborado o auto de entrega dos serviços, dando-se por formalmente concluídos os serviços de operação e manutenção do funicular (cf. Doc. 30 junto à p.i.).

P.            Em 29.03.2019 e 01.04.2019, os serviços do Demandado propuseram superiormente a abertura de procedimento de ajuste direto, no valor de € 67.491,45 (sem IVA), para a contratualização dos serviços de manutenção, operação e condução do funicular da ... pelo período de 3 meses, com início em 01.02.2019 e termo final em 30.04.2019 (cf. Doc. 28-00 e Doc. 28-01 do processo instrutor).

Q.           Essa proposta de abertura de procedimento não chegou a ser aprovada (cf. processo instrutor, em especial Doc. 28-00).

R.            O Demandando não adotou qualquer procedimento pré-contratual para contratualizar os serviços prestados pela Demandante entre 01.02.2019 e 30.06.2019, nem celebrou por escrito um contrato com vista à sua formalização (cf. processo administrativo instrutor).

S.            Os órgãos competentes do Demandado não autorizaram a despesa com a aquisição dos desses serviços, nem foi posteriormente emitido um número de compromisso válido e sequencial relativo aos mesmos (cf. processo administrativo instrutor).

T.            Os serviços do Demandado anunciaram à Demandante que estava a ser preparado o lançamento de um novo procedimento que habilitasse à celebração de novo contrato para o período em causa, mesmo que assinado em data posterior.

U.           Todos os serviços foram pagos pelo Demandado à Demandante, com exceção dos relativos ao período decorrido entre 01.02.2019 a 30.06.2019.

V.           As faturas relativas ao referido período foram emitidas e enviadas na data que delas consta:

a.            Fatura n.º 1003, emitida em 10.09.2019 e referente ao mês de fevereiro de 2019, no valor de € 23.014,51 (inclui IVA) – Doc. 35 junto com a p.i.;

b.            Fatura n.º 1004, emitida em 10.09.2019 e referente ao mês de março de 2019, no valor de € 23.014,51 (inclui IVA) – Doc. 36 junto com a p.i.;

c.            Fatura n.º 1005, emitida em 10.09.2019 e referente ao mês de abril de 2019, no valor de € 23.014,51 (inclui IVA) – Doc. 37 junto com a p.i.;

d.            Fatura n.º 1006, emitida em 10.09.2019 e referente ao mês de maio de 2019, no valor de € 23.014,51 (inclui IVA) – Doc. 38 junto com a p.i.;

e.            Fatura n.º 1007, emitida em 10.09.2019 e referente ao mês de junho de 2019, no valor de € 23.014,51 (inclui IVA) – Doc. 39 junto com a p.i..

W.          O valor em dívida relativo aos serviços a que se reportam as faturas antecedentes ascende à quantia global de € 115.072,55 (com IVA incluído).

X.            Todas as faturas foram enviadas ao Demandado na data da sua emissão, que as recebeu.

Y.            O prazo de pagamento contratualmente estabelecido no contrato celebrado na sequência do concurso público com a ref.ª PAQ. ... era de 30 dias após a receção das faturas (cf. cláusula 2.ª, § 3, do contrato – Doc. 1 junto com p.i.).

Z.            Até à data, os serviços a que se reportam as faturas acima identificadas em V. não foram pagos pelo Demandado.

AA.        O Demandado reconhece que os serviços foram todos executados pela Demandante em perfeita conformidade com o solicitado.

 

III.2        Convicção do Tribunal quanto à prova

 

                A matéria de facto dada como provada resulta de acordo entre as Partes, por não haver sido impugnada especificadamente ou por ter sido confessada pelas Partes no Compromisso Arbitral e nos respetivos articulados, vindo ainda corroborada pela prova documental produzida no processo e pelo processo administrativo instrutor junto pelo Demandado aos autos. Foi ainda tida em consideração a matéria que, sendo instrumental ou complementar das alegações das Partes, resultou da instrução da causa e, concretamente, dos documentos acima referenciados.

Com efeito, conforme decorre do Compromisso Arbitral outorgado, bem como dos articulados apresentados por cada uma das Partes, estas estão perfeitamente de acordo quanto à factualidade subjacente ao litígio. E estão-no tanto no que respeita à efetiva prestação dos serviços pela Demandante ao Demandado no período decorrido entre 01.02.2019 e 30.06.2019, como no que se refere à circunstância de os serviços terem sido prestados com o conhecimento, sem a oposição e no interesse do Demandado, como ainda no que concerne aos montantes reclamados, que decorrem da aplicação dos preços convencionados no contrato entretanto extinto e relativamente aos quais o Demandado não se opõe.

