Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 1293/2019-A
Data da decisão: 2019-12-11  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 30.000,01
Tema: Artigo 49.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça.
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Decisão Arbitral

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 10 de outubro de 2019, em que é Demandante A... e Demandado o B..., decide nos termos que se seguem:

I.             RELATÓRIO

 

O Demandante apresentou, no dia 10.09.2019, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 10.º do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa (NRAA), um pedido de constituição de tribunal arbitral, o qual foi aceite na mesma data pelo CAAD.

 

Nos termos do disposto no artigo 12.º do NRAA, o CAAD, através de ofício datado de 12.09.2019, citou o B... para contestar no prazo de 20 dias. A contestação veio a ser apresentada no dia 04.10.2019.

 

No dia 10.10.2019, o CAAD, nos termos do disposto no artigo 17.º do NRAA, notificou as Partes da constituição do Tribunal a da nomeação da signatária como árbitro do processo.

 

Posição do Demandante:

Através do pedido de pronúncia arbitral apresentado, o Demandante pretende que o B... seja condenado a reconhecer o seu direito a ser remunerado em conformidade com a escala remuneratória da categoria de secretário de justiça, nos termos do n.º 2 do artigo 49.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça, (EFJ) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de agosto, na sua redação atual.

 

O Demandante é oficial de justiça, tem a categoria de escrivão de direito e exerce funções no Tribunal Judicial da Comarca de ...– Núcleo de ..., desde 28.01.2015.

 

A 07.10.2016, o Administrador Judiciário do Tribunal Judicial da Comarca de ..., no uso das faculdades gestionárias que lhe são conferidas pelo artigo 106.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, proferiu um despacho determinando que o Demandante “…pass[asse]e a executar, em acumulação, as tarefas necessárias à colaboração na direção dos serviços a praticar os atos relativos á gestão da contabilidade e gestão orçamental, relativamente ao Núcleo de ..., sob a orientação do Administrador Judiciário.” (cf. documento 1 junto com a petição inicial).

 

O Demandante pretende que o despacho acima transcrito seja reconhecido juridicamente como constitutivo do direito a ser remunerado pela categoria de secretário de justiça, mediante recurso ao regime de substituição previsto no artigo 49.º do EFJ.

 

Posição da Demandada:

- Apesar de algumas das funções que o Demandado exerceu na sequência do despacho de 07.10.2016 coincidirem com aquelas que podem ser desempenhadas pelos secretários de justiça, elas foram exercidas pelo Demandante sem qualquer poder de direção ou responsabilidade (aliás, o despacho do Administrador Judiciário não configura qualquer delegação de poderes). Por este motivo, não há, nem nunca houve, qualquer autonomia no exercício dessas funções, sendo, por conseguinte, afastado o entendimento de que o Demandante está sujeito aos deveres, obrigações e à mesma responsabilidade de outro qualquer secretário de justiça. Na prática, fica afastado o entendimento de que o Demandante tenha exercido o cargo de secretário de justiça.

- A conclusão constante do parágrafo anterior é reforçada pelo facto de não existir o lugar de secretário de justiça no mapa de pessoal do Núcleo de ..., pelo que o Demandante, também por essa razão, nunca poderia ter exercido essa função.

- Assim, não há que praticar qualquer ato conducente à remuneração do Demandante em conformidade com a escala remuneratória da categoria de secretário de justiça, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 49.º do EFJ.

 

II.            FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

Antes de entrar na apreciação das questões de direito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental junta aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

II.1 Factos provados

 

A.           O Demandante é escrivão de direito, exercendo funções na instância local cível do Núcleo de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... .

B.            O mapa de pessoal do Núcleo de ..., conforme última atualização da Portaria n.º 161/2014, de 26 de agosto, dada pela Portaria n.º 118/2019, de 18 de abril, é o seguinte:

“Núcleo de ...

Pessoal oficial de justiça: 14

Pessoal da carreira do regime geral: 2

Categorias:

Escrivão de direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2

Escrivão-adjunto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

Escrivão auxiliar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Técnico de justiça-adjunto. . . . . . . . . . . . . . . . 2

Técnico de justiça auxiliar. . . . . . . . . . . . . . . . 1

Assistente operacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2”.

C.            No mapa de pessoal do Núcleo de ... não existe lugar de secretário de justiça.

D.           No dia 7.10.2016, o Administrador Judiciário do Tribunal Judicial da Comarca de..., no uso das faculdades gestionárias que lhe são conferidas pelo artigo 106.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, proferiu o seguinte despacho:

“Com a nova organização judiciária passou a haver uma secretaria única, embora dispersa por toda a Comarca, bem como um orçamento único, gerido pelo administrador judiciário.