Tanto assim é que, no Compromisso Arbitral outorgado pelas Partes, é reconhecida a “efetiva prestação do serviço pelo período indicado” (cf. Cláusula Primeira, n.º 2), a qual foi confirmada pelos serviços do Demandado (cf. Considerando D)), reconhecendo este que “não se deve locupletar com o valor dos mesmos” (cf. Considerando E)). De igual modo, na contestação oferecida, o Demandado afirma que “o que temos é um contrato de «facto», que deve ser olhado e entendido como um «verdadeiro» contrato, não podendo ser visto como um nada” (cf. artigo 30.º) e “reconhece sem reservas a existência e efectivação plena dos serviços supra descritos, os quais determinaram benefício económico para o interesse público”, não querendo, por conseguinte, “beneficiar deste sem pagar a respectiva contrapartida” (cf. artigos 10.º e 11.º). No mais, verifica-se que o Demandado não impugnou qualquer um dos factos alegados pela Demandante, antes os aceitou (cf. artigo 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

 Este contexto torna claro que o quadro factual ao qual o Tribunal tem de subsumir o Direito não é, de forma alguma, controvertido.

 

IV.

MATÉRIA DE DIREITO

 

1.            Como deixámos expresso no capítulo antecedente, o Demandado reconhece a sua obrigação de proceder ao pagamento dos serviços prestados pela Demandante no período que decorreu entre o dia 01.02.2019 e o dia 30.06.2019, e pelo valor reclamado, não obstante a extinção, por caducidade, do contrato vigente antes desse período. Aliás, importa sublinhar que o Demandado não se opõe ao pedido da Demandante, antes reconhece a obrigação de proceder ao pagamento por esta reclamado, obrigação esta que, na sua perspetiva, se funda no regime da nulidade dos contratos (cf. artigos 20.º a 31.º da contestação), limitando-se a pedir ao Tribunal que sufrague a existência de fundamento jurídico para o pagamento, a fim de lhe conferir cobertura legal para o efeito (cf. artigo 41.º da contestação). Naquilo que constitui uma singularidade deste processo (que o Tribunal, naturalmente, não deixa de registar), o Demandado pretende, pois, obter um título que legitime a realização do pagamento das quantias reclamadas pela Demandante, que voluntariamente se predispõe a fazer.

Porém, não obstante o reconhecimento pelo Demandado da procedência da pretensão da Demandante, está igualmente assente nos autos que aquele não desencadeou, como lhe competia, qualquer procedimento pré-contratual tendente à formalização da aquisição dos serviços em causa, não tendo existido cabimentação prévia da despesa, não tendo esta sido autorizada e não tendo sido emitido o correspondente número de compromisso válido e sequencial que habilitasse à realização do pagamento dos serviços prestados.

Nestes termos, a questão em causa no processo – que é uma questão exclusivamente jurídica, que não fática – é a de saber se, não tendo sido observados os trâmites legalmente exigidos (seja no plano das regras de contratação pública, seja no das regras financeiras de despesa pública), e sabendo-se, como referem as Partes, que o ordenamento jurídico comina essas violações com o desvalor da nulidade, pode ou deve o Demandado, ainda assim, proceder ao pagamento dos referidos serviços e, se sim, com que fundamento.

É, pois, esta – e apenas esta – a questão que este Tribunal é chamado a responder. Vejamos.

 

2.            Embora perfeitamente de acordo quanto à procedência da pretensão da Demandante, a verdade é que as Partes partem de premissas distintas: a Demandante, por um lado, invoca como causa de pedir o instituto do enriquecimento sem causa; diversamente, o Demandado  fundamenta a sua obrigação de proceder ao pagamento das quantias reclamadas no regime da nulidade dos contratos.

Assim, num primeiro momento lógico, a resposta à questão colocada ao Tribunal obriga a refletir sobre a relação estabelecida entre as Partes durante o período de tempo em que a Demandante continuou a prestar os seus serviços ao Demandado com o consentimento e no interesse deste, ainda que caducado o contrato até então em vigor. É que, se se vier a concluir que as Partes mantiveram, mesmo após a cessação deste último contrato, uma relação contratual, ainda que não titulada, a solução a oferecer à questão decidenda não poderá passar, ao contrário do que defende a Demandante, pelo acionamento do instituto do enriquecimento sem causa, o qual, atenta a sua natureza residual, só pode ser mobilizado quando o ordenamento jurídico não facultar ao “empobrecido” outro meio de ser indemnizado ou restituído – eis o que estatui o artigo 474.º do Código Civil, em cujos termos “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”. No caso dos autos, esse outro meio poderá bem ser – nos termos melhor analisados adiante – o regime da nulidade dos contratos, como alega o Demandado, conquanto se conclua que entre a relação mantida entre este e a Demandante após o dia 31.01.2019 continua a assumir natureza contratual.

Pois bem, como acertadamente refere o Demandado, um contrato mais não é do que um acordo de vontades, um encontro de declarações negociais cruzadas que firmam um vínculo bilateral, e que existe independentemente de redução a escrito. Isso decorre com muita clareza do disposto no artigo 280.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos (CCP), em cujos termos assume a natureza de relação jurídica contratual administrativa qualquer “acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, em que pelo menos uma das partes seja um contraente público”. No mesmo sentido, depõe também o artigo 95.º do CCP, que admite expressamente a inexigibilidade ou dispensa de redução a escrito de determinados contratos celebrados por entidades públicas.

Deste modo, para que se conclua que entre as Partes se firmou um contrato tendente à prestação dos serviços de operação, manutenção e condução do funicular ..., em ..., no período decorrido entre 01.02.2019 e 30.06.2019, é de todo em todo irrelevante que o mesmo tenha ou não sido precedido dos trâmites legalmente exigidos, incluindo a respetiva redução a escrito.

 

3.            Ora, perante a factualidade dada como assente, é indubitável, no entender do Tribunal, que a relação mantida entre as Partes após o dia 31.01.2019 assume natureza contratual, existindo entre elas um verdadeiro contrato de prestação de serviços, ainda que não escrito.

Com efeito, extinto em 31.01.2019, por caducidade, o contrato celebrado na sequência do concurso público com a ref.ª PAQ...., ambas as Partes continuaram a comportar-se rigorosamente como se esse contrato continuasse em vigor.

A Demandante, por um lado, continuou a prestar pontualmente, e sem interrupções, os serviços contratados, mantendo, operando e conduzindo o funicular como até então, na expectativa de vir a ser desencadeado o procedimento pré-contratual necessário à formalização de acordo escrito, conforme lhe fora transmitido pelos serviços do Demandado.

E o Demandado, por outro lado, continuou a comportar-se, salvo no que se refere ao pagamento do preço correspetivo, como se essa prestação fosse devida, criando na Demandante a expectativa de que novo contrato viria a ser formalizado. Neste enquadramento, o Demandado manteve o funicular na posse da Demandante, para que esta continuasse a operá-lo, nunca deu indicação de paragem do mesmo, nem exigiu desta a respetiva restituição (cf., em particular, Doc. 28-00 e Doc. 28-01 do processo instrutor), e emitiu instruções à Demandante sobre a forma de prestação do serviço (o que é confirmado pelas comunicações dirigidas pelos serviços do Demandado aos responsáveis pelo serviço do lado da Demandante juntas à p.i. como Docs. 3 a 5). É verdade que o órgão competente para a decisão de contratar nunca chegou a aprovar a despesa nem a adotar formalmente a decisão de contratar, mas resulta do processo instrutor junto aos autos que a circunstância de os serviços continuarem a ser prestados pela Demandante após a extinção do contrato anterior foi levada, pelos serviços do Demandado, ao conhecimento superior, sem que tivesse dada qualquer ordem ou instrução para a cessação dos mesmos ou para a entrega do funicular ao Demandado. Mais: nestes autos, o Demandado reconhece plenamente que não podia ter prescindido dos serviços prestados pela Demandante, uma vez que o interesse público determinava que o funicular continuasse ininterruptamente em operação, como, de resto, continuou.

Assim, no entender do Tribunal, os elementos disponíveis nos autos não permitem senão concluir que as Partes estabeleceram (rectius, mantiveram) entre si uma relação contratual, ainda que, a partir de dada altura (01.02.2020), não formalizada nem reduzida a escrito. Trata-se, na terminologia reiterada e consistente empregue pelos tribunais cimeiros da jurisprudência administrativa em situações em tudo similares à dos autos (i.e., manutenção da relação inaugurada por um contrato já caducado), de uma relação contratual de facto, também designada de contrato de facto (vd., inter alia, Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 17.04.2015, processo n.º 00949/11.5BEBRG, e de 1.07.2016, processo n.º 01231/11.3BEBRG). É, pois, esta a natureza da relação firmada entre as partes no período a que se reporta o litígio em causa no presente processo (01.02.2019 a 30.06.2019), como, aliás, o reconhece o próprio Demandado, no artigo 30.º da sua contestação.