Nos Núcleos de ... e ... encontram-se instaladas, respetivamente, duas Instâncias Centrais de elevada movimentação processual, Comércio e Execuções, uma Secção de Instância Local Cível, e uma Criminal, Serviços do Ministério Público e Unidade Central, em ..., e uma Secção de Instância Local Cível, e uma Criminal, Serviços do Ministério Público e Unidade Central, em ... .

Apesar do quadro de ambos os Núcleos ultrapassar os sessenta funcionários não foi criado o lugar de Secretário de Justiça.

Apenas é possível ao Administrador Judiciário subdelegar competências ao nível da escolha do tipo de procedimento, aquisição de bens ou serviços e autorização da despesa, em funcionários com a categoria de Secretário de Justiça, conforme despacho nº. 2814/2016, de 3 de fevereiro de 2016, do Diretor-Geral da Administração da Justiça, publicado no Diário da República, 2.ª série, N.º 38, de 24 de fevereiro de 2016.

Por não existir funcionário para assegurar as competências atribuídas ao secretário de justiça, conforme al. b) do Mapa I do Estatuto dos Funcionários de Justiça anexo ao Decreto-Lei nº. 343/99, de 26 de Agosto, por meu despacho de 21 de outubro de 2015, foi designado o Escrivão de Direito, Sr. C... a fim de colaborar na direção dos serviços e praticar os atos relativos à gestão da contabilidade e gestão orçamental dos Núcleos de ... e ... .

No entanto, este Funcionário irá cessar brevemente as atuais funções de escrivão de direito, por ter sido convidado para Secretário de Inspeções do CSM.

Assim, por terem demonstrado disponibilidade para tal, os Senhores Escrivães de Direito:

- D..., NM ..., a desempenhar funções no Núcleo de ..., na secção da instância local cível

- E..., NM..., a desempenhar funções no Núcleo de ..., na 2ª secção da instância central de comércio, e

- A..., NM..., a desempenhar funções no Núcleo de ..., na secção da instância local cível,

Ao abrigo do disposto nos artºs. 66º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de agosto – Estatuto dos Funcionários de Justiça, na sua redação atual, e artº. 106º, nº. 1 al. c), da Lei 62/2013, de 26 de agosto, de março, e para ter efeitos no dia seguinte à cessação das funções de escrivão de direito do Sr. C..., Determino:

a) Que o Escrivão de Direito Sr. A..., NM... passe a executar, em acumulação, as tarefas necessárias à colaboração na direção dos serviços e praticar os atos relativos á gestão da contabilidade e gestão orçamental, relativamente ao Núcleo de ..., sob a orientação do Administrador Judiciário.

b) Que o Escrivão de Direito Sr. E..., NM ... passe a executar, em acumulação, as tarefas necessárias à colaboração na direção dos serviços e praticar os atos relativos á gestão da contabilidade e gestão orçamental, relativamente ao Núcleo de ..., sob a orientação do Administrador Judiciário, com a exceção das abaixo indicadas, atribuídas à Escrivã de Direito, Srª D... .

c) Que a Escrivã de Direito, Srª. D..., NM ..., passe a executar, em acumulação, as tarefas necessárias à colaboração na direção dos serviços e praticar os atos relativos á gestão do arquivo; controlo e registo da assiduidade, e gestão e controlo do economato, relativamente ao Núcleo de ..., sob a orientação do Administrador Judiciário.”

E. O Demandante tem vindo a exercer as funções que lhe foram atribuídas pelo despacho supra transcrito.

 

 

 

II.2 Factos não provados

 

Não existem factos relevantes para a decisão que tenham sido dados como não provados.

 

II.3 Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 26.º do NRAA).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 26.º do NRAA).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. Por outro lado, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

O Demandante sustenta, no pedido de pronúncia arbitral apresentado, que exerce, desde 07.10.2016, as funções de secretário de justiça em acumulação com as suas funções de escrivão de direito, mas que a sua remuneração só corresponde a estas últimas.

 

Um secretário de justiça dirige a secretaria, tendo as competências que estão elencadas no mapa I anexo ao EFJ, ou seja:

             Dirigir os serviços da secretaria;

             Elaborar e gerir o orçamento de delegação da secretaria;

             Assegurar o expediente do Serviço Social do B..., na qualidade de seu delegado;

             Proferir nos processos despachos de mero expediente, por delegação do magistrado respectivo;

             Corresponder-se com as entidades públicas e privadas sobre assuntos referentes ao funcionamento do tribunal e ao normal andamento dos processos, por delegação do magistrado respectivo;

             Dirigir o serviço de contagem de processos, providenciando pelo correcto desempenho dessas funções, assumindo-as pessoalmente quando tal se justifique;

             Desempenhar as funções da alínea c) sempre que o quadro de pessoal da secretaria não preveja lugar de escrivão de direito afecto à secção central;

             Desempenhar as funções das alíneas d) e i) sempre que o quadro de pessoal da secretaria não preveja lugar de escrivão e ou técnico de justiça principal afectos à secção de processos;

             Distribuir, coordenar e controlar o serviço externo;

             Providenciar pela conservação das instalações e equipamentos do tribunal;

             Nas secretarias-gerais, dirigir o serviço da secretaria por forma a assegurar a prossecução das respectivas atribuições e desempenhar as demais funções previstas nesta alínea relativamente à Secretaria-Geral respectiva;

             Desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior.