 

4.            Mas há que reconhecer também que, conforme resulta da factualidade dada por assente, tal contrato – que, reitera-se, existiu – foi firmado (rectius, mantido) sem a precedência do procedimento legalmente devido e sem que tenham sido observadas as normas financeiras em matéria de cabimentação, autorização de despesa e assunção de compromisso. Como agora veremos, estas omissões constituem violação de regras legais aplicáveis, sendo suscetíveis de gerar a nulidade do contrato, o que aliás não deixou de ser alegado por ambas as Partes (cf. artigos 31.º e 47.º da petição inicial e artigos 20.º, 21.º e 24.º da contestação).

Em primeiro lugar, sendo o Demandado uma autarquia local (cf. artigo 236.º, n.º 1, da Constituição), assume inequivocamente a qualificação de entidade adjudicante nos termos e para os efeitos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do CCP. Esta qualificação determina, por força do disposto no artigo 16.º, n.º 2, alínea e), do CCP, que qualquer aquisição de serviços levada a cabo pelo Demandado deva ser necessariamente precedida de um dos procedimentos pré-contratuais tipificados no catálogo do artigo 16.º, n.º 1, do CCP, nomeadamente o ajuste direto, a consulta prévia e o concurso público, não lhe sendo permitido recorrer a formas alternativas – e desprocedimentalizadas – de contratação.

Todavia, o que aconteceu no caso dos autos foi que, cessando, por caducidade, o contrato até então em vigor, os serviços continuaram a ser prestados, com o conhecimento, sem a oposição e no interesse do Demandado, sem a adoção prévia de qualquer procedimento que desse cobertura à manutenção dessa relação contratual, fosse ele qual fosse, e sem a respetiva redução a escrito.

Não se trata aqui, note-se, do recurso a um procedimento para o qual não se verificam no caso concreto as condições de que depende a respetiva elegibilidade, como acontece quando uma entidade adjudicante lança mão do ajuste direto fora das situações em que ele pode legalmente ser escolhido (seja em função do valor do contrato a celebrar, seja em função de critérios materiais elencados, quando se trate da aquisição de serviços, nos artigos 24.º e 27.º do CCP). Diversamente, o que se verificou foi uma preterição total e absoluta do procedimento legalmente exigido, visto que não foi percorrido qualquer iter procedimental tendente à aquisição dos serviços aqui em causa pelo Demandado, nem sequer na veste mais simples e desburocratizada do ajuste direto. Desde logo, não foram tomadas, pelo órgão municipal competente para o efeito, as decisões propulsoras de qualquer procedimento pré-contratual regido pelo CCP: a decisão de autorização de despesa e a decisão de contratar (cf. artigo 36.º do CCP).

Portanto, e recorrendo às palavras do Tribunal de Contas, que aqui assumem toda a pertinência, “não pode deixar de se considerar que a formação do contrato não enferma só de inexistência de fundamentos para a realização de um procedimento de ajuste direto e a necessidade de se ter promovido um procedimento concursal. É que nem ajuste direto foi feito. Foi feita uma aquisição direta. Houve, pois, ausência absoluta de formalidades essenciais na formação do contrato. E esta situação enquadra-se claramente no artigo 133.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo então em vigor” (cf. Acórdão n.º 08/2015, de 30 de junho – 1.ª S/SS, no processo n.º 459/2015).

Há, pois, que reconhecer que a total preterição do procedimento legalmente exigido – e que, no caso, salvo existência de fundamento para recurso ao ajuste direto ou consulta prévia ao abrigo de critérios materiais, teria de ser um concurso público ou um concurso limitado por prévia qualificação, atendendo ao valor dos serviços prestados (cf. artigo 20.º, n.º 1, do CCP) –, bem como a absoluta carência de forma (quando era exigida a redução a escrito do contrato, nos termos do artigo 94.º, n.º 1, do CCP) constituem causa de nulidade do contrato de facto firmado entre o Demandado e a Demandante.

Com efeito, nos termos do disposto no artigo 284.º, n.º 2, do CCP, são nulos (e não meramente anuláveis) os contratos relativamente aos quais se verifique algum dos fundamentos de nulidade previstos no artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Ora, de acordo com a alínea l) do n.º 2 deste artigo 161.º, são nulos “[o]s atos praticados, salvo em estado de necessidade, com preterição total do procedimento legalmente exigido” e, nos termos da alínea g), são-no igualmente “[o]s atos que careçam em absoluto de forma legal”.

 

5.            Em segundo lugar, há que atentar na violação das normas financeiras relativas à cabimentação, autorização de despesa e assunção de compromissos, entre as quais ressalta, pela consequência jurídica que lhe está associada, e conforme alegado por ambas as Partes, a falta de emissão e inscrição do número de compromisso sequencial e válido exigido pelo artigo 5.º, n.º 3, da Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso das Entidades Públicas (aprovada pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, e sucessivamente alterada, doravante “LCPA”).

Nos termos do artigo 3.º, alínea a), da LCPA, compromisso é a “obrigação de efetuar pagamentos a terceiros em contrapartida do fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições”, sendo que, nos termos do já mencionado artigo 5.º, n.º 3, do mesmo diploma, “[o]s sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial […] sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos”.

Decorre deste regime que a emissão do referido número de compromisso válido e sequencial era condição necessária para que o Demandado (que se encontra abrangido pelo respetivo âmbito de aplicação, nos termos previsto no artigo 2.º, n.º 1, da LCPA, em articulação com o artigo 2.º, n.º 1, da Lei de Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro, conforme sucessivamente alterada) pudesse ter assumido a obrigação de efetuar pagamentos à Demandante, como contrapartida da prestação dos serviços em causa na presente ação.

Não tendo isso sucedido – em rigor, nenhuma das normas financeiras que regem a cabimentação, autorização de despesa e assunção de compromissos num caso como o dos autos foi respeitada, como resulta, desde logo, da ausência de ato autorizativo da própria despesa, que se situa num momento lógica e cronologicamente anterior ao da assunção do compromisso –, há que concluir que o contrato de facto estabelecido entre as Partes é, também por esta via, nulo, por força do disposto no artigo 5.º, n.º 3, da LCPA.

 

6.            Assente que está a natureza contratual da relação mantida entre as Partes entre 01.02.2019 e 30.06.2019 e a respetiva nulidade, importa apurar as consequências daí resultantes.

Sendo nulo, este contrato de facto é inapto para produzir os efeitos jurídico-negociais pretendidos pelas Partes, independentemente da declaração da respetiva nulidade (cf. artigo 162.º, n.º 1, do CPA), o que poderia inculcar a ideia de que o Demandado não poderia ser condenado a proceder ao pagamento reclamado nos autos. Todavia, a nulidade do contrato não determina necessariamente a improcedência da pretensão da Demandante. Com efeito, a relação contratual de facto em causa nos autos, ainda que nula, não é um nada, mas algo que existe, tanto na ordem social como na ordem jurídica, embora de “errada perfeição” (cf., v.g., Assento n.º 4/95, de 28.03.1995, do Supremo Tribunal de Justiça; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11.07.2002, recurso n.º 3B484; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 4.ª edição, Almedina, 2005, p. 873).

Sendo nulo o contrato, deve ser declarada oficiosamente pelo Tribunal a respetiva nulidade (cf. artigo 162.º, n.º 2, do CPA e artigo 286.º do Código Civil, ex vi do artigo 280.º, n.º 4, do CCP), a qual, apesar de não peticionada autonomamente pelas Partes, não constituirá certamente surpresa para elas, atendendo à configuração por ambas dada ao litígio, bem como à alegação do Demandado, que fundamenta a sua obrigação de proceder ao pagamento da quantia peticionada, precisamente, na nulidade do contrato (cf. artigos 20.º a 31.º da contestação).

Não se trata, pois, aqui de sanar a validade do contrato, afastando a respetiva nulidade, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 4, da LCPA – como erradamente pressupõe o Demandado, discutindo se tal afastamento poderia ocorrer por via de uma decisão arbitral, quando a norma, ao contrário da sua redação primitiva (conferida pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro), se refere exclusivamente a decisões judiciais. Bem pelo contrário, este Tribunal confirma (e não afasta) essa nulidade, declarando-a ao abrigo do disposto no artigo 162.º, n.º 2, do CPA e do artigo 286.º do Código Civil, ex vi do artigo 280.º, n.º 4, do CCP.