 

No quadro do Núcleo de ... não existe o lugar de secretário de justiça, mas o Demandante entende que (i) tem vindo a exercer essas funções desde que se iniciou a execução do despacho de 07.10.2016 proferido pelo Administrador Judiciário do Tribunal Judicial da Comarca de ... no uso das faculdades gestionárias que lhe são conferidas pelo artigo 106.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e que (ii) ao abrigo do disposto no artigo 49.º do EFJ, tem direito a ser remunerado de acordo com essa escala remuneratória.

 

Nos termos do disposto no artigo 49.º do EFJ:

1. Nas suas faltas e impedimentos, e sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 46º, os secretários de tribunal superior, secretários de justiça, escrivães de direito e técnicos de justiça principais são substituídos pelo oficial de justiça de categoria imediatamente inferior, designado pelo respectivo superior hierárquico e autorizado pelo director-geral dos Serviços Judiciários.

2. A substituição que se prolongue por um período superior a 30 dias confere ao substituto o direito de ser remunerado em conformidade com a escala remuneratória da categoria do substituído, nos termos constantes das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 84º.

3. O despacho que autorizar a substituição é publicado no Diário da República.

4. O tempo de serviço prestado em regime de substituição releva para a contagem de antiguidade na categoria de origem.

 

A figura da substituição permite portanto, no contexto do EFJ, a substituição de secretários de tribunal superior, secretários de justiça, escrivães de direito e técnicos de justiça principais, nas suas faltas ou impedimentos e, de acordo com o disposto neste artigo 49.º implica uma designação por parte do respetivo superior hierárquico e uma autorização pelo diretor-geral dos serviços judiciários, sendo o despacho que autorizar a substituição publicado no Diário da República.

 

A mesma disposição legal fixa ainda duas consequências da substituição ocorrida nestes termos: (i) quanto à remuneração, o n.º 2 determina que a substituição que se prolongue por um período superior a 30 dias confere ao substituto o direito de ser remunerado em conformidade com a escala remuneratória da categoria do substituído, nos termos constantes das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 84º do EFJ; (ii) quanto à antiguidade, o n.º 4 determina que o tempo de serviço prestado em regime de substituição releva para a contagem de antiguidade na categoria de origem.

 

O Demandante pretende que lhe seja reconhecido o direito de ser remunerado em conformidade com a escala remuneratória da categoria do substituído, sem que contudo tenha provado as circunstâncias das quais a lei faz depender essa consequência.

 

Com efeito, não obstante se considerar provado que o Demandante tem vindo a exercer funções, desde que se iniciou a execução do despacho de 07.10.2016, que acrescem às que anteriormente desempenhava – o que poderá, eventualmente, ser relevante noutra sede – a verdade é que, ao abrigo do concreto regime de substituição previsto neste artigo 49.º do EFJ, não lhe assiste qualquer direito porquanto (i) não existe, no Núcleo de..., a figura do secretário de justiça; (ii) como tal, não ocorreu qualquer falta ou impedimento de um secretário de justiça; (iii) assim sendo, o Demandante não foi designado, nos termos do artigo 49.º do EFJ, para substituir um secretário de justiça, pelo que, não se lhe aplicam os direitos que resultariam de tal situação, nomeadamente o de auferir a remuneração correspondente à escala remuneratória da categoria do substituído.

 

Nestes termos, este Tribunal considera que não assiste razão ao Demandante no enquadramento que faz da sua pretensão.

 

IV.          DECISÃO

 

Pelo exposto anteriormente, nos termos e com os fundamentos explicitados, decide o Tribunal pela não procedência do pedido e consequente absolvição da Demandada.

 

V.           VALOR DA CAUSA

 

Fixa-se o valor da ação nos € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) nos termos do n.º 1 do artigo 32.º do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º do NRAA, sendo a taxa de arbitragem a calcular nos termos legais.

 

Custas pela Demandante.

 

Notifiquem-se as partes, com cópia, e deposite-se o original desta sentença no Centro de Arbitragem Administrativa do CAAD.

 

Lisboa, 11 de dezembro de 2019

 

A Árbitro,

 

Raquel Franco