 

7.            Uma vez declarada a nulidade do contrato, torna-se necessário extrair daí as devidas consequências (sobre estas, vd., inter alia, o referido Assento n.º 04/95, do Supremo Tribunal de Justiça; Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.03.2004, no processo n.º 0338/03, de 24.10.2006, no processo n.º 0732/05, de 17.12.2008, no processo n.º 0301/08, e de 18.02.2010, no processo n.º 0379/07; ou ainda os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 02.04.2014, no processo n.º 07541/11, e de 15.10.2015, no processo n.º 07877/11, e do Tribunal Central Administrativo Norte, de 17.04.2015, no processo n.º 00949/11.5BEBRG, e de 01.07.2016, no processo n.º 01231/11.3BEBRG; e, no âmbito de processos arbitrais decorridos neste CAAD, cf. as Decisões Arbitrais de 09.03.2020, no processo n.º 1290/2019-A, de 23.04.2020, no processo n.º 1302/2019-A, de 30.04.2020, no processo n.º 1303/2019-A, de 11.05.2020, no processo n.º 1304/2019-A, e de 30.07.2020, no processo n.º 1306/2019-A).

Quanto às consequências da declaração de nulidade, diz-nos o artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil – aplicável ex vi do artigo 280.º, n.º 4, do CCP – que a mesma tem “efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

É, pois, no momento da declaração da nulidade do negócio que se estabelece entre as Partes uma “relação de liquidação” das prestações realizadas, que visa repor o statu quo ante, fazendo voltar o estado das coisas à situação anterior à celebração do acordo inválido.

Ora, no caso dos autos, em que o Demandado beneficiou, no âmbito de um contrato de execução continuada, dos serviços prestados pela Demandante (sem os ter pagado), traduzidos na manutenção da prestação dos serviços após a caducidade do contrato até então vigente, a restituição em espécie não é, evidentemente, possível. Com efeito, as prestações já foram cumpridas, em termos práticos e económicos, mediante a prestação desses serviços que não podem ser desfeitos retroativamente.

Nestes termos, não sendo possível, pela sua própria natureza, a restituição em espécie dos serviços prestados pela Demandante, terá o Demandado de restituir a parte objetivamente correspondente ao valor dos mesmos. Tal como teria, aliás, a Demandante de restituir as quantias recebidas em remuneração dos mesmos, caso tivesse chegado a recebê-las do Demandando, extinguindo-se, então e nesse caso, ambas as prestações restituitórias, por compensação, “tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva” (cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 4.ª edição, Almedina, 2005, p. 874; vd., também, JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, AAFDL, 1999, p. 298).

Porém, neste caso, nada tendo a Demandante a devolver, por nada ter recebido do Demandado, é apenas este que, confrontado com a impossibilidade de restituição in natura dos serviços por aquela prestados, fica constituído na obrigação de lhe restituir o valor correspondente ao das prestações realizadas. E, nas circunstâncias do caso concreto, esse valor correspondente não poderá deixar de ser o da própria contraprestação acordada, através do preço estipulado no contrato entretanto extinto por caducidade. Sendo este o valor que corresponde à utilidade decorrente da realização dessas prestações, é apenas com a restituição dele que pode alcançar-se, objetivamente, a repristinação das coisas – e, muito em concreto, do património do Demandado – ao estado anterior à celebração do negócio nulo.

Nesta conformidade, deve o Demandado ser condenado a restituir à Demandante – não a título de cumprimento de um contrato, o qual, como vimos, é nulo, mas por força dos efeitos imputáveis à lei, e especificamente do dever que é imposto, autonomamente, pelo artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil – a quantia acordada a título de preço no âmbito do contrato que se extinguiu em 31.01.2019, por ser este o valor correspondente às prestações realizadas, acrescida de juros de mora à taxa legal (cf. artigos 804.º, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.º 1, do Código Civil).

No entanto, porque o dever de restituição não emerge dos efeitos jurídico-negociais queridos pelas Partes, mas sim da própria lei, o Demandado não pode ser condenado no pagamento da quantia pedida pela Demandante a título de IVA.

Assim, o Demandado deve ser condenado no pagamento de € 93.554,90 (noventa e três mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e noventa cêntimos), que corresponde ao preço contratual (sem IVA) de cada prestação mensal a multiplicar por 5 meses (€ 18.710,98 x 5 = € 93.554,90).

 

8.            Aqui chegados, estamos em condições de afastar em definitivo a aplicabilidade do instituto subsidiário do enriquecimento sem causa – que, tendo origem jusprivatística, opera no âmbito das relações jurídico-administrativas –, fundamento jurídico que vem invocado pela Demandante. Vejamos.

Nos termos do artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil, “[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”. No caso dos autos, não há dúvidas de que se verifica um enriquecimento do Demandado à custa da Demandante, na medida em que aquele beneficiou dos serviços prestados por esta sem realizar qualquer contraprestação (sem pagar o preço correspetivo), obtendo assim uma vantagem patrimonial, suscetível de avaliação pecuniária. No entanto, não está preenchido o pressuposto da inexistência de causa justificativa de que aquele artigo 473.º também faz depender o reconhecimento de um direito à restituição (“sem causa justificativa”), uma vez que o empobrecimento da Demandante teve como causa a relação contratual estabelecida (rectius, mantida) com o Demandado para lá da extinção do contrato escrito (e válido) ao abrigo da qual se iniciou.

Por outro lado, estabelece o artigo 474.º do Código Civil que “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”. No presente processo, o ordenamento jurídico oferece um outro meio de ressarcir a Demandante e que consiste no regime da nulidade do contrato, em particular na regra de restituição de tudo o que tiver sido prestado prevista no artigo 289.º do Código Civil, como acabámos de verificar. Assim, no caso submetido à apreciação do Tribunal, a existência deste meio alternativo “impede o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do caráter subsidiário deste” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18.02.2010, processo n.º 0379/07). Nas palavras de ALEXANDRA LEITÃO, “caso o particular já tenha realizado as prestações a que estaria contratualmente obrigado, mas que foram desprovidas de causa em virtude da nulidade do negócio, o seu ressarcimento será obtido através da própria ação do artigo 289.º do CC. Esta disposição prevê a restituição in natura de tudo o prestado, ou caso tal não seja possível (como é o caso), a devolução do montante equivalente ao valor das prestações efetuadas. O recurso à figura do enriquecimento sem causa fica, assim, afastado, uma vez que a tutela de ambas as partes é assegurada pela própria ação de restituição” (O Enriquecimento sem Causa da Administração Pública¸ AAFDL, 1998, p. 84).

Sem prejuízo, não pode deixar de se referir que a solução que se alcançaria por via do instituto do enriquecimento sem causa se alinha plenamente com a que resulta do regime da nulidade contratual, nos termos antes expostos.

 

9.            Cabe deixar uma última referência quanto ao preceituado pelo artigo 9.º, n.º 2, da LCPA, em cujos termos “os agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma”. A questão coloca-se porque ambas as Partes aludem à nulidade estabelecida no artigo 5.º, n.º 3, da LCPA, fazendo, depois, o Demandada alusão expressa à norma do citado artigo 9.º, n.º 2 (cf. artigo 18.º da contestação).

Ora, esta norma – cuja conformidade com a Constituição não deixou já de ser questionada por alguma doutrina (cf., por último, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Direito da Despesa Pública, Almedina, 2019, pp. 213 e 214) e, mesmo, abertamente rejeitada por outra (cf. HUGO FLORES DA SILVA, “Principais consequências da violação da lei dos compromissos e dos pagamentos em atraso”, in Direito Regional e Local, n.º 20, outubro/dezembro de 2012, pp. 42, 45 e 46) – não constitui, no entender do Tribunal, obstáculo à procedência da ação.

E isto por três razões essenciais (cf., neste mesmo sentido, as Decisões Arbitrais proferidas no âmbito de processos arbitrais decorridos neste CAAD de 09.03.2020, no processo n.º 1290/2019-A, de 23.04.2020, no processo n.º 1302/2019-A, de 30.04.2020, no processo n.º 1303/2019-A, de 11.05.2020, no processo n.º 1304/2019-A, e de 30.07.2020, no processo n.º 1306/2019-A).

Em primeiro lugar, a nulidade do contrato de facto em causa nestes autos deriva não apenas da inobservância do preceituado na LCPA – e, muito em concreto, do respetivo artigo 5.º, n.º 3 –, mas também, como analisado, da preterição total do procedimento legalmente devido e da carência absoluta de forma legal, situações expressamente cominadas com o desvalor da nulidade pelo artigo 161.º, n.º 2, alíneas g) e l), do CPA. Ora, ainda que se pudesse admitir que o legislador, no artigo 9.º, n.º 2, da LCPA, pretendeu estabelecer uma nulidade atípica, cujo regime afasta a obrigação de restituição resultante do regime geral da nulidade do negócio jurídico (cf. artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil), a verdade é que esse regime atípico não abrange as situações de nulidade emergentes do artigo 161.º, n.º 2, do CPA, que não podem, portanto, deixar de seguir o regime geral.

Em segundo lugar, com a prolação de decisão condenatória, o Demandado poderá inscrever no seu orçamento o encargo aqui em apreço e, com tal cabimento, proceder ao pagamento dos débitos contraídos perante a Demandante, passando a ser a própria decisão arbitral – e não o contrato, que, entretanto, foi declarado nulo – o título que, mais do que legitimar, obriga a esse pagamento.

Em terceiro e último lugar, afigura-se que o artigo 9.º, n.º 2, da LCPA não poderá deixar de ser interpretado, sob pena de violação dos princípios da boa fé e da proteção da confiança, que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático (cf. artigo 2.º da Constituição), da proporcionalidade (cf. artigo 18.º, n.º 2), da igualdade (cf. artigo 13.º, n.º 1) e do direito de propriedade (cf. artigo 62.º, n.º 1), no sentido de obrigar o Demandado a proceder ao pagamento daquilo com se locupletou. Em suma, recuperando aqui a douta jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, “face à nulidade da relação contratual havida, outra posição que não aquela para que se propende conduziria a manifesta injustiça, isto é, a que a nulidade cometida fosse tratada como se o negócio jurídico em causa equivalesse a um nada. Na verdade, tal permitiria que o Réu [...], pese embora a celebração da obra, pudesse furtar-se ao pagamento dos encargos que ela representou para o autor da acção” (cf. Acórdão, de 18.02.2010, processo n.º 379/07), o que representa um resultado absolutamente desconforme ao Direito e que este Tribunal Arbitral não pode acolher.

Com efeito, “outra posição conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada por parte da Administração Pública, traduzindo-se ainda numa desproporcionada violação do princípio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto», resultante da nulidade verificada, equivalesse a um nada” (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 08.04.2016, processo n.º 02730/14.0BEPRT).

 

10.          Os factos dados como provados nos presentes autos – e que se traduzem, em síntese, na aquisição onerosa de serviços por parte do Demandado, sem que tenha sido formalmente desencadeado o procedimento pré-contratual tendente a dar cobertura a essa aquisição e ao correspondente pagamento, ao arrepio das normas de contratação pública e das normas que regem a realização de despesa – são suscetíveis de, em abstrato, configurar a prática de ilícitos financeiros e, consequentemente, de gerar a responsabilidade financeira dos titulares dos órgãos ou agentes administrativos eventualmente envolvidos.

Não constituindo objeto do presente processo nem cabendo a este Tribunal Arbitral a competência para averiguar eventuais responsabilidades financeiras, não pode, contudo, este Tribunal deixar de dar conhecimento do mesmo ao Tribunal de Contas, na qualidade de órgão jurisdicional competente para “[j]ulgar a efetivação de responsabilidades financeiras de quem gere e utiliza dinheiros públicos” (cf. artigo 5.º, n.º 1, alínea e), da Lei de Organização e Processo no Tribunal de Contas, aprovada pela Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, na sua redação atual), para os efeitos tidos por convenientes, designadamente os previstos nos artigos 57.º e ss. da Lei de Organização e Processo no Tribunal de Contas – em conformidade, aliás, com o anteriormente decidido no âmbito de processos arbitrais decorridos neste CAAD (cf. Decisões Arbitrais de 09.03.2020, no processo n.º 1290/2019-A, de 23.04.2020, no processo n.º 1302/2019-A, de 30.04.2020, no processo n.º 1303/2019-A, de 11.05.2020, no processo n.º 1304/2019-A, e de 30.07.2020, no processo n.º 1306/2019-A).

 

 

V.

DECISÃO

 

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente a ação e, em consequência:

(i)           Declarar a nulidade do contrato de facto firmado entre o Demandado e a Demandante, a coberto do qual esta prestou àquele, entre 01.02.2019 e 30.06.2019, serviços de manutenção, operação e condução do funicular ..., em ...;

(ii)          Condenar o Demandado a pagar à Demandante a quantia de € 93.554,90 (noventa e três mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e noventa cêntimos), acrescida de juros legais, contados desde a data da citação do Demandado, isto é, 27 de julho de 2020;

(iii)         Determinar que o pagamento referido na alínea anterior seja feito no prazo de 60 dias, conforme previsto na cláusula 6.ª do Compromisso Arbitral.

 

Os encargos do processo serão suportados em 4/5 pelo Demandado e em 1/5 pela Demandante (cf. artigo 29.º, n.º 6, do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa).

 

Remeta-se esta decisão arbitral para o Tribunal de Contas, para os efeitos tidos por convenientes.

 

Notifique-se as Partes.

 

Após expurgo dos elementos suscetíveis de permitir a identificação das Partes, promova-se a publicação da decisão no site do CAAD, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa.

 

Após trânsito em julgado, a presente decisão arbitral será o objeto de depósito na base de dados organizada pelo Ministério da Justiça.

 

Lisboa, 8 de janeiro de 2021

 

O árbitro único,

Débora Melo Fernandes